Impuro Sangue Real - Capítulo 9
Meu olhar vagueia pelos cantos, observo todos atentos, inclusive os guardas. A expressão carrancuda do homem de chifres me faz querer intervir imediatamente, mas sei que seria um problema.
A discussão é sobre algum imposto que deveríamos pagar diariamente, apenas por usar o local, mas acertamos as despesas com o dono do terreno. Não há como sobreviver pagando a todos que pedem. Eles devem achar que, por sermos de fora, viajantes, não sabemos que tal imposto não existe.
Contudo, não são burros. Ninguém aqui tem dinheiro para sair entregando toda vez que uma taxa é inventada. Eles querem algo de valor, ou que pelo menos pareça valioso.
— Aonde você vai? — pergunta Vult, desviando o olhar da discussão para mim, quando ameacei entrar de volta na cabana.
— Pode me seguir, se quiser — sugeri, levantando os ombros e entrando no meu alojamento.
Um sorriso singelo apareceu em meu rosto quando não vi o feérico entrando. Ele não me seguiria… A prioridade de todos era o senhor Musk Arlon. Fazer volume e mostrar que temos números e força para revidar. Mas acho que se realmente começarmos uma briga, uma dúzia de zé ruelas que só sabem dançar, somados com alguns brownies covardes, não teriam chances contra dezenas de guardas armados e sedentos para bater em alguém.
Passo os olhos pelos objetos na minha tenda. O colar que o Markson pegou está escondido embaixo de uma manta de roupa. O elfo é tão desatento que nem percebeu que peguei. Aposto que consigo negociar a joia por algo realmente útil.
Quando pego o que quero, saio da tenda e vou caminhando até a entrada do circo. “Társila“, consigo escutar meu nome se perdendo em sussurros assíduos pelos integrantes do circo. As orelhas no topo de minha cabeça se mexem reprimidas quando escutam meu nome de maneira mais intensa, tentando chamar minha atenção.
Ignoro todos.
Não é do meu feitio ficar esperando, e se for para entrar em uma briga que sei que perderei, para que vou começar? Se não há garantias de vitória, é porque estão pensando errado. Infelizmente, também não sou do tipo que foge, mas sou do tipo que adia a luta até que meu lado esteja mais favorável.
— Cavalheiros… — comecei a falar, com um sorriso singelo de boas-vindas. — Aceitam uma bebida?
A recusa de primeira sempre acontece. Contudo, seria burrice recusar para sempre. O tempo está tão quente que andar descalço, por apenas alguns segundos, causaria calos de queimadura. Isso não é normal… A cada dia fica mais perceptível o quanto a terra está doente.
Seria maravilhoso descrever o mundo mágico com grandes árvores, cores, florestas e lindos campos. Seria… Mas, devido à falta de herdeiro, a terra não está mais sendo alimentada pela magia. A magia da coroa controla a intensidade dos fenômenos naturais. Com ela, tínhamos uma beleza diferente. Realmente tínhamos mais cores, impossíveis de um humano conseguir catalogar. Frutos saborosos, árvores esquisitas que se mexiam sozinhas e até davam boas-vindas. Nossa terra era farta e invejável.
Agora tudo está mais intenso. O que era um pouco frio, está glacial. Lugares onde o vento era mais forte e recorrente estão inabitados devido às tempestades. As costas marítimas sofrem com tamanha destruição da maré. E lugares quentes parecem um treinamento para o inferno.
O único que está sofrendo é o povo do Continente da Lua. Meio lógico a justificativa, somos os únicos sem uma cabeça na coroa. A cidade em que estamos é semelhante a um deserto, com a areia fina e amarelada sob nossos pés e poucas árvores que queimam com o simples toque. (Essa parte, admito, parece verdadeiramente mágica, mas são pragas devido à falta de magia.) A maioria das terras está assim: inférteis, improdutivas e morrendo. Parece que o Continente da Lua está usando o pouco poder que resta para se matar. Nem ele está aguentando mais.
— É gelado! — disse o homem de cabeça peluda, surpreso. A mesma reação de sempre.
O senhor Musk Arlon, que também segurava um copo, fica tentado a beber. O veneno na garrafa age lentamente, não dá para perceber que algo está errado antes da intoxicação chegar de vez. A queimação inicial na garganta até parece efeito da bebida e a vontade é beber mais para passar.
— É o que estou dizendo… Vamos pagar no fim da noite. — O senhor Musk Arlon balançava o copo da cerveja enquanto falava, apenas encostando o lábio de vez em quando, fingindo estar bebendo. — Estão todos convidados para assistir ao espetáculo.
— Na verdade, seria uma honra se aparecessem… — completei rapidamente, como se ansiasse pelo encontro.
Os três guardas, representantes, sorriram animados. O que uma boa bebida, no calor insuportável, não faz? Até parece ouro.
— Última chance, Marlon… — falou o homem de chifres, dando palminhas no ombro do nosso chefe. — Nos vemos à noite.
— E tragam mais dessa bebida — disse o guarda com asas de morcego pela primeira vez.
— Vai ser servido como cortesia da casa, apenas para vocês. — o senhor Musk Arlon disse, sem nem hesitar, como se ele mesmo tivesse planejado o ato. Balanço a cabeça em acordo, mantendo a expressão receptiva. — Fiquem com essa garrafa como presente.
Ao escutar a oferta, tento conter a careta, mas não consigo sorrir como antes. Isso estava certo? Ele ofereceu minha poção toda! Agora, como posso intervir nisso sem deixar o chefe parecer errado? Os ânimos não estavam bons o bastante apenas por provar a bebida. Para que entregar a garrafa assim de bandeja? Encaro o senhor Marlon com um olhar de reprimenda, mesmo que ele não retribua o gesto. O elfo permanece atencioso apenas com os convidados indesejados.
Devo estar sendo castigada por alguma coisa. O senhor Musk Arlon não costuma ser tão maldoso, entregando minhas coisas para quem não merece, mesmo que seja veneno. E veja só, nem há garantias de que os três dividam com o restante da tropa. Ficaria feliz se fizessem, mas duvido muito. Só espero que não joguem fora quando entenderem o efeito da poção.
Quando os guardas e todo o pelotão se distanciam, o senhor Musk faz a primeira reverência, e eu, junto com os outros integrantes do circo, copiamos o gesto. A sincronia é a primeira coisa que treinamos. Até quem não participa das apresentações sabe fazer uma excelente mesura, curvando o corpo ao mesmo tempo, como se estivéssemos programados.
Apenas isso já pode ser considerado um espetáculo. Dessa forma, com o simples movimento, agradecemos, ao mesmo tempo que nos despedimos, possuindo outros significados escondidos, mas a maioria com certo deboche ousado e disfarçado. Faz as pessoas de fora sorrirem, e agradecerem de volta, desejando bis.
— Isso é veneno, não é? — perguntou o senhor Musk, olhando para o copo com certo receio.
— Claro que não… — Tomei o copo de sua mão, sem suportar seu olhar julgador. — É a melhor bebida que o senhor nunca terá a chance de tomar, isso vale muito mais que esse imposto besta… E entregou a garrafa toda para eles.
— Achei que esse era o plano. — disse o senhor Arlon, observando-me beber o líquido.
Estou certa de que os efeitos dessa pequena dose valerão a pena, apenas pelo prazer de sentir o geladinho descendo na garganta pela última vez. A poção deu errado, não valeria gastar ainda mais ingredientes valiosos por um veneno qualquer. Se eu fosse tentar de novo, já seria de outra forma, experimentando até que conseguisse acertar, e por isso talvez não chegasse a esse ponto novamente.
— Tenho certeza de que é aquele veneno de ontem… — murmurou o elfo, com os olhos fixados no horizonte, observando a poeira levantada pelos guardas. — Confesso que estou com um pouco de pena deles.
— Eu não. — O olhar do senhor Musk caiu sobre mim; não sei o que ele estava esperando que eu dissesse. — Além de tudo, o frasco da garrafa era caro.
Com certeza não era isso. Ele se voltou para o restante do circo, que ainda aguardava as ordens.
— ARRUMEM AS COISAS, PESSOAL! — gritou o senhor Musk Arlon, chamando a atenção dos demais. — Vamos embora antes do último raio de sol desaparecer.
E assim adiantamos nossa viagem para o sul.