Inimigo das Trevas - Capítulo 02
Igor fazia suas malas, pegando várias roupas de uma vez e jogando-as sem nem mesmo dobrar. Hora ou outra ainda encarava as paredes descascadas que um dia lhe trouxeram a ideia de liberdade. A proposta de deixar o local não lhe agradava nem um pouco, mas no fundo sabia que seu tio estava certo.
Uma frase que ouvira muito durante sua vida voltava a sua mente: “Pessoas cercadas pelas trevas não podem ter uma vida normal, elas irão achar quaisquer que sejam suas brechas.”
Ao menos poderia dizer que havia tentado.
O rapaz voltou a si, não havia mais tempo para sentimentalismos. Pegou tudo que podia carregar ㅡ não que fosse muita coisa ㅡ e em instantes suas malas estavam feitas. Partiriam para algum lugar que não fazia a mínima ideia de onde seria e seu tio nem se dignificou a lhe contar.
Logo desceu até a portaria, onde Alonso o aguardava apoiado numa parede.
ㅡ E então, o que faremos com ele? ㅡ perguntou Igor enquanto direcionava um olhar triste para o cadáver do seu amigo.
ㅡ Ele tem família?
ㅡ Pelo o que sei, morava sozinho.
ㅡ Deixa comigo, vou dar um jeito nisso. Meio que é uma espécie de cremação, então acho que é uma despedida digna… ㅡ disse Alonso e se posicionou próximo à mesa onde jazia o corpo. ㅡ Agora fique de olho, ninguém pode nos ver aqui.
Igor se direcionou até onde terminava a escadaria, dali poderia perceber qualquer movimentação no andar de cima. Novamente o silêncio reinou, e isso perturbou o jovem, tudo estava estranhamente calmo. Calmo até demais…
Estendendo as mãos sobre o cadáver, Alonso começou a recitar palavras numa língua estranha.
ㅡ Gutwika no kubura…
Idioma esse que Igor reconheceu. Era Bantu, língua trazida para o Brasil pelos escravos vindos de certa parte da África na época da colonização.
As mãos dele tomaram uma cor vermelha, como se estivessem em chamas, fazendo o corpo do idoso começar a se transformar em cinzas que logo sumiram no ar. Em instantes não restava nada do corpo nem quaisquer resquícios do que acontecera ali.
“Talvez línguas antigas não sejam tão chatas assim”, refletiu Igor olhando abismado para o tio.
Depois encarou a mesa vazia, a imagem do porteiro ainda permanecia em sua mente. Em um tom melancólico ele disse: ㅡ Descanse em paz, velho amigo…
ㅡ Está terminado ㅡ falou Alonso ㅡ vamos embora.
Igor assentiu, pegando suas malas no chão e em seguida deixando o prédio. Suas pernas moviam-se lentamente, como se seu corpo não quisesse deixar o lugar. Alonso podia ver o desgosto na expressão do seu sobrinho, mas nada podia fazer, era algo que ele deveria aceitar por conta própria.
Não muito longe dali, sentado sobre um dos prédios, estava uma pequena figura de cabelos loiros, com um sorriso maroto no rosto e que carregava um cajado de madeira em suas mãos. A figura os observava atentamente, mas sem sair do local.
De sua boca saiu um pequeno riso, porém, inaudível para nossos aventureiros.
ㅡ Hihihihi!
******
Já passava das dez da noite quando os dois caminhavam em direção ao Elevador Lacerda. A brisa noturna lhes tocava o rosto e bagunçava o cabelo.
Porém, a dúvida sobre a fala de seu tio ainda permanecia na cabeça de Igor. Não resistindo à curiosidade, resolveu perguntar diretamente a ele.
ㅡ Que papo é esse de escola, tio? Você sabe que eu já tenho dezenove, me formei ano passado.
ㅡ Você vai saber mais à frente, vamos a um lugar antes, depois te explico.
ㅡ Essa sua mania de deixar tudo pra última hora nunca muda, né?
Alonso apenas abriu um sorriso ladino como resposta. Sem mais opções, o rapaz deu de ombros.
À sua frente já estava a formosa construção, onde um homem os esperava sorridente, ele era negro, baixo e calvo. Sem cerimônias, Alonso correu para abraçá-lo.
ㅡ Milton!
ㅡ Alonso, seu patife! ㅡ respondeu ele. ㅡ Você não mudou nada!
Entre risos, Igor foi apresentado ao homem, que era amigo de longa data de seu tio e funcionário do elevador, ele cuidaria de facilitar a entrada deles. Milton tirou um chaveiro repleto de chaves do seu bolso e o barulho do tilintar do metal ecoou pelo local. Em seguida, abriu a porta da entrada, deixando seus convidados passarem.
ㅡ Então quer dizer que ele é como nós, um Xamã? ㅡ indagou Igor para o tio.
ㅡ É sim. Sabe o tal informante? Era ele.
O rapaz direcionou um olhar sério para o homem, como se tivesse sua privacidade invadida por aquele sujeito.
ㅡ Sou bom no que faço e, apesar de não parecer, sou bem furtivo! ㅡ explicou Milton, continuando a guiar os dois.
Igor deu um sorriso amarelo enquanto voltava a olhar ao redor, nunca estivera no elevador à noite. Através das imensas vidraças, tinha uma vista de tirar o fôlego, dali podia ver boa parte da cidade baixa, tudo em meio aos minúsculos pontos de luz.
ㅡ É lindo, não é? Isso aqui é um ícone do nosso estado! ㅡ falou Milton que, como bom funcionário e conversador que era, não poderia deixar de conhecer a história do seu local de trabalho. ㅡ Sabia que esse foi o primeiro elevador do Brasil?
ㅡ Sabemos, sabemos… ㅡ interrompeu Alonso enquanto adentrava a cabine do elevador. ㅡ Se der corda ele conversa a noite toda.
ㅡ Fazer o quê, nasci assim! Haha!
Ao apertar um botão que Igor nunca vira antes, o elevador começou a descer numa velocidade absurda. O rapaz encostou numa parede, segurando-se com força enquanto seu cabelo esvoaçava, mais parecendo um monte de espinhos amontoados.
ㅡ Oxe! Desde quando isso aqui tem subterrâneo?! ㅡ perguntou o rapaz confuso.
ㅡ É coisa nossa, só pessoas ligadas à magia podem ver ㅡ explicou Milton. ㅡ Agora se segure que a descida é complicada.
Logo haviam chegado ao subterrâneo. Ao sair da cabine, para a surpresa do rapaz, havia algo que ele jamais imaginaria: uma espécie de estação ferroviária, só que com bondes invés de trens. Em uma das paredes via-se um grande mapa já desbotado do Brasil, mostrando as principais estações pelo país.
ㅡ Bem, aqui deixo vocês! ㅡ falou Milton com um semblante sério. ㅡ Alonso, se cuide, véi! E você, menino… juízo!
Igor estranhou a atitude repentina, mas resolveu ignorar, talvez fosse só o jeito dele de ser.
Eles fizeram um sinal de despedida e se dirigiram a uma pequena cabine, onde um homem com cara de poucos amigos fazia a venda das passagens. Não tiveram problemas com espera, já que o lugar estava relativamente vazio naquela noite.
Alonso pediu duas passagens para Jericoacoara e torceu o semblante ao ser informado do exorbitante preço. O homem retirou o dinheiro de sua carteira e pagou as passagens, mas não sem antes resmungar para o pobre funcionário.
ㅡ Maldita inflação! Já não bastasse a carestia lá em cima, agora aqui também?!
O funcionário nada disse, apenas acenou com a cabeça concordando. Alonso pegou os bilhetes e os dois entraram no bonde indicado, sentando-se nas poltronas. Sem mais nenhum passageiro para aquela localidade, o motorista berrou que daria a partida e então a viagem se iniciou.
ㅡ Que diabos de lugar é esse? Por que nunca me contou antes? ㅡ questionou Igor.
ㅡ Eu teria te contado, se não tivesse saído de casa… ㅡ alfinetou Alonso. ㅡ Isso aqui não passava de um lugar abandonado, mas o Conselho tornou-o um meio de transporte que te leva a qualquer parte do país.
Pelo que sabia até o momento, Igor achava que “Xamãs” eram apenas caçadores do sobrenatural que agiam de forma independente, jamais imaginaria tal nível de organização. Tudo que achava conhecer não passava da ponta de um iceberg gigantesco.
ㅡ Jericoacoara… esse lugar me soa familiar… ㅡ Ele cruzou os braços, pensativo.
ㅡ A lenda, não se lembra? Acho que faz bastante tempo que te contei.
Igor fuçou as suas memórias em busca de alguma informação sobre e, aos poucos, foi recordando.
A lenda contava que o lugar era lar de uma doce princesa, dona de incontáveis tesouros e há muito amaldiçoada por uma bruxa maligna a tornar-se uma serpente enorme e horrenda. Sua cidade afundara sobre a terra e ela era obrigada a viver no subterrâneo desde então. A única forma de quebrar a maldição seria por meio da intervenção de algum rapaz de coração puro.
Isto, claro, era a versão popular, moldada através das gerações passadas e recontada diversas vezes, tratada apenas como um mito.
ㅡ Ah, sim! A princesa serpente! ㅡ exclamou Igor ao lembrar-se.
ㅡ Exato! Porém, a lenda não é totalmente verdadeira ㅡ explicou Alonso, cruzando as pernas. ㅡ Uma parte foi oculta e poucos sabem. A princesa cansou de esperar… ela estudou magias antigas por dias e mais dias a fim de sair daquela forma medonha de cobra.
ㅡ Não me diga que…
ㅡ Sim! Ela conseguiu. Salvou seu povo da perdição com seu próprio esforço.
Igor ouviu tudo com uma expressão confusa até seu tio terminar de contar a história. Aquilo era algo realmente curioso. Ele se espreguiçou no assento, virando-se para encarar a paisagem, mas seus olhos se alargaram ao notar que tudo ao redor não passava de um borrão. O rapaz nem percebera, mas o veículo estava numa velocidade incrivelmente alta.
ㅡ Surpreso, não? Nem queira saber a velocidade em que estamos… ㅡ falou Alonso, como se tivesse adivinhado o pensamento do sobrinho. ㅡ Não vai demorar muito para chegarmos ao nosso destino, por enquanto, só aproveita a viagem.
Realmente não demorou para chegarem ao local desejado, em menos de duas horas desembarcaram na estação subterrânea. E apesar dos chacoalhões ㅡ graças à linha férrea sem manutenção há meses ㅡ a viagem foi bem tranquila.
Após descerem do bonde, caminharam até encontrar uma porta com uma placa escrita Saída, adentraram um corredor escuro e subiram por uma velha escadaria de madeira que os levou até a superfície.
Os dois saíram em meio à mata, a poucos metros do pequeno povoado de Jeri. A lua brilhava no céu quase sem nuvens, permitindo-os enxergar um ao outro. A mata encontrava-se repleta de vagalumes e os únicos sons presentes eram o cricrilar de grilos e o coaxar de sapos.
ㅡ Caralho! Não acredito que fomos de Salvador pro Ceará em menos de duas horas! ㅡ exclamou Igor e riu estupefato. ㅡ Se descobrirem isso, os aviões vão falir!
ㅡ Não podem, o Conselho é bastante rígido com isso, nossa organização não pode ser descoberta ㅡ explicou Alonso enquanto limpava o chão coberto de folhas, revelando um círculo repleto de símbolos.
ㅡ Esse tal Conselho que você diz… me deixou curioso.
ㅡ Um dia você vai acabar conhecendo, agora venha, entre no círculo.
ㅡ Tá de brincadeira, um círculo mágico?
ㅡ Sim, viemos aqui para buscar algo muito importante e esse é o único jeito de chegar lá em cima ㅡ falou e apontou para o céu noturno. ㅡ Digamos que é sua herança, vai precisar dela se quiser continuar nesse meio.
Igor contorceu seu semblante em reprovação, novamente seu tio ocultara fatos dele.
A fim de evitar confusões, entrou no círculo sem dizer nada e então Alonso pronunciou: ㅡ Kakuáhan!
Subitamente, uma luz ofuscou seus olhos e ele sentiu todo o peso do seu corpo se esvair. Ao enxergar novamente, reparou que não estavam mais na mata, invés disso, um portão enorme e repleto de adornos em ouro erguia-se à sua frente.
Atrás do portão via-se o topo das dezenas de construções e torres que formavam uma cidade, também repletos de estruturas douradas.
Alonso deu um passo à frente, encarou a expressão abobalhada do sobrinho e disse: ㅡ Bem vindo a Jericoacoara!