Ithy - Sombras de Eberus - Capítulo 2
Momentos antes da explosão em Ebraur, próximo à Floresta Negra.
As pessoas corriam desesperadas pelas ruas, carregavam apenas o necessário, algumas fugiam apenas com as roupas do corpo. Já deveria estar escuro, mas no alto uma esfera irradiava como se fosse o próprio sol.
Um homem coberto com uma capa não parecia estar em pânico. Ele abriu uma porta do pequeno sobrado e a fechou após entrar.
— Querido, conseguiu? — Perguntou a mulher de cabelos loiros, segurando um bebê no colo. Ao tentar se levantar da cadeira, foi impedida pelo homem, que a ajudou a se sentar gentilmente.
— Não. — Respondeu ele.
— O que vamos fazer? O ritual logo terminara e acabaremos morrendo aqui.
Os olhos negros do homem foram de encontro à mulher e à criança. Ele não teve coragem de responder, a ajudou a levantar e subiram a escada que levava aos quartos. Ela, percebendo sua aflição, manteve-se em silêncio.
— Eu sei em que está pensando — falou a mulher com a voz mais calma que conseguia expressar naquele momento, assim que entraram no quarto que havia um berço.
— Eu queria encontrar outra forma meu amor…
— Tudo bem, se é único jeito dela sobreviver.
Ele sorriu e se virou para ela, dando-lhe um beijo acompanhado de um abraço.
— Sinto muito.
Um som ensurdecedor ecoou pelo céu da cidade e eles ouviram os gritos de agonia das pessoas, era um coral vindo do abismo.
— Está pronta?
— Sim!
O homem fez um triângulo com as mãos e recitou um mantra em língua antiga, um triângulo azul se formou no chão, deixando os três dentro dele.
A bebê começou a chorar, sua mãe olhava seu rosto branco como neve, cheio de sardas e arrumava uma mecha do seu cabelo vermelho. As lagrimas pingaram sobre a pequena garotinha.
— EU AMO VOCÊS! — Gritou o homem antes da explosão varrer a cidade.
Alguns minutos depois, tudo ficou em um completo silêncio.
***
Haniball estava diante de seus dois amigos. Em seus braços, ele segurava com certo cuidado uma pequena criança de cabelos vermelho vivo e olhos tão pretos como uma noite sem luar.
— É inacreditável que ela tenha sobrevivido. — Expressou Lagarto.
— Mestre Lobo, não encontramos um sinal de algo vivo desde que chegamos aqui. O senhor viu a explosão e sabemos que o ithy presente aqui é maligno — falou Cobra em um tom preocupado.
— Eu lembro dos ensinamentos do velho Bunky. — Lembrou Haniball. — O Ithy é a energia que rege o universo, ele habita em todas as coisas, em todos os seres e blá, blá, blá. — Terminou fazendo uma imitação tosca de seu mentor.
Assim que ele terminou de falar, um pequeno ponto de luz subiu a uma certa altura, o suficiente para que os três pudessem vê-lo da janela de onde estavam.
— Devemos sair daqui imediatamente. — Alertou Lagarto.
— O que pretende fazer com a bebê? — Perguntou Cobra.
— Como assim o que devemos fazer com ela?! Vamos levá-la conosco. — Afirmou Haniball.
— Não podemos… — Cobra se antecipou um passo à frente. — Ela pode estar… — Ele hesitou em concluir sua fala, mas o fez. — Ela pode estar amaldiçoada.
— Ele tem razão, aquela não foi uma explosão qualquer. Sentimos a manifestação de um ithy sombrio nela.
Haniball não acreditava no que seus companheiros estavam dizendo, na verdade não queria acreditar, mesmo sabendo que, pelo seu conhecimento sobre a manipulação do ithy, não haveria forma de alguém sobreviver a aquela explosão de energia sem consequências.
— E o que vocês sugerem? — Indagou Haniball, sua voz vacilava enquanto falava.
— Devemos dar fim à sua vida antes que a maldição se manifeste. — Sugeriu Cobra, sacando sua adaga do cinto e estendendo a mão para que Haniball entregasse a criança.
— Não matamos bebês! — Esbravejou Haniball, frustrado com a decisão de seu amigo.
— Eu não concordo com ele, Mestre, mas não temos tempo para pensar em outra alternativa. É o único jeito de evitarmos que ela sofra com a maldição que acreditamos que tenha adquirido. E se for mesmo obra daquele homem, sabemos que será algo terrível. — Lagarto explicou com lamento na tentativa de trazer sanidade a Haniball.
— Vamos, Lobo, somos Zuritas, não deixamos emoções nos controlar. Me entregue a criança; pode esperar lá fora se não quiser ver. — Se irritou Cobra.
Haniball pensava se aquilo realmente seria o certo, mas sentiu algo estranho naquele momento. A sensação de que braços se entrelaçaram em seu pescoço e ele ouviu a voz de sua falecida esposa surrando em seu ouvido, “Cuide da Victoria”.
— Lobo, não temos tempo. — Alertou Lagarto.
— Eu vou levá-la e ela será criada como minha filha — disse Haniball, decidido.
— Mestre, me perdoe, mas isso é loucura — falou Cobra, recusando-se a aceitar a decisão de Lobo.
— Vocês dois são os únicos que sabem da morte de minha esposa Lucina e de minha filha recém-nascida Lina. Confirmarão que somente Lucina morreu no parto, e que, como Lina não foi batizada, colocarei o nome que minha amada queria, Victoria.
A luz no céu aumentava seu tamanho e começou a emitir sons de trovões enquanto soltava raios ao seu redor.
Cobra e Lagarto não concordaram com a decisão de seu mestre, mas não tinham tempo para discutir.
— Como quiser, mestre. — Aceitou Lagarto, curvando-se e saindo do quarto.
— Você entendeu, Cobra? — Indagou Haniball.
— Sim, mestre. — Respondeu ele com indignação.
Os dois seguiram Lagarto até a saída da cidade, onde deixaram os cavalos amarrados. No caminho de volta, ouviram uma nova explosão e o que havia sobrado da cidade desapareceu, deixando apenas uma cratera vazia onde um dia estivera a cidade de Ebraur.
Tarde da noite, enquanto acampavam, um abutre pousou próximo a Haniball e trazia uma carta. Ele a retirou do bico do animal e abriu para ler seu conteúdo.
“Caro Lobo Branco, venho trazer notícias sobre os boatos na fronteira do país de Pélor…”
Um abutre sobrevoava a cidade que estava na fronteira de Pélor e a floresta Caria. Abaixo dele, um garoto com roupas rasgadas corria por entre a multidão, fugindo de um homem que o perseguia gritando:
— Ladrão, segurem esse ladrãozinho!
— Você já está velho para correr, senhor Buguima. — Exclamou o garoto, dando uma espiada rápida para trás e rindo.
Mas o senhor Buguima não corria mais; estava parado, assim como todas as outras pessoas, olhando para o céu.
A criança os imitou, levantando sua cabeça e viu um círculo vermelho com vários símbolos de runas antigas que ele reconheceu sendo igual aos que havia visto nas paredes do templo.
— O que é isso?! — Perguntou-se o jovem depois de guardar o pão em suas vestes.
Uma mulher gritou, caindo sentada no chão, coberta por sangue. Em sua frente, estava só a parte de baixo do tronco de alguém.
O pânico tomou de conta de todos ali; gritavam, correndo, enquanto pessoas explodiam, jorrando sangue em todas as direções.
— Clea! — Murmurou o garoto, saindo correndo e esquivando-se de símbolos que surgiam no chão e laçavam os pés das pessoas como cordas.
Não demorou a chegar ao subúrbio da cidade, onde havia uma pequena casa em ruinas. Ele passou pelo batente de uma porta que já não existia mais.
— Clea… Clea?! — Gritava, procurando pelos cômodos, mas não havia ninguém ali.
Ao retornar para rua, correu até a esquina e a cena que viu o deixou tomado de raiva, fazendo-o gritar ao tirar seu estilingue do bolso.
Era Clea, uma garotinha com orelhas e caldas amarelas, semelhantes às de um cachorro.
Ela foi erguida pelo braço por um soldado diferente dos demais, que arrastavam e mutilavam as pessoas com suas espadas. Esses soldados usavam uma armadura negra com capas velhas e rasgadas, mas aquele que segurava sua irmã estava vestindo uma armadura ardente. Seu capacete possuía dois chifres e seus olhos brilhavam um vermelho.
— Solte-a! — Gritou o garoto correndo em direção ao inimigo e atirando sua munição, que eram pequenas pedras que carrega em uma algibeira na cintura.
— Gabe — murmurou Clea com a voz fraca, quase desmaiando. O homem que mais parecia um monstro para Gabe apontou a ponta de sua espada para o peito de Clea e disse:
— Pare ou ela morre. — Sua voz era rouca e medonha. Gabe temeu por ela e parou. Os outros soldados que estavam por perto correram e o amarraram.
— Ele já está preso, comandante. — Relatou um dos homens que o prendera. Gabe, amarrado com as mãos para trás, finalmente percebeu que Clea ficou inconsciente.
— Leve-a para o capitão verificar se ela tem a marca. — Ordenou o oficial, fazendo que as brasas em sua armadura se apagassem.
— Não vou deixar que a levem — falou Gabe correndo em direção ao soldado que pegava a garota no colo.
O comandante se antecipou por trás do garoto e lhe deu uma coronhada com o cabo de sua espada, fazendo-o cair desmaiado.
— E este aqui, leve-o para a cela próxima da minha tenda.
— Sim, senhor. — Confirmou o segundo soldado pegando Gabe nos braços.
Ao terminar de ler a carta, Haniball suspirou profundamente e se recostou na arvore em suas costas.
Victoria soltou resmungo enquanto dormia ao seu lado; ele a encarou e sorriu. Em seguida, puxou de uma pequena bolsa que carregava por baixo de sua capa e dela retirou um papel, um tinteiro e uma caneta.
Alguns minutos depois, terminou de escrever, dobrou o papel e o colocou em um envelope pequeno, carimbou com seu anel e entregou para o abutre que levantou voo e partiu na noite adentro.
“Que Eru’Amethy tenha misericórdia de nós.” Pensou Haniball, fechando seus olhos para tentar dormir um pouco.