Ithy - Sombras de Eberus - Capítulo 3
Faltavam apenas três meses para que Victoria Sarley completasse seus dezessete anos. Ela não se lembrava, estava concentrada observando um jovem de cabelos castanhos saindo de uma taverna incomum para um nobre. Victoria o observava da sacada de uma das casas que margeavam a rua. Certamente, os donos estavam em sono profundo e a porta deveria estar trancada, mas isso não tinha importância para ela.
A carruagem do jovem seguiu seu caminho, puxada por um único cavalo baio. Do outro lado da rua, alguém encapuzado emergiu das sombras de um beco, revelando-se à luz dos postes metálicos que iluminavam o caminho.
Como ela suspeitava, um nobre nessa área da cidade, numa taverna como aquela, tarde da noite, só poderia atrair oportunistas. Por curiosidade, ela silenciosamente desceu e seguiu o suspeito que perseguia a carruagem.
O sobretudo preto que ela vestia a fazia praticamente desaparecer nas sombras. Seu rosto, quase tão branco quanto a neve, estava oculto sob o capuz, assim como seus cabelos ondulados e vermelhos.
Não demorou para que a carruagem parasse, o motivo era obvio: duas pessoas bloqueavam a passagem.
— Quem são vocês? — Perguntou assustado o cocheiro, que se cobria com casaco e usava uma touca de lã.
— Nós só queremos conversar com Vossa Senhoria. — Respondeu o homem da direita, fazendo uma reverência.
— E-eu, eu chamarei os guardas. — Ameaçou o cocheiro.
— Não seja tolo, os guardas não patrulham esta área da cidade. Por isso, estar a essa hora na rua pode ser perigoso e não queremos que nada de ruim aconteça com nosso adorável nobre, não é mesmo? — Explicou o homem com sarcasmo, retirando seu capuz e revelando seu rosto de aparência tosca, com uma barba grossa e volumosa.
— Senhor Guliver, está tudo bem aí fora? Por que paramos? — Gritou curiosa uma voz suave de dentro da carruagem.
Victoria se aproximava com cautela, certa de que seu treinamento recebido na guilda Zurita lhe serviria para passar despercebida.
— Alguns homens nos pararam, senhor Samuel. — Informou Guliver.
O primeiro sujeito que se aproximava da carruagem bateu na porta e disse:
— Senhor, poderia sair um instante para conversarmos?
— Quem são vocês? — Indagou Samuel, sem abrir a porta.
— Só queremos ajudá-lo a chegar ao centro sem perigo.
A porta se abriu, revelando um jovem trajado com um sobretudo de linho verde-musgo. Era um rapaz atraente, que provavelmente era popular entre as garotas de sua idade.
— Senhor, não é seguro sair. — Alertou Guliver, mantendo o animal parado pelas rédeas.
— Não se preocupe. — Tranquilizou o jovem. — Tenho certeza de que os cavaleiros aqui não me farão nenhum mal.
O homem sorriu e o terceiro se aproximou do animal, segurando-o pelo cabresto, enquanto o outro se aproximava ao lado de Samuel.
— Diga o preço de vocês que eu pagarei, 100 moedas de prata, 200, 300, é só falarem. — O jovem nobre puxou uma algibeira recheada de seu bolso e estendeu para pegarem. — Aqui tem 500 moedas de prata, podem levar.
— Olha, Trevor. O que você acha, devemos aceitar a oferta? — Perguntou com zombaria o primeiro homem, que retirou seu capuz, revelando seu cabelo negro comprido, que mais se assemelhava à crina de um cavalo.
Victoria não estranhou as características equinas, como a orelha alongada, e, ao reparar melhor em suas mãos, percebeu que seus dedos tinham a estrutura de cascos.
— Um Tharork. — Sussurrou ela.
— Creio que ele valeria muito mais se pedíssemos um resgate. — Sugeriu Trevor, mostrando seus dentes podres ao sorrir e retirou um punhal da cintura.
— Volte para dentro, senhor. — Ordenou Guliver antes de ser atingindo por um bastão de metal, caindo inconsciente no chão.
O animal se assustou e tentou fugir, mas o criminoso que o segurava, conseguiu impedi-lo e controlá-lo.
— Cavalheiros, vamos nos acalmar. Se preferirem, posso pagar mais… — Samuel deu um passo para trás, porém não tinha para onde ir, suas costas se chocaram contra o carro.
— Quanto mais? — Perguntou Trevor.
— Que tal 25 moedas de ouro? — Interpolou o jovem, já com a voz vacilante.
— Conseguiremos mais de 50 moedas de ouro por você. — Afirmou o tharork, sacando uma faca em seguida.
— Sabemos que não é da cidade. — Acrescentou Trevor.
Samuel ergueu as mãos em sinal de rendição, tentando negociar com os dois criminosos. Algo em sua mão direita chamou a atenção de Victoria: um anel com uma coruja. Sim, com certeza era o anel da família Hikma. Imaginou ela, e em seguida, perdeu-se em suas lembranças.
Sua mente a transportou para o velho corredor de pedra do castelo, na parte alta onde ficava o escritório de seu pai. Como o de costume, poucos archotes iluminava o local, deixando-o parcialmente escuro.
Victoria aproximou-se da porta entreaberta e espiou. Lá estava seu irmão Conrrad de costas, com cabelos loiro-claros. Ao lado dele, encontrava-se Cobra, com ombros largos e braços bem definidos à mostra.
Seu irmão segurava uma folha que continha uma coruja prateada pintada.
— Os Hikmas são os únicos que sabem onde o Corvo pode estar. — Falou Conrrad com leveza.
— Não podemos simplesmente chegar e perguntar — disse Haniball, que estava sentado atrás de sua mesa.
Victoria, impossibilitada de avistar seu pai devido à presença dos dois à sua frente.
— Deixe-me enviar um de meus homens para investigá-los? — Propôs Cobra.
— Não, se alguém for, serei eu. — Afirmou Conrrad.
— Eu não permito. eu irei solicitar uma reunião com eles a negócios e lá, tentarei descobrir algo. — Declarou Haniball, levantando-se. — Há boatos de que ele busca um pretendente para sua filha…
— Não, eu não aceito. — Interrompeu Conrrad.
O olhar incisivo de Haniball encontrou o de Conrrad, enquanto Cobra soltava uma risada zombeteira.
Passos se aproximaram pelo corredor, e ao virar-se para sair, Victoria esbarrou na porta, chamando a atenção dos três.
— Acho que não me viram. — Sussurrou ela, encostada na parede.
Sem aguardar para descobrir se iriam verificar se havia alguém os espiando, Victoria partiu correndo em direção ao seu quarto.
O grito de dor ecoou, trazendo Victoria de volta à realidade.
Trevor xingava o rapaz enquanto segurava o nariz cheio de sangue, proferindo ameaças violentas. Eu vou matar esse burguês, esbravejava ele. Samuel caiu sentado depois que levou um soco do outro homem.
Victoria não hesitou; agiu instintivamente. Puxou suas adagas, cuidadosamente escondidas na parte de trás do cinto, por debaixo do sobretudo e avançou em direção aos criminosos.
Em questão de segundos, ela quase conseguiu apunhalar o homem que se preparava para dar outro soco em Samuel. No entanto, ele saltou para o lado. “Ele me percebeu antes ou depois que o ataquei?”, indagou-se ela, mas não havia tempo para ponderar, pois Trevor já estava desferindo um golpe pelas costas. Victoria reagiu, chutou-o na barriga, fazendo com que recuasse alguns passos.
— Temos uma visitante inesperada — disse o primeiro homem. — Você é muito jovem para ser uma guarda-costas. Diga-me seu nome.
— Deve ser uma ladrazinha pensando que pode roubar o nosso peixe. — Afirmou Trevor.
Os olhos de Samuel, eram tingidos pela cor de caramelo, seu rosto mesmo marcado pelo sangue em sua boca, ainda exibia uma beleza cativante.
— Você é da família Hikma? — Perguntou ela com rispidez.
— O quê? — Retrucou ele, confuso.
Victoria não podia perder tempo explicando naquele momento; precisava focar em seus adversários.
Trevor avançou para golpeá-la novamente, mas a garota se antecipou com um salto mortal por cima do homem alto e, ao aterrissar, o feriu na altura dos rins. Um urro de dor ecoou.
A lâmina da adaga, agora fora tingida de vermelho, e uma dança caótica se desenrolava naquela rua escura.
— Para dentro! — Victoria ordenou a Samuel, que já se recompunha.
O jovem apressou-se para dentro da carruagem e trancou a porta.
— Sua cretina, eu vou te furar inteira! — Esbravejou Trevor.
— Você tem uma certa habilidade — disse o tharork. — Eu sou conhecido como Borus, e você, quem é?
— Meu nome não importa.
— E por que não? — Perguntou Trevor com desdém.
— Porque vocês irão morrer hoje. — Respondeu Victoria com frieza.
O homem que segurava o cavalo gargalhou, juntamente com Trevor, mas Borus manteve-se atento ao que a garota estava fazendo.
Com destreza e velocidade, ela lançou uma adaga que cravou no ombro esquerdo de Trevor. Se ele não estivesse tentado desviar, teria acertado em seu peito. O sangue manchou sua camisa.
— Por que está salvando esse nobre? Eles não ligam para nada além de suas riquezas — falou Borus.
— Ele tem algumas informações que eu quero.
Victoria sentiu o ar ficar gelado. Mesmo ferido, Trevor fez mais uma investida contra ela. Dessa vez, ela se esquivou para o lado, mas sua intuição sinalizava que algo ruim estava prestes a acontecer.
Sem tempo para pensar, uma luz amarela a atingiu no braço esquerdo.
“Ele pode manipular o Ithy.”
— Você não pode vencer o Borus, ele é um sensitivo ao Ithy. — Explicou Trevor, rindo com superioridade.
O braço de Victoria queimava. Ela viu o casaco rasgado onde fora atingida. Quase não havia sangue; a ferida era um pequeno arranhão com uma queimadura.
— Parabéns para ele. Espero que ele saiba os princípios básicos da manipulação de Ithy — disse Victoria com um tom sarcástico. Ela levou a mão à cintura e retirou uma máscara que ficava pendurada.
O coração de Borus pulsava descontrolado enquanto seus olhos se fixavam na máscara com o semblante de um gato azul, que ocultava o rosto da garota à sua frente. Uma tensão elétrica percorria o ar, e as palavras de descrença mal conseguiam escapar de seus lábios trêmulos.
— É um blefe, eu ouvi as histórias, você está tentando nos amedrontar. — Gaguejou ele, como se suas próprias palavras fossem insuficientes para dissipar o medo que se enraizava em sua mente.
Trevor, com temor refletindo em seus olhos, ousou questionar a natureza da garota.
— Chefe, ela não é uma Zurita é? — Indagou, temendo a resposta que poderia selar o destino sombrio diante deles.
Victoria avançou com a graciosidade de uma sombra decidida em direção aos dois homens. Borus, movido pela urgência, recorreu a palavras em uma língua antiga, como se estivesse invocando uma proteção ancestral. Mas a garota era mais rápida que a própria linguagem proferida, e os disparos amarelos que se desencadearam de sua mão direita não encontraram alvo, como se a realidade se curvasse à sua agilidade sobrenatural.
O ar tronou-se pesado com o suspense enquanto Victoria, em um rodopio quase etéreo, cravou sua adaga na lateral do pescoço de Trevor. O homem, impotente diante da velocidade da agressão, caiu de joelhos, seus olhos refletindo a agonia de uma luta desesperada pela respiração, enquanto o sangue se derramava sem piedade.
Guliver, ainda se reerguendo da pancada anterior, assistia à cena com olhos atordoados, tentando compreender o que acontecia.
Victoria, como uma dançarina da morte, lançou uma adaga na direção do homem que tentava controlar o cavalo assustado. A lâmina cortou o ar com um silvo ameaçador antes de encontrar seu alvo, e o homem, em meio a um esforço inútil para conter o animal em figa, foi atingido.
O cenário era um quadro de caos e desespero, pintado pela dança sangrenta da garota com máscara de gato azul. O destino dos homens estava selado.
A tensão no ar era palpável, como se cada molécula ao redor estivesse eletricamente carregada pelo medo. Borus, desesperado e inconformado, pronunciava suas palavras em uma súplica angustiante.
— Por quê? Por que tem uma Zurita aqui em Cintirian? Não é justo, eu não vou morrer aqui. — Proferia, enquanto, em um ato de desespero, iniciava um mantra, reunindo sua energia em uma esfera amarela entre suas mãos trêmulas.
Guliver, perplexo e incapaz de compreender completamente a situação, instintivamente correu em direção ao cavalo, tentando acalmar o animal agitado. Enquanto isso, Victoria, como uma sombra ágil, materializou-se nas costas de Borus. Sua adaga encostou-se à nuca dele, um sussurro frio ecoou em seu ouvido.
— Mudei de ideia, não irei te matar, mas você ficará me devendo uma. — Declarou ela, interrompendo a conjuração do feitiço que pairava entre as mãos de Borus. Em um movimento preciso, Victoria acertou-o, fazendo com que ele tombasse inconsciente no chão, a esfera de energia dissipou-se como fumaça.
Após o momento de silêncio, o cavalo se acalmou com a presença tranquilizadora de Guliver. A noite os envolvia.
Ignorando a dor latejante em seu braço, Victoria guardou a máscara e dirigiu-se à porta da carruagem, que havia cessado seus movimentos tumultuados graças à calma restabelecida do animal. Com firmeza, ela bateu na porta, convocando a atenção do nobre que estava dentro.
O jovem emergiu, expressando sua gratidão à mulher que o havia salvado.
— Obrigado por salvar minha vida. — Pronunciou ele, enquanto Guliver, preocupado, posicionava-se ao lado de seu senhor, indagando sobre o estado dele.
No entanto, Victoria permanecia silenciosa, a ardência em seu braço e uma súbita dor de cabeça roubava sua atenção. As palavras de Guliver tornavam-se distantes, e sua visão turvava-se a cada momento.
Guliver, percebendo o desconforto dela, insistiu:
— Oi, você está bem, parece que está suando. — Mas Victoria não conseguiu mais responder, mergulhada na própria luta conta a vertigem.
— Eu não posso… não vou… desmaiar. — Sussurrou ela, mal conseguindo se fazer ouvir. A visão de Victoria ficava cada vez mais embaçada.
Guliver, persistindo em sua preocupação, continuou a falar alto:
— O que disse? Fale mais alto. — Mas a resposta não veio. Victoria não suportou mais e caiu, sendo amparada nos braços de Samuel.
— Vamos, me ajude a colocá-la aqui dentro. — Ordenou o jovem, com urgência em sua voz. Guliver prontamente colaborou, depositando Victoria no banco vermelho da carruagem. Antes de fechar a porta, Samuel dirigiu-se a Guliver:
— Não faça perguntas agora, vá direto para a mansão, rápido, rápido.
— Sim senhor. — Respondeu Guliver e a carruagem partiu carregando consigo Victoria, a mulher misteriosa.