Lovecraft Rio - Conto
Horror nas Alturas:
Os passos ecoavam através do beco escuro e sombrio, o barulho cacofônico atravessavam–lhe o tímpano como agulhas, entorpecendo a clareza do olhar e confundindo–se com as batidas do coração, bombeando o sangue como quem tenta trazer um juízo verossímil à tomada de decisões. Os tijolos de concreto carcomidos corriam o caminho e o lance de escadas deformadas serpenteavam sua trajetória para o topo do morro.
Se a concepção de racionalidade pudesse ser posta à prova perante a possibilidade de aprisionamento, um corisco de lamento e gáudio sobrepujando a realidade enigmática com suas leis inexoráveis e ininteligíveis, ele não saberia dizer a diferença, mas guarnecia uma única certeza, tão cristalina e imutável como o puro ato de estar vivo: se alguém adentrasse na rota de sua fuga desesperada estampando qualquer urdidura ciana, o Parafal calibre 7,62mm abriria uma fissura no crânio do abastado e advertiria os mal aprouvidos a não aproximarem–se caso ainda estimassem suas vidas patéticas.
Afinal, o que ele poderia dizer sobre patético? O tecido sintético da camisa roçava na pele negra, arranhando como lixa os músculos que contraíam–se a cada salto nos degraus, a cada vertente vertiginosa. A calça jeans estava empapada, o suor invadia os olhos como mariposas curiosas com o brilho de um lampião, e talvez as mariposas fardadas pudessem atrair–se com o reflexo que os postes de luz traziam ao seu rosto oleoso enquanto atravessava o terreno claro, intercalado pela caligem que projetava–se das ruelas e becos.
Mas não era somente o fardo dos seus perseguidores que atormentava–o, era o nítido terror de sua lembrança, e nos olhos de seus companheiros, quando saíram da estrada após mais uma tentativa de outorgar bens alheios, quando entraram na mata escura, varando a trilha tão facilmente reconhecida para o grupo que assemelhava–se a um andar educado e nostálgico de um velho senhor que depois de anos em um hospital, retorna ao conforto de seu lar e passeia de bicicleta com os netos. Mas havia algo, uma sensação de desconexão, como se a própria dilatação da adrenalina sobre suas veias também dilatasse uma percepção nunca antes atendida.
O barulho da sirene e dos galhos atrás de si partindo–se não era tão perturbador quanto esse desconforto inexpugnável, como uma coisa que sugava–lhe o ânimo e prendia as expectativas; o próprio pesar de tentar descobrir alguma descrição que fizesse sentido em meio à debandada de volta ao seu abrigo, mas que era impedida dada a urgência do caso, acentuavam sua deprimente corrida.
Seus estimados companheiros seguiam à frente, esgueirando–se através da vegetação tórrida como transeuntes em um deserto onde as estrelas eram pintadas de verde e as dunas eram charcos e capim altos o suficiente para escondê–los de ameaças, mas se estavam realmente escondidos, por que ele sentia tanto medo?
Se os camaradas partilhavam de sua preocupação ele não tinha certeza. Foi quando o que estava à frente, Vinícius, parou de súbito, como se estivesse a centímetros de uma corda que ativaria alguma armadilha aterradora o bastante para expurgá–los do mundo em que viviam, e talvez fosse.
Trombaram–se uns nos outros, mas Vinícius não mexeu–se ou pestanejou, simplesmente estava lá, parado como uma estátua, atônito como uma musa; a perplexidade em seu semblante fê–los ignorar por um momento a natureza humana em vossa retaguarda, e passaram a prestar atenção na natureza animal ao vosso redor.
Talvez Vinícius tivesse dito algo, mas não demoraria para que as palavras descrevessem o óbvio. Não havia som ao redor. A vida rastejante e os insetos do começo de uma noite de verão estavam calados; haviam momentaneamente feito um voto de silêncio, mas por qual motivo?
“Temos que sair daqui, Vinícius, o que foi?” um de seus companheiros elucidou; Vinícius continuava a observar um vazio, seu queixo pendia como se palavras não fossem suficientes para sequer clamar por auxílio, mas houve um murmúrio por sua parte, “bri… bri… lho… brilho”. O que estava brilhando? Eles não conseguiam perceber a natureza da preocupação do amigo, então tentaram objetar seu momento de torpor…
Foi quando viram.
Não era exatamente como se houvesse uma sincronização na concepção deles sobre a situação, o fato é – e isso é o que começou a confundir seus pensamentos – que à medida que encaravam o fundo de um emaranhado de vegetação, um brilho tênue, um santelmo relaxante e hipnotizante tomou conta de sua área de visão. Nem o cansaço nem a agitação do anseio de fugir foram suficientes para fazê–los ignorar aquilo, quase como se o brilho possuísse algum tipo de controle sobre suas mentes; ao mesmo, a estrutura material do fenômeno intrigava–os por não encaixar–se em qualquer definição imagética que poderiam obter sobre o espectro de luz conhecido.
Uma cor verdadeiramente escura e clara, como se a luz retorcesse a realidade do material em diversos escopos imaginários: era viva, mas era morta, a cor também era todas as cores mas sem ser nenhuma delas propriamente; tão suficientes e essenciais como imaginar uma nova vogal das profundezas linguísticas do subconsciente, e que deveriam pertencer à conjectura da realidade conhecida, mas não pertenciam.
A natureza pré–infância apoderou–se de suas decisões de tal forma que nem mesmo o medo era capaz de trazer uma resolução que justificasse o fenômeno que presenciavam. Vinícius começara a andar, cambaleante, desajeitado; as pernas moviam–se como se fosse um fantoche, sua postura dava a impressão de que havia uma corda atada à cintura e que puxava–o, arqueando suas costas para trás e retardando o movimento que, apesar de não cessado, permanecia insólito, desnutrido de qualquer qualidade de coordenação motora.
Um de seus outros amigos tentou impedi–lo, mas ao aproximar–se para repreender o ato absurdo dele, a luz tremeluziu, e um som frugal, uma leve vibração como a de um piano da era vitoriana, tomara conta do lugar. Era doce, quase conseguia sentir uma textura macia e suave em seus lábios, seguida de um frio reconfortante. E em um simples piscar mais um dos amigos acompanhava Vinícius em direção ao brilho.
O que era aquilo? Tomava controle de seus corpos como uma mãe que repreende seus filhos com carinho e rigidez, justificando seu ato com situações passadas e reflexivas, mas aquele brilho não falava nada, ainda assim, era como se dissesse, ou induzisse ao pensamento que atraía corpo e mente para perto de si. Ouviram mais passos apressados vindos da retaguarda em meio à mata; seus amigos persistiam sua incursão ao brilho, mas era tarde demais, não poderiam ficar ali parados se quisessem ter alguma chance de aproveitar do luxo que era a liberdade.
Seguiram através da floresta, ouvindo o barulho de vossa própria respiração, ofegante, meditativa, e em meio a esta serenidade, alaridos foram ouvidos de onde vieram, vozeares que a princípio soavam como de atenção, a autoridade tentando empunhar ordem e lucidez a um ambiente de caos, e ainda enquanto corriam puderam ouvir essas mesmas vozes, imponentes e agressivas, tornando–se lamentos, transformando–se como uma onda que invade o coração e afoga–o em medo e terror.
Tiros, emurchecidos e rápidos como o vigor de fogos de artifícios, e mais bramidos, ainda piores, enregelados e aterrorizantes; não sabia que o timbre humano era capaz de alcançar notas tão altas e atormentadas, e de novo aquela vibração, instando–os a parar, a olhar de relance para a natureza do horror. Mas eles não pararam, e continuaram a seguir.
Passaram através de ruelas quando alcançaram as primeiras ruas de terra batida, moradores peregrinavam para lá e para cá após suas rotinas de trabalho ou simplesmente passeavam, aproveitando a noite estrelada nos subúrbios de uma cidade que captava a essência tropical do viver.
Continuaram a investida, tentando despistar não somente seus possíveis captores, mas escapar do som, que tornava–se mais nítido, sobrepujando seus pensamentos de tal modo que a sensação de embriaguez era pertinente, palpável. Os moradores, assustados mais com eles do que com os que estavam fugindo, abriram caminho em meio aos becos, praças da comunidade e campos modestos de futebol em meio ao aglomerado de residências.
A natureza do brilho não dizia nada com sua vibração, porém, o som que emitia continuava tão diáfano como seus ritmos cardíacos. Pararam por um momento para descansarem, recuperar o fôlego de uma noite inexplicavelmente esgotante.
Ele ousara perguntar, “está ouvindo também?”, o amigo respondera, aos arquejos: “Estou, a coisa… está… falando comigo”, ele pretendia questionar a integridade lógica da situação, mas não podia ignorar os últimos acontecimentos, e esse ímpeto de aceitar uma nova realidade, como se simplesmente tivessem descoberto mais uma lei da Física, apossou–se de seu ser, e ele perguntou com vigor impressionante até para o seu próprio espanto: “E o que ela diz?” a voz do companheiro vacilou, um arfar, agora seus olhos estavam obstúpidos e refletiam um brilho… não, não era possível que refletissem uma nitescência tão intensa nas suas íris se estavam em um beco razoavelmente escuro; foi quando percebeu que era aquele brilho inimaginável de novo, e estava no mesmo lugar, naquela floresta. O amigo enfim respondeu: “é a minha mãe… eles vão me levar até ela… eu preciso chegar até lá.”
Rosane havia morrido há três anos após sofrer de um derrame; a dor acompanhara o companheiro por bastante tempo, mas era pautável justificar aquele pensamento e atrelá–lo ao fato inexplicável, afinal, era isso que a mente humana tentava fazer em tais decorrências. O comparsa retornou a si, como se houvesse descoberto um paraíso, uma utopia estava estampada em seu semblante: “vão levar a gente… eles querem que você vá… vem, eu te levo”.
Sentiu as mãos rígidas em seu pescoço, subitamente enterrando–se em sua traqueia e bloqueando qualquer saída ou entrada de ar. Tentara resmungar algo compreensível, mas não teria tempo de resolver a situação sem correr o risco de ser pego. Desesperado e tomado pela angústia, agarrou a arma enquanto o camarada, tomado pela loucura, prosseguia em sua voz trêmula e insana: “só precisa esperar um pouco… eles vão ajudar… eu vou com você depois”, e então, encaixou o cano gelado na barriga do sujeito; não tinha ao menos forças para gesticular para que parasse, seus olhos permaneciam abertos e espantados de alegria, aquele lume em sua íris como um espelho que refletia a relva na floresta.
Então houve o disparo.
Depois disso, o som cessou, mas conseguiu ver os vultos fardados subindo o morro, encarando–o com aqueles olhos esbranquiçados enquanto os moradores saíam correndo para suas casas sem saber o que estava acontecendo. Somente o som dos passos retornaram à mente e à audição; continuou a correr para tentar livrar–se deles. Era impressionante o fato de não terem sido barrados na entrada da comunidade ou não terem receado a continuação de sua subida através da favela. Ele precisava contatar os outros no esconderijo, os policiais não teriam tempo nem conseguiriam achá–lo se estivesse no topo do complexo.
E o coração continuava a bater, a bombear a tentativa de livrar–se de um inimigo imparável, acima de tudo por que ele não sabia se fugia da lei ou do terror que assolava–o. Os lances de degraus não tinham fim, então ele retornou o fuzil e, na primeira chance ao ver a farda de alguém, atirou, súbito e preciso; se prestasse atenção o suficiente ouviria o estrépido gelatinoso de carne sendo dilacerada. Luzes em janelas remotas foram acesas e silhuetas escuras surgiram nestas, como verdadeiros observadores silenciosos, testemunhas de um pesadelo cotidiano.
Continuava a subir, os joelhos rangiam e as costas começavam a ceder à fadiga, mas não precisou correr por muito tempo, o sobrado da sede da facção estava ali, vazio, mas ainda ali. Entrou rapidamente na porta gradeada e trancou–se dentro da saleta; as janelas possuíam grades e seu objetivo era procurar um lugar seguro, se alguém adentrasse naquele local ele teria vantagem. Lá dentro havia cadeiras simples e uma mesa de centro, além de armários e uma geladeira encostada em um dos cantos onde tijolos e argamassa enxadrezavam o horizonte noturno como uma fortaleza abandonada.
Estavam aproximando–se, podia ter certeza disso. Fitou de relance pela janela e viu… eram os amigos? Sim, e eles subiam junto aos policiais, faíscas esbranquiçadas saltavam de seus olhos tão sutilmente que ele imaginou que poderia ser o reflexo da lua nos globos oculares. Um medo inexplicável tomou conta de do corpo quando ele ouviu um novo som, uma vibração mais aguda, incomodando seu raciocínio.
Começou a subir na lage usando a escada dos fundos, ansiando para que algum outro conhecido agisse perante a atividade suspeita, porém, ao esgueirar–se para conseguir uma visada que desse uma pontaria mais eficiente para com os outros, ele viu o policial em quem atirara. Sua espinha congelou e os braços e voz fraquejaram enquanto seu cérebro vacilava na beirada de um abismo que era a insanidade.
Ele jurou que não seria possível um ser vivo permanecer no plano conhecido com suas células em pleno funcionamento perante tamanha condição atroz. Conseguiu ver metade da massa cefálica escorrendo pelo rosto do guarda, as cavidades nasais expostas do avesso e a pele pendendo em seu maxilar, com um dos globos oculares sendo balançados por um nervo à medida que saltava os degraus com precisão de um dançarino de balé. Então o escuro ficou claro, e uma luz projetou–se de suas costas e fixou–se no local; o mesmo zumbido. Ele virou–se lentamente com o fuzil em punhos para poder atirar, já aturdido, desviando o olhar do brilho fumegante e paradoxal daquela superfície.
Antes que preparasse a arma, uma mão surgira pendurada na laje atrás de si e agarrara–o, impedindo–o de mirar com precisão, e de repente os vultos escalaram a casa e seguraram seu pescoço, serpenteando mãos violentas em sua pele e procurando o melhor ponto de apoio para imobilizá–lo. Contorceu–se e chutou–lhes, ameaçando gritar enquanto tentava desesperadamente sair daquela situação. Dedilhou enlouquecidamente o gatilho do fuzil, os sons cálidos sendo apagados por um timbre maligno, os rastros de disparos voando como estrelas que caíam em direção ao céu, contraditórios como somente aquela conjuntura poderia ser.
Tentara urrar uma última vez quando outra mão surgira em sua boca, e aquele rosto, oh, deus, aquele rosto desfigurado, agora com os dois globos oculares pendurados e a pele desprendendo–se do maxilar em um som ríspido e gosmento, cada fibra de músculo reluzindo um vermelho caliginoso de um ser espantosamente são.
Quando achava que a própria consciência já estava suficientemente debilitada, o corpo foi tomado por uma nova onda de puro horror quando aquela coisa (pois um humano em condições normais não sobreviveria em tal situação) levantou a ponta do dedo indicador e aproximou–a da própria bocarra deformada, emitindo um sonoro e cacofônico “Shhh”.
E então, abriu caminho, para a luz, para o inimaginável, e o brilho daquele objeto que mais assemelhava–se a um meteoro transformou–se em uma visão, a visão de uma cidade tão exótica quanto a em que vivia, sua estrutura estabelecida de modo não–euclidiano, transcendo processos arquitetônicos e formando ângulos que jamais poderia ter concebido, e ele ouviu o som, oh, ele ouviu a imponência do próprio subconsciente comunicando–se com ele, em uma língua inimaginável, mas que de alguma forma ele compreendia.
O despertar estava próximo, agora era claro, e não precisava de mais do que isso, pois a luz guiá–los–ia para sua verdadeira natureza, única convicção na qual precisava prestar seus esforços. Assim, todo e qualquer resquício de memória e razão apagou–se, e a lógica primitiva abraçou–o, tomando conta de seus sentidos, como se o próprio espaço–tempo dilatasse–se, e então ele soube, soube o que deveria fazer: despertá–lo.
Lá em cima, o Cristo Redentor encarava seus filhos, abençoando a todos sem saber que seu altar estava reclamado.