Lovecraft Rio - Conto
A Sombra do Porto:
A solicitude de uma vida praiana sempre acompanhou–me ao longo de minha empregabilidade no Porto do Rio de Janeiro. Trabalhei durante longos anos e presenciei a industrialização que a gestão de Getúlio Vargas estabelecera para os milhares de trabalhadores das zonas norte e sul da cidade, e mesmo durante as divergências políticas e reviravoltas de seu governo ditatorial, minha família felizmente não fora afetada por tais decorrências.
A sociedade de trabalhadores metalúrgicos do porto sempre mantivera–se forte, e quando a rede de importações e exportações cresceu e consolidou–se na Europa, América do Norte e Ásia Central, como consequência das novas normas de relações internacionais e acordos comerciais com países de primeiro e terceiro mundo em diferentes nações, minha carreira profissional igualmente evoluíra, e a oportunidade de conhecer diferentes culturas felicitou–me ao longo de extensas viagens nas embarcações de transporte de mercadoria e no tempo empregado no porto.
Mas há algo, um elemento do pensamento crítico que permite com que o próprio estado de percepção racional falhe perante vislumbres de um passado lôbrego, e eu, Joaquim Ferreira da Silva Luís, com setenta e nove anos, ainda não consegui galgar os acontecimentos daquela madrugada insalubre e tenebrosa. Estou há trinta e seis anos internado no “Centro Hospitalar Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro”, e sinto que minhas forças estão esvaindo–se ao limite de minha higidez já superestimada pelos profissionais que cuidam de mim. Escrevo esta carta para qualquer um que porventura venha a interessar–se pelo meu caso, e como uma forma de alertar para as almas mais contagiantes e aventureiras sobre o ocorrido naquela madrugada de quatro de julho de 1963.
A natureza fisiológica do meu estado mental permite–me escrever por pouco tempo, e à época em que alocaram–me aqui, não tardou para que eu fosse esquecido por familiares e amigos, até por que fui diagnosticado com estresse pós–traumático permanente e nem mesmo os melhores psicanalistas conseguiram reverter o meu estado de saúde, além disso, tenho com frequência acessos de catatonia crônica, portanto, fico longos períodos de tempo paralisado em um estado quase hipnótico, mas graças ao divino minhas faculdades mentais lógicas foram poupadas e meu vigor na juventude permitira–me sobreviver tempo o suficiente para que resguardasse qualquer chance de preservar o consciente do eu crítico.
Não posso afirmar com exatidão sobre a veracidade de trinta por cento dos acontecimentos predecessores ao horror que presenciei, já que o ocorrido não está fresco em minha memória e os elementos que minha mente tenta entrelaçar e justificar podem ser de fato lembranças construídas, mas, a partir das vinte e duas horas do dia quatro de julho de 1963, tudo, exata e essencialmente tudo foi real, mesmo que a percepção humana não tenha preparo para enxergar com clareza a natureza fidedigna dos detalhes, ainda posso tentar traduzir essa visão surrealista, e é isso que proponho–me a fazer nos dias que restam a mim.
Meus caros companheiros de viagem, Antônio José da Silva, até então gerente de gestão de compartimentos vindouros da Ásia Central, e meu colega de curso Osvaldo Nunes, que atuava na ala de manutenção das embarcações junto a outros profissionais, frequentemente reuniam–se para intervalos festivos após as cansativas jornadas de trabalho dos semestres. Alguns preferiam o conforto de seus lares e outros aderiam–se à regiões remotas da cidade para seu merecido descanso de recesso.
Antes de retornar para os braços de minha esposa naquela tarde, após a finalização das formalidades envolvendo o último cargueiro, permanecemos no porto para averiguar dados sobre os materiais que seriam utilizados nas próximas viagens (que muitos preferiam adiar, mas insistíamos em fazer com antecedência), e o gerente responsável pela nossa frota e determinadas rotas de caráter relevante concordara em acompanhar nossa averiguação pessoal ante ao trabalho inferior da nova administração, trazendo alguns sanduíches naturais e refrescos de limonada. O galpão da área de gestão de manutenção estava vazio, logo, nosso trabalho seria acompanhado por uma noite tranquila e se tudo transcorresse como em nossas previsões técnicas, estaríamos em nossos lares antes da meia–noite.
Caro leitor, mesmo que este registro fique sujeito à crítica quanto ao meu depoimento factual, tendo em vista minha condição clínica nos dias de hoje, saiba que à época eu nunca havia ingerido qualquer tipo de bebida alcoólica ou consumido cigarros, nem utilizado quaisquer outras substâncias ilícitas que alteram a capacidade de raciocínio da mente humana, e nem mesmo sofria com distúrbios psicológicos derivados do cansaço ou qualquer condição precária herdada de meus progenitores, logo, a veracidade das observações e constatações posteriores não fora induzida por nada além do puro raciocínio lógico e sensorial de uma mente sóbria e plena. Outrossim, os trabalhos de catalogação e pedidos a serem estabelecidos respeitavam os padrões de nossa zona de conforto, e a companhia agradável de amigos acalentava minha estadia naquele ambiente.
As ligas de aço e equipamento de soldagem foram estipuladas (pois, mesmo sendo metalúrgico, eu já estava ingressado em cursos de avanço tendo como referência o rápido processo de industrialização do mercado portuário internacional). Terminado os preparativos, pedimos por telefone transporte particular que pudesse levar–nos a nossas residências naquela chona estrelada e vívida. Escrevo este relato enquanto lágrimas escorrem pela minha face já calejada e enrugada, pois os sentimentos transbordam como um milagre cedido à população de um deserto nordestino sedenta que rodeia um poço seco e lúgubre.
O vento fresco vindo de encontro ao meu rosto, o barulho da maresia rangendo os guindastes de manuseio – som este tão assustador para muitos visitantes e que para mim era como escutar o cantarolar de pássaros e corujas em dias contemplativos – e essa natureza de admiração sempre apossara–se de minha pessoa ao desbravar diferentes culturas, mas ali, vendo um feixe amarelo–cinza refletindo o brilho da lua e correndo a costa magnífica que era Copacabana, os morros onde milhares de pessoas perduravam suas vidas olhando para o pélago afora, querendo estarem em outro lugar e imaginando suas almas descobrindo localizações mais belas sem saberem que a mais venusta virtude conclusiva que poderiam ter era a de reconhecer o quão garbosa sua terra natal era.
E eu, que naveguei e andei por muitas regiões do mundo, ao avistar o Pão de Açúcar; a silhueta diminuta, mas perfeitamente perceptível, do Cristo Redentor; a ponte Rio–Niterói que arqueava seu caminho ligando as estradas que levavam para o interior igualmente exótico do estado, era tomado por um puro espírito de gratidão.
Ora, o Brasil, o povo e a alegria de ser quem eu sempre fui sem ter de sentir–me excluído ou pormenorizado pelos meus contemporâneos tomava conta do meu estado interior; esses momentos duraram um instante, enquanto os carros de transporte aproximavam–se e despedíamos nossas expectativas e felicitações ao período de descanso uns dos outros. Meu carro infelizmente tinha sido o último a chegar (pedimos os veículos juntos, mas eles chegaram com intervalos de cinco a dez minutos entre si), e não haviam táxis em conta próximos dali, reforçando que a espera pouparia nossas carteiras. Maldita seja a natureza contemplativa e curiosa do meu eu jovem, que sobrepujara a qualidade que hoje prezo tanto: a cautela perante o desconhecido.
Por ser um dos portos mais movimentados da América Latina, torna–se congruente a constatação de que eu não era o único no ambiente; ainda haviam inúmeros profissionais no local de trabalho. Porém, o galpão em que encontrava–me era o mais afastado em relação aos outros, e onde a maior parte dos navios não conseguia atracar por estar muito próximo à ponte, além do mais, uma área de gestão com seus trabalhos semestrais já encerrados e que transitaria para administrações futuras tornava o ponto de espera ainda mais solene. O sal cintilava através do vento e vinha de encontro a mim, o que eu não sabia era que o vento também anunciava a aproximação de outra coisa.
A credibilidade dos fatos que narrarei deve–se ao meu estado comedido no determinado período, porém, pergunto–me até hoje se isto não deveria tratar–se de uma insensatez, no final das contas, já que se eu estivesse bêbado ou sonolento o suficiente com os montes de comprimidos analgésicos que os funcionários insistiam em ingerir (e que recusava–me a consumir a menos que fosse uma emergência) talvez não tivesse disposição suficiente para saciar os questionamentos que induziram meu agora maldito corpo a locomover–se como um coelho à procura de alimento na toca de um urso.
Um espírito desbravador apossou–se de mim ao ver uma silhueta próxima à margem do píer; estava uniformizada adequadamente para as atividades… da manhã, sim, já era quase dez da noite. Minha mente inocente e agitada induziu–me a aceitar que tal modéstia fora permitida por ignorância para com relação à rotina de trabalho daqueles que visitavam o porto antes de empregarem seus esforços nos empreendimentos do mercado, e somente com um aviso de um futuro colega de campo experiente o pobre coitado notaria seu erro e tomaria rumo em direção a sua residência para aguardar o dia posterior, quando as instruções adequadas seriam–lhe fornecidas.
Como qualquer prognóstico, a mente de um homem sadio e consciente de suas decisões assume o pressuposto de que nada é tão intransigente que não possa–se suportar, e essa premissa de um tolo que acha–se consciente de tudo o que ocorre ao seu redor apoderara–se de mim como o abraço de uma pantera em meio a uma selva que ia muito além das fronteiras tropicais do conhecimento.
Ao aproximar–me amistosamente, percebi uma não–padronização no modo de locomoção daquele homem, “é lógico”, pensei, “enganei–me, já é um veterano e está bêbado”, e é aí onde a fragilidade do senso comum encontra–se, no “lógico”, a ânsia de uma busca contínua por padrões comportamentais que em nossas mentes não passam de fenômenos fúteis, facilmente justificados pela dedutibilidade do pensamento cético. O homem andava de modo que sua deslocação aparentava–se desacertada, como uma tentativa de encaixar–se em uma conjuntura óbvia. Mas como conseguia flexionar e gesticular seus membros inferiores de modo tão acentuado e desproporcional? “É lógico, deve ser manco”, afinal, era comum acidentes de trabalho que debilitavam as qualidades motoras dos profissionais; eu mesmo quase havia perdido minha perna nos primeiros dias de trabalho durante uma reparação de danos.
Então soltei um ligeiro e simpático “Opa, camarada!”, afinal, se o sujeito continuasse a andar em linha reta por mais alguns metros encontraria um vazio que transportá–lo–ia para uma água gélida e fedegosa. Então, ele parou; seu contorno estava à penumbra que projetava–se de um grande guindaste, perpendicular à nossa posição. Um dos braços do sujeito ergueu–se e foi de encontro ao seu chapéu (o que já intrigava pelo simples fato do horário em que nos encontrávamos), e eu chamei–lhe novamente: “Companheiro, aonde vai? São dez e quatro, o expediente só começa no dia seguinte”.
Mas o homem não respondeu–me, “é lógico”, pensei em minha ignorância, “ninguém quer ser flagrado bêbado depois de um expediente, ainda mais se for um empregado que já trouxera problemas em ocasiões anteriores e possivelmente causou acidentes inoportunos”. Aproximei–me ainda mais; talvez fosse um conhecido, afinal de contas. Ele começou a arquear as costas para tentar proteger–se de ser visto, mas eu “não contaria, também já tive meus dias ruins e saí mais cedo do trabalho só para tomar uma água de coco na praia”. Lembro–me dos barulhos dos passos, já estava a menos de um metro quando a sombra disse–me uma palavra: “olá”.
Nunca tinha ouvido sotaque e timbre tão exóticos, e mesmo tendo como referência o português brasileiro, minha língua materna, nunca ouvi uma forma de pronunciação tão contraditória e ríspida, como se os tons agudos e graves encontrassem–se em um balé desvirtuoso nas cordas vocais do locutor.
Intrigado, esperei um sinal de resposta, um simples meneio de cabeça e já seria o suficiente, mas ele parecia acuado, sem jeito. Percebendo nitidamente o desconforto que o homem apresentava em sua aparência torta, esguia e tensa, parei–me ali mesmo e brinquei: “se continuar andando, dará um belo mergulho. Está perdido?”. Sorrindo e com minha voz empreendida ao objetivo de apaziguar o estranho suspense presente na interação, procurei manter–me calmo, aguardando uma possível resposta em meio à ironia.
Então esta sombra, em um breve arfar que arranhara o vento e despertara meus primeiros calafrios, riu, um riso breve e dessincronizado, como se após longas sessões jurídicas descobrisse que todo o processo judicial pelo qual estava sendo subjugado era, na verdade, uma piada, mas risada é a pior palavra que permite–me descrever essa sinestesia de impressões cuja voz transmitira–me, quase como o ecoar de um bramido abafado em um ecossistema pedregoso e claustrofóbico, ao mesmo que dotado de uma amplitude bizarramente musical no tom assumido.
E de repente a sombra arqueada adotou uma postura ergonômica; foi então que o primeiro arquejo veio–me como um golfo de desespero, ao perceber que a silhueta era quase duas vezes o meu tamanho, mas que não parecia anteriormente comprimida, quase como se houvesse uma flexibilidade em seu corpo que permitisse–a dilatar suas fibras e adotar posições inimagináveis.
E depois de um silêncio complacente, talvez para com meu desespero ou qualquer tópico além de meu conhecimento, disse–me, com aquela voz, se é que posso dar a alcunha de voz para a sua natureza comunicativa: “sim, acho que vou dar um mergulho… mas não aqui, aguardo ansiosamente a chegada de meu navio. Você parece perdido, quer vir comigo?”
E essa tentativa de permanecer perto daquilo que tem–se medo, como um objeto no escuro que quando crianças nos mantemos aflitos mas firmes perante sua presença, até que nossos olhos consigam adaptar–se à escuridão e percebam que aquela sombra na verdade era um simples utensílio, com esse estigma contraditório, tomei coragem e disse–lhe, ainda tentando manter um tom cordial em minha voz: “nossa, trabalho no porto há quase dez anos e nunca soube de nenhum navio que chega neste local, ainda mais num horário como esse…”, e então a sombra respondeu–me no que parecia ser uma malícia despretensiosa, quase um júbilo: “existem muitas coisas que você não sabe. Ele já está próximo, tem certeza que não quer dar um passeio?”
Respondi em prontidão, tentando discernir qualquer característica familiar naquele semblante que insistia em permanecer no escuro: “infelizmente, não posso, meu carro está para chegar e minha esposa está esperando em casa, mas quem sabe um outro dia?”. Novamente, o tom miseravelmente carismático não comoveu a sombra, que respondeu–me: “creio que não haverá outra oportunidade. Deixe–me provocá–lo, então: quando você olha para o céu, fita este pedaço de terra e novamente observa as estrelas, não há uma mísera parte de você que anseia por desbravar aqueles pontos esbranquiçados?”. Estranhamente, eu não acuei–me ou vacilei, a sombra pareceu articular–se de modo a encarar o céu noturno, e como o contágio de um bocejo, tão instintivo e irracional, eu igualmente fitei os pontos esbranquiçados que tomavam agora meu campo de visão, e surpreendentemente, a palavra saiu de mim em uma simples confirmação desprovida de qualquer aflição filosófica ou conflito derivado de reflexões internas. Afinal, eu já sabia a resposta: “sim.”
A sombra moveu–se, daquele mesmo jeito anormal, e novamente direcionou seu olhar (ou, pelo menos, era o que eu achava que tinha visto naquele breu) para mim, dizendo–me: “eu só não posso garantir que a sua estadia seja mais acalorada, pois tenho negócios a resolver… mas, um leve passeio será de interesse mútuo, não?”. Fiz que sim (também sem entender o motivo lógico por trás dessas ações que meu corpo tomava) e tão logo o gesto fora recebido, uma neblina esparsa tomara as águas e o chão ao meu redor; o brilho dos postes e dos faróis de veículos ofuscaram–se no horizonte, e quando dei por mim mesmo, estava transmitindo nuvens de vapor pela minha boca através daquela opacidade.
Frio, muito frio; nem mesmo na minha velhice prematura e moribunda nos corredores gelados dessa infeliz casa de saúde na qual hoje vivo senti alguma vez tamanho enregelamento em meus músculos, como se uma onda fantasmagórica afluente dos polos do inimaginável cobrisse meu ser, em uma manta que trazia um torpor resiliente e meditativo, precedendo os fenômenos mais surreais que a mente humana (o meu eu) seria capaz de perceber.
E para espanto de minha pessoa, meu estado de apreensão exasperada fora interrompido pelo barulho de sinos (intermediários e tremeluzentes, mas tão vívidos como uma melodia de Tom Jobim)… sim, eu tinha certeza de que um cargueiro de proporções nunca antes vistas conseguira atracar no porto sem chamar a atenção de ninguém além de mim. Não havia sinalização; as águas pareciam manter–se caladas perante sua navegabilidade e a precisão de sua atracagem sem auxílio de esforços terciários era notória, mas a lataria esbranquiçada e achatada daquele veículo marítimo era ausente não somente de vividez, mas também de qualquer registro ou características que permitissem–me identificar sua origem de produção e rota comercial.
Olhei para trás, como um filho aventureiro olha para seu pai resoluto e consciente, pedindo permissão em uma súplica carente para desbravar os mares de um brinquedo que traria sensações indescritíveis. Este pai lógico acenara–me com uma das mãos (não tardara para eu perceber que não tratava–se de ninguém mais do que um motorista de semblante confuso lá atrás). Mas meus passos, minha mente, meu eu ansiava por saber de onde era aquele cargueiro.
A sombra parou próxima da rampa de embarque (eu não havia percebido que esta havia sido rebaixada), dizendo–me: “e então, quer admirar o pôr do sol?”, pela primeira vez eu vacilei, ainda indeciso enquanto o motorista assinalava para mim com um cigarro na boca e como quem ignora uma verdadeira pirâmide metálica em um deserto aquático. Minha voz soou–lhe entrecortada: “mas… está de noite…”, tão logo respondi a sombra replicara–me em sua retórica matraqueada: “para onde vamos, não. Venha.”
Eu fui.
Ao começar a subir pela rampa, ainda estranhando a neblina que repentinamente tomara conta do ambiente e tentando analisar qualquer tipo de padronização no processo industrial que concebera aquela máquina aos mares, constatei que sua estrutura não fazia referência a nenhuma montadora conhecida. Os sinos ressoavam através da rampa na qual subíamos como o rufar de tambores para uma plateia do circo de soleil. A sombra permanecia com aquele andar contra–intuitivo, e até mesmo a maré contrastava com a conjectura que ainda era racionalizada nos limiares de meu subconsciente.
Ao subirmos no convés, deparei–me com um longo pátio onde a neblina banhava a ausência de qualquer vida ou objetos para transporte e armazenamento. Não obstante, o próprio processo de manobra do navio não respeitava os métodos de navegação ante as correntes marítimas conhecidas, como se de repente estivéssemos nos confins do oceano com ondas que beiravam os dez metros. Mas se de fato nos encontrávamos no porto, por que as águas estavam tão remexidas em um intervalo tão repentino? Tentando recompor–me e acalmar–me, disse, mais para mim mesmo do que para a sombra: “nossa, onde está a tripulação? Este navio não vai a lugar nenhum sem motor ou capitão…”, e a sombra, virando–se para mim, exortou–me: “o motor que move–lhe não precisa ser palatável em todos os momentos. Algumas vezes movemo–nos com processos que somente a fé permite conceber. Mas já vamos zarpar…”
O eu consciente, o pai lógico que acompanha de mãos dadas seu filho e pressente o perigo, induzia–me a recuar, a sair dali o mais rápido possível. Virei–me para observar pela última vez o porto enquanto os sinos viajavam através de meus ouvidos e remexiam o sanduíche e refresco comidos há pouco (e que agora expressavam a minha agonia). Meu primeiro acesso de catatonia instaurou–se em tal ocasião, um fenômeno neurológico tão intenso que qualquer reação motora fora instintivamente bloqueada pelo lóbulo frontal, para reservar energias com o objetivo de retomar qualquer padrão familiar à minha volta. Senti as pernas tremer, meu estômago contorcia–se, minha garganta ficou, de súbito, seca, e minha visão tomara um tom embaçado, pois ao completar a meia–volta, o que vi já não era mais o porto, era um mar abissal.
Enquanto encontrava–me neste delírio (afinal, de que outra coisa poderia chamar aquilo?), a voz da sombra instou–me: “viu? Vai ser um passeio e tanto, segure–se firme. E não tenha medo, o medo não irá te ajudar aqui…”; consegui sentir estalos e vibrações atravessando meu ouvido direito de onde a voz dialogava–me, como se ela finalmente conformasse–se em mostrar uma verdadeira identidade tão bizarra quanto aquela previamente adotada. Eu queria dizer algo, queria pedir por ajuda, mas quem ajudar–me–ia ali? Então, pisquei pela primeira vez nos últimos dois minutos, e fitei o mar.
As ondas tornavam–se maiores à medida que o navio prosseguia, mas estranhara–me o fato de haver três correntezas simultaneamente colidindo–se em bolsões escuros e redemoinhos de proporções inimagináveis. Então, um frio tomou minha barriga e senti minhas entranhas escorregando dentro de meu ser quando o barco deslizou em um negrume aquático, quase na vertical. Agarrei–me em um dos parapeitos e gritei com cada vírgula de vigor para resistir à imensa pressão daquela investida.
A sombra ria enquanto os sinos continuavam a ser soados e o ranger da carcaça daquela estrutura hexagonal (era hexagonal, afinal de contas?) anunciava um momento de alívio, para logo em seguida adentrar em um novo mergulho, tão assustador quanto o anterior; e a sombra continuava a rir, ainda fazendo questão de manter seu chapéu enquanto o vento úmido invadia nossos rostos e deixava nossa pele dormente.
Em um desses períodos de alívio, procurei distanciar–me daquele horror e encarar o céu, reunindo esforços para manter a última refeição dentro de meu estômago. Oh, se há qualquer consciência que conseguiria chegar próxima de estabelecer uma constatação racional para aquilo que eu vi somente poderia ser deus, pois uma nova onda de pavor tomara conta de mim, caro leitor, e atordoara–me de tal modo que até hoje não consigo olhar para o céu noturno sem um acesso de pânico, quando vi que não somente a lua havia desaparecido, mas as clássicas e modestas constelações rotineiras foram tomadas por um manto de pontos esbranquiçados que emitiam brilhos epiléticos como radares do inominável.
Caro leitor, vi cores impossíveis e que transcendiam o espectro de luz conhecido, formando arco–íris demoníacos em atmosferas inconcebíveis. Vi planetas colossais orbitando planetas orbitando outras centenas de milhares de cadeias de objetos estelares, tão diferentes entre si e onde a matéria assumia formas que não respeitavam as próprias leis impostas pela física newtoniana. A ânsia azeda do meu interior voou em um jato ardente naquele mar apático e colossal, então olhei para a linha do horizonte, clara ao mesmo que escura (não conseguia discernir um sol naquela imensidão cósmica, mas o horizonte era tomado por uma faixa gasosa amarelo–clara) onde o mar parecia terminar, e vi coisas, enuncio coisas pois é como posso descrever um efeito distorcido em que minha memória concebe o inconcebível.
Vi cidades gigantescas formadas por construções não–euclidianas, ângulos muito além do plano cartesiano tridimensional, e deus, oh, ouvi coisas. Meu pulmão lutava para conseguir puxar um ar que igualmente soava–me estranho, e que tornava–me esquisitório, como se meu corpo dilatasse–se em realidades, planos paralelos. Então ajoelhei–me e supliquei à sombra: “por favor, deixe–me voltar para minha terra, deixe–me voltar para o Brasil! Eu imploro!”
E novamente, como um fantasma tecendo seu caminho imparável através de meu ritmo cardíaco desesperado, olhei para aquilo. A sombra não era mais uma sombra, tampouco era alguma coisa, pois não havia feição humana ou animalesca naquela criatura; não vi nada ao mesmo que vi tudo, sem saber se vi de fato ou não algo. Sua superfície era tentaculosa; parecia dotada de uma cor escura, mas não de pele morena igual a mim, mas sim um escuro que não parecia purpureado a todo momento, e cuja tonalidade arroxeada cintilava em véus diferentes à medida que alguma luz provida de um sol que tampouco eu enxergava incidia um raio luminoso em sua pele. Tinha membros, mas não tinha articulações. Tinha boca, mas o som que emitia não era de uma voz, como se escondesse–se atrás de um lençol imaginário sua verdadeira face.
Em meu pânico, pavor, eu gritei enquanto segurava–me no parapeito de superfície e material desconhecido, preparando–me para mais um mergulho mortal: “pelo amor de deus, quem é você!?”. A sombra riu à medida que mergulhávamos, os sinos ressoando o difuso irrealismo daquela situação, dizendo–me: “sou conhecido por vários nomes, sou tudo e não sou nada. Só chamei–lhe por que assim sou eu. Estou a todo lugar e talvez pudesse ter sido outro, como há de ser. Tenho milhares de rostos sem ter nenhum deles, bem como milhares de nomes sem tê–los, mas posso ser conhecido pelos meus seguidores e por meu mestre como um mensageiro, que neste momento trabalha para transmitir a carta de anúncio para o seu povo, pode chamar a mim de Nyarlathotep. Um dia nos reuniremos e talvez você consiga entender essa natureza…”
Eu repliquei, apavorado, enojado: “não, nunca, nunca!”, e a sombra riu, a coisa riu e escarneou–me enquanto mergulhávamos em uma onda colossal: “ah, você vai, e saberá a hora do chamado, todos sabem a hora de serem chamados. A sua há de chegar.”, e então, aquele navio afundou, como se ao longe um submarino enviasse–lhe um torpedo; a coisa pareceu pular para os céus, em uma raiva luxuriosa, rindo enquanto relâmpagos de cores esquecidas espetavam aquela carcaça, e afundando junto com aquele navio, minha mente desesperada mergulhara. Tentei nadar para a superfície inutilmente enquanto o vácuo da estrutura e a forte correnteza arrastavam–me de volta para o fundo de suas águas nebulosas, pois se no céu não havia nuvens, lá embaixo elas estranhamente existiam, e de cabeça para baixo vi chuvas tormentosas retrocedendo os processos naturais conhecidos, mas os relâmpagos ali não estavam, e pareciam projetar–se como num espelho da superfície todas as partículas que ali regurgitavam–se.
Caro leitor, sei que neste tipo de situação a percepção de um ser tão ínfimo como eu possa estar sujeita a falha, mas juro ante ao que resta–me de honra, que pude observar olhos, olhos de esmeralda tão brilhantes quanto o fulgor de uma estrela e com tamanho equivalente às luas de Júpiter, observando–me no fundo do oceano maligno; gritei, as bolhas de ar subindo em um desespero através daquela imensidão. Uma espécie de sussurro tomou conta de mim, e desmaiei, sem forças e sem ar.
Quando fui encontrado pela manhã por alguns funcionários do porto no mesmo píer onde o navio havia atracado, relataram–me apenas anos depois que eu não tinha a menor noção ou qualquer capacidade de raciocínio tão observada por antigos amigos. O próprio gerente e meu colega mostraram–se perplexos mediante meu estado mental, e minha esposa e filha caíram aos prantos quando presenciaram meus longos a agonizantes acessos de pânico.
Os anos passaram–se e as memórias desse fatídico dia, ou noite, ou qualquer coisa do tipo, vieram à tona, a sono tornando–se mais nítidos. Não ousei contar isto aos médicos e enfermeiros encarregados de mim com pena de ter de presenciar a minha família sofrendo, mas a cada dia, a cada sonho, eu vejo aqueles olhos encarando–me.
Eu não preciso discernir os sussurros abomináveis e encarar aquele mosaico esmeráldico de horror para saber o que procuram dizer; aquela coisa realmente clama–me, e está aos poucos acordando, bem como minha sanidade retorna. Escondi minha melhora para os profissionais ao meu redor, pois nunca cometi ato de desobediência ou agressão, e como consequência disso posso dar–me a liberdade de com frequência passear na lavanderia com outros enfermeiros; mas na noite de amanhã será diferente, eu tenho certeza disso.
Por este motivo, fica o meu relato para aqueles que conseguirem encontrar esta carta. O motivo pelo qual minha vida ascendeu–se também foi o motivo pelo qual ela logo poderá terminar, e infelizmente o bom senso já esvaíra–se de minha pessoa para que eu pudesse interromper tudo o que acontecera até agora, e o que vai acontecer. Dedico estas últimas palavras em forma de agradecimento àqueles que persistiram ao meu lado, e como forma de despedida, pois se esta carta de fato encontra–se em suas mãos, significa que eu não retornei, mas saiba que fiz de tudo para entender um pouco mais daqueles acontecimentos, e se não resisti às respostas a mim fornecidas ou por mim encontradas, então posso ter a única certeza de que, pelo menos, morri tentando.