Lovecraft Rio - Conto
O Túmulo de Cabo Frio:
Às vezes a vida de um homem é compelida a ingressar em uma rede de acontecimentos ocasionais que sua mente fajuta insiste em definir como destino, e se o ponto de partida do campo de ideias que induz um ser humano a sair de sua zona de conforto para um empreendimento visando a conclusão de metas superficiais e levianas, que nada mais congregam em sua vida do que a inevitabilidade do confronto com a solidão e o desânimo de uma trajetória pequenina e limitada – um rastro de poeira em uma atmosfera já poluída por pessoas ignorantes – então este mesmo ser depara–se também com a condição primordial que suplanta todo o pináculo do pensamento lógico, construído através de séculos pela filosofia e a ciência moderna: o medo da morte.
Alguns estudiosos insistem em proclamar tal condição com o intuito de promover um estoicismo barato ou simplesmente abnegar a aflição factual, enfrentando as evidências com a mentira que denominam de religião, e se tal religião insiste em engrandecer ou caracterizar o eu maior, ela igualmente justifica suas indulgências determinantes a uma futura realidade, um plano celestial que contrasta o status quo nilista de nossa existência.
Tal como o processo evolutivo permitiu ao homem sobrepujar as redes de poder básicas da cadeia alimentar, ela igualmente contribuiu para a consolidação de uma malha ainda maior, em um nível cósmico, no campo onde os elementos racionais entram em contato para reunir soluções que tentam outorgar uma resposta ante o evidente, a única constatação que permanece nos berços do nosso subconsciente e vêm à tona quando a vida lembra–se, de evidenciar em nossa presença, o quão eventual pode ser o último arfar de uma pessoa.
As condições que levaram–me a atuar profissionalmente como agente funerário devem–se ao simples fato de recordar a mim mesmo a priori de tal inconstância. E eu, Matheus de Oliveira da Conceição, que não encontrei conforto em nenhum rito de fé ou nos artigos sensacionalistas e irrelevantes para a compreensão cósmica através dos periódicos acadêmicos, encontro nesse ofício a oportunidade de tentar esclarecer (pelo menos em uma escala introspectiva) a filosofia observacional perante o perecimento de relações amorosas, paternais, maternais, profissionais e espirituais provenientes da perda de um ente querido; elucido querido pois aos olhos do acaso toda morte é uma degeneração lamentável à existência; mesmo aos assassinos mais implacáveis é dado o luxo da reflexão através de seus contemporâneos e futuras gerações de egoístas, que utilizam da sua desavença póstuma para elevar–se a um gambito teatral e demonstrar através desse o quão ignominiosos são aqueles que também aplaudem tal peça.
E nessa linha que define a metalinguagem matraqueada da mortalidade, encontro–me pela primeira vez ciente de que as expectativas otimistas das mais supersticiosas e fantásticas convenções sobre a vida após a morte somente mantêm–se de tal modo formuladas para acalentar os mais tolos e cujo sofrimento imediatista eres adiado mas que não tardarias em eclodir numa epifania enlouquecedora, posterior ao trágico cotidiano pelo qual estamos sujeitos, e aos verdadeiros eruditos (não aqueles que alienam os menos aprouvidos nos púlpitos dos povoados reclusos nem aqueles que a si mesmos alienam e enclausuram–se em corredores repletos de livros e artigos no refúgio de mofo político e sórdido que são as universidades mesquinhas), mas sim àqueles que tratam–se do verdadeiro nicho de sabedoria amaldiçoada com a conclusão de que até mesmo os dogmas mais aterradores das mais exóticas culturas não são capazes de descrever a inominabilidade de um fenômeno não obstante perturbador e palatável, esses terão de conviver com tais ideais até o fim de seus dias.
Para dar detalhes contextuais ao relato em que empregarei meus esforços para registrar ao longo das próximas semanas nessa cidade de interior, igualmente preciso estabelecer a você, caro leitor, uma linha de raciocínio transgressora e que precedeu os fatídicos dias do pior enterro de minha vida. Portanto, cabe salientar que durante muito tempo achei que mesmo tendo experienciado indiretamente todo o processo de luto de parentes distantes, familiares e admiradores perante uma morte, consequentemente, tendo sido rotineiramente alertado da repentina condição de mortalidade acorrentada aos vivos, tão imutável quanto as leis da relatividade geral, meus piores momentos certamente seriam os funerais de meus pais, cuja condição financeira precária não impedira–lhes de fornecer–me todas as graças que uma criança de classe média poderia gabar–se em guarnecer, e mesmo quando demonstrei–me indeciso na escolha de minha profissão (desde aquela época eu já confrontava as ideias liberais e conservadoras sobre a concepção de trabalho e bem–estar social), eles mostraram–se compreensivos e amistosos.
O resultado disso fora o meu ingresso aleatório na área de gestão fúnebre, e que devido a minhas escolhas e competências, acabei conhecendo renomado senhorio cujo saber mostrou–se resolutamente válido. Ao ter sido promovido como agente por Afonso Faria de Eustácio, em uma de nossas conversas após a proposta de empregabilidade ter sido aceita, ele disse–me: “lembre–se, até os mortos podem ser o ganha–pão das pessoas, imagine o que seria de nós em um mundo utópico onde não há morte?”; tal pensamento perdurara atormentando–me através de anos enquanto exercia meu ofício, e como um deficiente espiritual ansioso em levantar hipóteses em uma realidade paralela, sepultada nos limiares de minha mente, era sobrepujado pelo receio dos possíveis gatilhos de trauma que seriam–me disparados e enfraqueceriam uma qualidade notória no meu ofício: a resiliência perante a perda.
Desde as cerimônias pagãs mais antigas até os mais modernos sepultamentos católicos, nossa rotina de trabalho enquanto intermediadores do acaso que em sua eloquência aprazível estremece a estrutura social íntima dos mal afortunados, temos como obrigação entretecer uma linha mentirosa junto aos familiares do falecido, linha essa variável e tão contraditória como o discurso desdenhoso da ralé do senado, enunciando afirmações vagas e deprimentes, acima de tudo pelo propósito escapista de suas implementações, tais como: “ele está em um lugar melhor agora”, “não conhecemos os planos de Deus”, “ele será lembrado”, “sinto muito pela sua perda”, “foi conversar com os anjos”.
Nós, agentes funerários céticos (ainda somos menores em número, mas não tardará para que as pessoas enxerguem a farsa presente nos discursos conservadores e enfrentem a realidade sórdida tal qual ela é), costumamos brincar que o céu está tão lotado quanto os leitos do nosso sistema de saúde, e seus funcionários angelicais nada mais são do que concursados na tese tosca de que enquanto assalariados da fé, suas rotinas de trabalho são impostas por Deus de tal forma que a cada ano as vagas para anjos tornam–se mais concorridas, afinal, quando está–se no paraíso qualquer oportunidade de ficar próximo ao divino superior é merecida.
Mas perguntamo–nos também se o inferno ainda seria a antítese caluniosa e liberalista de tais afirmações, pois se de fato um anjo exonerado pela instituição celestial do pensamento mais indescritível e transcendental encontrara conforto nos subúrbios do plano astrológico, então o inferno talvez fosse mais agradável, já que grande parte das pessoas que morreram e passaram pelas nossas casas em sua dicotomia sépia enxergaram em seus entes desprezíveis qualquer qualidade mal argumentada que permitiram–nos ascender ao paraíso; desse modo, nós ironizamos as decorrências e até mesmo alguns com ideais ateístas, como eu, evidenciamos que o paraíso é o lugar em que menos desejamos estar após nossas mortes.
Porém, nesse limiar onde real e a irrealidade atuam, alguém como eu deve no mínimo amparar–se na chance de aproveitar cada momento, pois as opiniões generalizadas por mim retratadas anteriormente além de não passar de sacrilégio barato, também diminuem o caráter da oportunidade que a vida dá ao viver através da condição que somente a morte impõe, e tais provocações somente devem servir para impulsionar nossos corpos a agir. Portanto, eu nunca achei que em algum momento da minha vida o agir falhar–me–ia (talvez, como citado anteriormente, a morte de meus pais fosse a única exceção), pois estava ciente e reconfortado na ideia de que na pior das hipóteses, eu simplesmente morreria, e a dor sempre é maior para os que ficam. Sempre.
Foi com esse pensamento que no dia vinte e seis de janeiro de 1993 fomos chamados para cuidar de um processo funerário na cidade de Cabo Frio (interior do Rio de Janeiro) de um renomado comerciante vindo de Portugal, Pedro Fonseca da Cunha Rocha, e para evitar qualquer tipo de perturbação no estado sensível de nossa clientela, fomos buscar o relatório do laudo da autópsia, o que já intrigou a mim e a meus colaboradores, visto que quase sempre os laudos ficavam prontos com antecedência às quarenta e oito do sepultamento vigente, mas sem pestanejar prosseguimos o nosso plano, para contatarmos os profissionais responsáveis pelo embalsamento e preparo do morto o quanto antes. E durante o intervalo de tais burocracias, guiaríamos o cliente com delicadeza e aproveitando de sua vulnerabilidade para instá–lo a custear de forma ostensiva o cadáver encomendado.
A universalidade da morte é, além de uma tragédia, uma facilitação, visto que o processo de luto em que um humano sadio encontra–se sujeito é fortemente embasado em ciências da psicologia e facilmente reconhecíveis através de exercícios de dialogação simples, logo, o primeiro passo para acolher uma vítima é conhecê–la tão bem quanto a palma de sua mão, e “aquele que conhece bem a palma de sua mão sabe o quanto de dinheiro pode retirar da carteira”, Afonso costumava dizer. O falecido tinha dois laços fortes evidentes, uma esposa afrodescendente, Késia Gonçalves Dias Fonseca e uma filha que haviam concebido há, pelo menos, dez anos, Natália Fonseca Dias.
Ao chegarmos na cidade de Cabo Frio, informamo–nos sobre a procedência social de Pedro, visto que sua estadia no Brasil era longeva, mas já havia passado alguns anos na África do Sul, em Moçambique e Zimbábue, e entre intervalos que variavam de oito a dezessete meses residia em Portugal, cujas relações e vivência era notada por seus companheiros açorianos. Tratava–se de um renomado comerciante de regiões costeiras e que denotava interessantes investimentos nas capitais por onde passava, as principais delas sendo Lisboa e Rio de Janeiro.
Pareceu a nós que suas últimas relações comerciais afetaram diretamente suas novas rotas de viagem a navio (que insistia em fazer, mesmo dotado e ciente das sedes de controle via rede mundial de computadores na Europa e América Latina), e sua aproximação a dois companheiros também empresários, um vindo do Oriente Médio e outro da própria região norte da África (Omar e Adewalé, respectivamente – os sobrenomes não utilizarei para poupá–los de chacota, mesmo que desconfie de suas alcunhas) representaram um desvio não somente do processo comercial que Pedro era conhecido por implementar, mas igualmente surpreendeu os colaboradores do próprio gestor.
Por que citar tantas informações sobre o passado de uma pessoa agora jazida provavelmente no último dos infernos (e você entenderá o por quê da minha preocupação, ou assim espero, muito em breve) e que não representaria qualquer mudança no modus operandi da empresa que impõe tais metodologias de sepultamento?
Trarei dois pontos de suma importância para ter levantado todos esses aspectos por mim procurados: 1) você, caro leitor, surpreender–se–ia com a imensa cadeia de oportunidades de negócios que podem ser conferidas durante um funeral, pois enquanto os caixões estiverem sobre a terra, haverá pessoas olhando para eles; e naquele abismo onde as mentes renegam constantemente seus infortúnios caliginosos, elas têm um vislumbre de astronômicas unidades de medida elevadas negativamente à décima potência, mas tão perceptíveis quanto o coeficiente linear de uma função exponencial que transporta o intransportável, de que elas um dia estarão ali, naquele lugar para onde agora choram.
Eu particularmente acredito que a vida seria mais feliz se não utilizássemos caixões, pois se nos foi dada a característica de ser os únicos na natureza conhecida que podem pensar sobre a morte em si, deveríamos efetivamente observar a morte como ela é, e não escondê–la atrás de uma caixa de madeira que logo servirá de hotel para gases asquerosos e vermes famintos (mesmo sendo um agente funerário), mas esse não é o meu segundo ponto; 2) meu segundo ponto é ainda mais importante, mesmo o primeiro sendo de virtuosidade elementar superior em sua articulação: o principal, o factível ponto foi que minhas primeiras doses de horror foram ingeridas a contragosto ao coletar o laudo da autópsia e constatar uma relação direta entre a atmosfera social pela qual Pedro esteve englobado em seus últimos dias junto a seus exóticos companheiros e a causa de sua morte, igualmente intrigante e que de nada alertara aos investigadores civis.
A autópsia indicava que o corpo morrera devido a uma fratura de segundo grau no pescoço e corte unilateral agudo que rompera os tecidos da traqueia, mas hematomas ao redor da superfície posterior junto à pressão encontrada nos globos oculares e vasos sanguíneos da face indicavam morte por estrangulamento. Conversando com o médico legista, intrigou–me o fato de que a causa da morte do acidente na casa de veraneio não poderia justificar–se, mesmo nas condições mais extraordinárias em que Pedro poderia encontrar–se, e é indubitável que como consequência dedutiva o sangue afogaria–o rapidamente e a morte por estrangulamento somente poderia ter ocorrido imediatamente antes ou durante tais condições, logo, a hipótese de assassinato tornou–se plausível ao mesmo que contraditória, visto que se o corte na traqueia e a fratura no pescoço realmente foram causados por acidente envolvendo explosão decorrente de vazamento de gás (e acreditando que sua causa fora resultado de uma falha no item), alguém poderia ter aproveitado–se das circunstâncias e tê–lo matado com uma perfuração com algum objeto pontiagudo. Mas então, por que o estrangulamento? Ignorar (caso a perfuração realmente tenha sido causada por um estilhaço desgovernado) era igualmente uma opção plausível, visto que não haveria tempo do corpo ser socorrido. Alguns desses apontamentos foram feitos de forma superficial, mas nenhuma constatação suspeita fora articulada.
Além disso, quando a discussão das possíveis causas intensificaram–se, o profissional pela análise do caso apresentara dois dados que deixaram–me perplexo, e tive que segurar–me em uma bancada para manter corpo e mente no mesmo lugar e não vacilar perante relatório tão bizarro. Não somente o corpo morrera por estrangulamento, como também não houve constatação de qualquer invasão do sangue para o interior da garganta, e observações posteriores evidenciaram perturbação palatável no tecido da região do corte moribundo, causada por uma reação química responsável pelas alergias reumáticas.
Amostras foram removidas do tecido afetado para exame toxicológico e notara–se a presença de uma substância semelhante a uma secreção e que não pertencia a fenômenos derivados do corpo, nenhuma coagulação interior fora constatada, mas sim de um agente terceirizado que não fora possível de ser identificado. A análise da substância ainda estava encaminhada, pois segundo as pesquisas laboratoriais, o composto não respeitava nenhum padrão conhecido, não encaixando–se em qualquer escopo de catálogo científico ou que fosse possível ser registrada, e mesmo após exposição a temperaturas extremas, não houvera qualquer alteração em suas faculdades elementares e nem mesmo a utilização de solventes contribuíra para qualquer esclarecimento.
Com um fascínio cauteloso, o profissional apresentou–me um frasco contendo parte da substância viscosa, e o simples ato de olhar para ela era enjoativo. À luz das lâmpadas, sua superfície contrastava uma gastura digna de heterocromia, e este aspecto desconhecido interagia com a imagem que vinha a minha mente, igualmente indescritível e caluniosa. Ao perguntar a colaboradores que estavam presentes na noite anterior ao custoso empreendimento comercial ao Brasil, o profissional relatou–me que além de nenhuma semelhança no material genético ter sido constatada após a coleta de objetos de análise, os relatos (junto ao exame toxicológico e histórico de saúde) indicavam que Pedro estava perfeitamente sadio e que havia decidido fazer uma breve expedição com seus companheiros na Ilha de Farol, Arraial do Cabo, mas residiu em Cabo Frio pois era a cidade onde situava–se uma de suas casas de veraneio.
Dados os compromissos daqueles próximos do perecido, após as averiguações, não tardamos em preparar o corpo e o funeral que Késia e Omar insistiram em fazer na própria cidade quando contataram–nos por telefone, visto que nosso estudo do caso não tinha nenhum outro intuito que não a curiosidade, e após o consentimento de outros conhecidos e da filha do casal (outros familiares não marcariam presença, afirmaram, apenas seus empregados), despedi–me do profissional responsável e com minhas dúvidas sobre sua competência, retirei–me do estabelecimento e forneci instruções para meus empregados.
Durante o processo de afazeres ao dia do enterro, visitei o árabe (que sabia falar português muito bem, a propósito) depois dele convidar–me para uma breve conferência em um hotel próximo ao Cemitério Municipal de Cabo Frio, local este em que coincidentemente eu estava alojado.
Era por volta das oito horas da noite quando adentrei no quarto de meu anfitrião, que recebeu–me muito bem–vestido, com roupas leves e um notório turbante com detalhes em zibelina. Seu sotaque era carregado por causa do árabe e possuía leves nuances do português europeu, mas a dialética era perfeitamente compreensível. O quarto era modesto: um assoalho com tapete simples e uma cama de casal, além do banheiro e utensílios de laser (televisão, frigobar, e uma estante com livros).
Tentarei reproduzir nas próximas páginas o teor de nossa conversa, visto que sintetizar sua dialogação prejudicaria o entendimento de um horror que eu nunca poderia ter concebido, mesmo em meus piores pesadelos. Após uma breve confraternização, sentei–me na borda da cama amigavelmente, enquanto observava o árabe que, por sua vez, estava apoiado na sacada, de vista para mim; a brisa transportava um perfume doce em direção ao meu rosto enquanto bebericávamos goles de cerveja. Meu anfitrião, com sotaque bem articulado, iniciou nossa conversa:
– Então, creio que vieste até aqui não somente com o propósito comercial, não é?
Cordialmente, prossegui o raciocínio:
– Realmente, não foi apenas por motivos comerciais que aceitei esta reunião. Eu gostaria de falar sobre Pedro Fonseca e a noite em que ele faleceu. Sei que não sou investigador civil muito menos tenho autoridade para impor qualquer questionamento passível de esclarecimento, mas de todos os trabalhos funerários em que atuei, esse sem dúvidas é o mais bizarro e interessante. E não parece–me que a competência dos funcionários desse estado seja lá essas coisas…
O tom de voz de Omar tornara–se sutilmente argiloso, como se cada palavra fosse medida com cuidado antes de ser pronunciada:
– Às vezes achamos que somos curiosos, e que essa curiosidade sempre é pautada pela razão e a busca do saber, mas também pode ser um aviso: o medo intrínseco de não ter certeza daquilo que está prestes a acontecer e acima de tudo, do que já aconteceu. Tu achas que este é um tema curioso, mas não muda o fato de que o bizarro não tornar–se– menos incoerente caso tu tenha–o apropriado–o como interessante.
Em minha ignorância, repliquei–lhe:
– Talvez, mas você igualmente assume que embarcar nessa busca seja uma escolha, como se nós pudéssemos escapar do inevitável, quando na verdade é ele que atrai–nos, é ele que permite com que evoluamos, e até agora sempre encontramos uma resposta. Com um caso tão ínfimo como esse (com todo o respeito ao falecido, é claro), não poderia ser diferente. E a melhor prova disso é que estou aqui agora, não estou?
O árabe, intrigado, perguntou–me:
– Ora, se este é tão ínfimo por que interessa–te tanto? Podes muito bem sair daqui e retornar aos teus aposentos, já que o enterro é amanhã à noite e tu estarias em casa tão cedo quanto qualquer um de nós poderia estar.
– É simples, para mim nunca foi uma opção, eu simplesmente preciso saber. E caso você se recuse, ficarei irritado e mal–humorado durante algum tempo, até que esqueça–me do caso e volte ao status quo cotidiano, mas já que tenho a oportunidade, por que não aproveitá–la enquanto posso?
– Muito bem, então. Não posso julgá–lo por tuas atitudes, já que em minha juventude igualmente fui impelido a ingressar nesta malha filosófica, mas igualmente não posso garantir que tuas faculdades intelectuais não sejam afetadas com o prosseguimento desta conversa. O que queres saber?
E fora com essa resposta, essa maldita e desgraçada e amaldiçoada resposta, que tudo começou:
– Tudo. Quero saber tudo.
O árabe riu, premeditando grande parte dos prováveis acontecimentos dos próximos dias, mas não tardou para que adotasse uma postura resiliente perante a minha ignorância e respondesse–me:
– Muito bem, comecemos pelo princípio. Não posso contar tudo pois tenho um compromisso de confidencialidade com alguns contemporâneos, porém, posso apresentar–te algumas ideias relevantes e que trarão um pouco de luz à nossa conversa, e se realmente estiveres disposto a descobrir a veracidade do que direi, teremos uma oportunidade muito afortunada de comprovar os elementos abordados. Espere um momento, por gentileza…
Meu anfitrião andara em direção às estantes, os passos calmos e suaves acentuando as expectativas que instigavam minha curiosidade a manter–me no local. Omar retornou após um momento, trazendo consigo um livro; o produto pendia em suas mãos estranhamente flácidas, os dedos pontiagudos e as unhas afiadas. As bordas das páginas grossas estavam encardidas pelo tempo e o couro de sua capa e lombada estava nitidamente desgastado com resquícios de uma moldura e costura avermelhada. Ao deitá–lo em uma bancada próxima de nós, pude jurar que senti um perfume mofado e semelhante aos aromas de necrotério irradiando daquela obra. Meu anfitrião disse–me:
– Aqui está.
Confuso, perguntei–lhe:
– O que é isto? Este livro irá nos ajudar em algo?
– Veja por ti mesmo, mas pelo amor que tem a tua vida, evite abri–lo e folhear por muito tempo.
Hesitando, aproximei minhas mãos àquela superfície enrugada e puída, tateando o alto–relevo da costura até identificar seu título:
“NECRONOMICON”
AL AZIF
Prater qvo fvriosvs arab ex Damascva
Abdul Azred
Logo abaixo das linhas, um círculo com símbolos contornava uma espécie de criatura marítima, mas as letras não pareciam arábicas. Curioso, perguntei–lhe:
– Estas letras… não são árabes… mas o autor é, qual é a procedência linguística, latim, egípcio, indiano?
– Nenhum dos dois, é ‘R`lyehian’.
– O quê? Nunca ouvi falar em tal língua… relacionada a ocultismo, creio eu?
– Também. Tu já pesquisastes sobre?
– Na verdade, trabalhar como agente funerário é uma excelente deixa para conhecer diferentes ritos religiosos, mas este daqui é desconhecido para mim. O que ele tem de importante para nossa conversa?
– Pedro era fanático por esta coisa, começara há alguns anos, quando pusera as mãos em um exemplar de minha biblioteca pessoal da Síria, desde aquela época, trabalhou junto a Adewalé em algumas incursões no Egito e também em outros recônditos no norte da África em teus períodos de ‘recesso’ em Portugal. Trocamos correspondências…
– Espere um momento, ele ficou fanático por isto? É só um livro, não pode…
– Sei o que estás pensando, mas preste atenção: evite percorrer estas páginas, até mesmo eu li muito pouco deste livro.
– Está bem, está bem, prossiga.
– Trocamos correspondências, ele jurou–me que alcançara resultados magníficos após experimentos no laboratório de tua mansão, mas para exercer contato direto com ele…
– Ele quem?
– Não posso dizer aqui, não agora, é perigoso, mas tu precisas saber que nosso empreendimento comercial ao Brasil atuou–se apenas como premissa para o real teor de nossa viagem. A Ilha do Farol fora uma escolha sábia, já que era um dos melhores locais de estadia depois de Pernambuco…
– Espera, o que Pernambuco tem de tão interessante?
– Não Pernambuco, mas o que tem a leste dele, no mar.
A conversa deixava–me mais confuso a cada vírgula, como aquilo tudo relacionava–se? Tentei segurar–me em uma bússola racional, supondo:
– Quer dizer… Fernando de Noronha?
– Exato, mas como os gastos e os riscos seriam muito altos nessa época do ano preferimos estabelecer uma linha para o interior do Rio de Janeiro, assim o contato seria facilitado sem levantar tantas suspeitas.
– Esse empreendimento partiu somente de Pedro? Ou vocês ou a família dele tomaram parte nisso também?
– Um pouco dos dois, confesso que estava curioso, mas não faço parte de nenhuma organização que não a daqueles que assim como vós, são perigosamente curiosos. Já Adewalé pertence a um grupo seleto e contribuíra para esse empreendimento em proporções surpreendentes até para mim. A esposa de Pedro mostrou–se interessada, não sei o quão a par de teus experimentos e pesquisas ela estava, mas Késia tem, nem que seja baixa, parte na ciência do caso. De um modo ou de outro, ele precisaria utilizar o Farol e necessitaria da ajuda de correligionários, já que o ‘Buraco do Meteoro’ próximo do local era um indicativo de uma comunicação promissora.
– Um momento, estamos concebendo este contato da mesma maneira? Ele é uma pessoa ou uma entidade?
– Nenhum dos dois, mas parece–se com ambas as categorias sem de fato pertencer a qualquer hibridização das duas. Não tenta–te entender, apenas escute. Os procedimentos foram preparados para a terça–feira passada, os correligionários prepararam–se enquanto um transporte particular levava–nos a esta cidade, paramos apenas uma vez, em Rio das Ostras, e viemos direto para cá, Cabo Frio (e posteriormente Arraial do Cabo), onde consolidaríamos o ritual.
– Quer dizer que era um ritual, no final das contas? Alguém inesperado feriu–se ou presenciou o ato?
– Na realidade, escolhemos uma boa hora em meio ao crepúsculo e os utensílios de ativação já estavam prontos quando chegamos no farol; já que conseguimos contribuir para a segurança local, foi–nos concedida a oportunidade de ficar no lugar por mais tempo. Os companheiros de Adewalé só serviriam para afastar os mal intencionados, pois apesar de complexo, grande parte do processo poderia ser efetuado pela própria dupla.
– Você estava no local?
– Sim, Késia também estava, mas retirou–se antes do ritual começar. Ainda lembro–me com terror, a noite estava fria e chuvosa, um vento gelado incomodava nossos corpos e havia alguma estranheza naquela encosta praiana. Mas como uma testemunha ocular, adentrei na estrutura junto a Adewalé e Pedro, que estabeleceram uma mesa em um ponto específico da torre.
– E então? O que viu?
– Escute bem, eu posso ser um credor digno e gostar de contar histórias laboriosas, mas juro que eu vi algo… sem vê–lo… sim, sei que soa–te difícil de entender, então tentarei ser claro em meu relato. Não sei se a memória que vem à minha mente é construída, mas podia jurar que quando Pedro pegara aquele livro, os ventos intensificaram–se e as nuvens tornaram–se mais escuras. Adewalé empunhava alguns sais luminescentes (não os usuais usados em candomblé ou umbanda, eram diferentes em algum modo que não sei dizer–te), e juntos começaram a manusear alguns instrumentos metálicos e de ângulos grotescos que eu nunca tivera visto antes. Pedro, com aquela feição de pavor e admiração, começou a entoar uma frase estranha nesta mesma língua quando o processo pareceu satisfatoriamente encaminhado.
– Sabe me dizer o que ele falou?
– …
– Omar?
– Ah, perdão, sim, sei. Perceba que não posso citar–te determinados trechos devido à periculosidade de nossa situação, mas ele dizias basicamente: ‘Nafl`fhtagn ehye cahf tharanak r`luh. L`nog c`…’
Havia algo na voz de meu anfitrião, mas também no próprio entoar daquela língua estranha e esguia, que instigava uma angústia em meu ser. Era como se entendesse em meu subconsciente, de modo que cada palavra anunciava um terror desconhecido mas tão tangível quanto a estrutura de uma mansão monstruosa passos a frente de mim. Após um silêncio reflexivo, perguntei–lhe:
– O que quer dizer?
– Queres dizer: ‘Desperte aquele que traz o poder, venha para nós…’
– Quem?
O árabe não havia percebido, mas sua mão estava sangrando devido aos estilhaços do copo que partiram–se, tamanha era a força exercida pelo nervosismo. Seus olhos demonstraram uma opacidade estranha, desvairados, para somente depois encararem–me no fundo de minha alma. E ele simplesmente disse, como um sussurro, como se aquilo fosse uma maldição, um tabu, como se uma arma estivesse prestes a disparar em sua cabeça:
– Azathoth…
Caro leitor, no momento que ele elucidara aquela palavra, eu senti um frio inominável atravessando minha espinha, e minha cabeça pendeu, não pelo dialeto, mas pelo que veio depois. Sei que havia bebido, mas não havia sido nem meio copo de cerveja, e eu juro que ouvi… era o livro, ele falou comigo, com uma voz que pertencia a todas as línguas sem ser uma em específico, uma voz gutural, afiada: “Ande, Matheus, abra e descubra por você mesmo aquilo que ofereço…”. Espantado, arquejei e joguei o livro em direção a cama, olhei para o árabe, perplexo (ele não parecia ligar para o corte em sua mão; lá fora, o céu começara a ganhar nuvens cinzentas):
– O–o–o… o livro, esse Necronomicon, fa–falou comigo.
Omar pareceu ainda mais apavorado em sua catatonia macabra, a voz quase longínqua:
– Não foi o livro. É o que ele queres que tu pense.
– Então quem foi!?
– Senta–te, tenho que contar–lhe o resto.
– A sua mão…
– Não ligue para minha mão… – esbravejou, tentando recompor–se… – depois de terminar os cânticos principais, vi o semblante de Adewalé e Pedro mudar; raios começaram a cair próximos a nós, e eles aparentavam estar surpreendidos, encarando a maré nebulosa a nossa frente, teus queixos estavam caídos em uma mistura de horror e alegria. Lembro–me de ouvir Pedro dizer: ‘Ele está aqui. Vamos, rápido…’, Adewalé seguiu–o, mas eu não vi absolutamente nada. Adewalé desceu o morro e Pedro ficou parado próximo a um precipício, tentei aproximar–me dele, mas o português congelou–se lá, parado como uma rocha, murmurando qualquer coisa em tua voz trêmula e tuas pupilas moviam–se como se estivesse sonâmbulo; seu corpo não respondia a nenhum estímulo básico. Sendo assim, levei–o até tua casa em Cabo Frio e dispensei os correligionários, mas quando coloquei–o na cama para descansar, ele dissera–me em um sussurro: ‘ele escolhera–me, Omar, ele escolhera–me. Ele disse que há de levar–me até a cidade perdida, mas precisas abrir meus olhos, depois eu igualmente despertarei.’
Encarando aquele pedaço de couro encadernado, enquanto remontava cada cena narrada pelo meu anfitrião como uma peça de um quebra–cabeça medonho, eu indaguei:
– Pressuponho que aquela tenha sido a noite da morte.
– Sim.
– E Adewalé?
– Apareceu–me no dia seguinte dizendo que precisávamos marcar o enterro para amanhã à noite, e que precisávamos ligar para a tua agência específica, nas palavras dele, ‘Matheus deveria ajudar–nos.’
O árabe parecia estranhamente calmo após o abrupto exacerbar dos estilhaços do copo pelo assoalho, e eu, ao ouvir aquilo, recuei, vacilei, afinal, como era possível ele conhecer–me sem que nunca tivesse havido qualquer coincidência que permitisse–o saber o meu nome? Minha voz era como a de um garoto:
– M–m–mas… como ele saberia o meu nome? Você está blefando…
– Ele disse–me que tu agirias assim também, mas que ‘conhecia a morte tão bem quanto a palma da sua mão’, se os lucros fossem–te convincentes.
Nesse instante, deixei–me cair na cadeira (havia levantado depois do surto provocado pelo Necronomicon e não consegui acalmar–me), embasbacado, a mão cobrindo meu rosto e os olhos vidrados naquele sujeito enigmático:
– E que ajuda eu deveria dar?
– Ele também previu isso, e disse que poderia esclarecer estas dúvidas em seu tempo. Pode não parecer–te, mas estou tão assustado quanto ti.
Em meio ao meu medo, fui tomado pela raiva de falhar em encontrar qualquer racionalidade naquela discussão e desesperançoso em tentar apaziguar o próprio espírito lógico de minha pessoa, que em pouco tempo abalara–se severamente. Meus braços ergueram–se junto comigo da cadeira, e ameacei meu anfitrião:
– Ah, ótimo! Agora este sujeito vindo de sei lá aonde desce um morro depois de jogar sal em uma mesa e vira um vidente, o que mais ele previu!? E se ele é tão bom assim, por que não está aqui!?
Toc, toc, toc.
As batidas ressoaram em meu ouvido em uma sinfonia bizarra. Virei–me lentamente, enquanto o árabe dizia:
– Pode entrar.
A maçaneta girou. A porta abriu–se. Um homem negro vestido em um paletó e com semblante estranhamente acolhedor gesticulou, suas feições eram ríspidas mas a voz soou tão suave como uma pena:
– Com licença, senhores. Caro Matheus, sei que vossa mente deves estar conturbada com os acontecimentos narrados, mas não tardará para que tudo seja–te esclarecido, apenas precisamos de vossa ajuda.
Retomando um pouco a minha calma, eu disse–lhe, ainda perplexo:
– Não querem que eu mate alguém para este livro maldito, querem?
– Não, não queremos. Na verdade, a única coisa que queremos é uma facilitação, nenhum procedimento funerário deverá ser remediado ou interferido, apenas gostaríamos que vossa senhoria atendesse a um pedido.
O medo em minha voz era palatável, minhas cordas vocais tremiam com o excesso de expectativa:
– E o que quer?
– Os caixões encomendados pela vossa agência vêm com suporte interno para mantê–los resistentes durante a locomoção para o túmulo, além da camada seladora que impede que terra ou água adentre pelas frestas, tornando a conjectura impenetrável.
– O que o caixão tem a ver com isso tudo?
– Peço apenas para que não aplique a camada seladora e retire o suporte interno.
– Não me digam que querem exumar o cadáver!?
– Isso não cabe a vós, gostaríamos apenas que exercesse o que pedimos. Ninguém serás perturbado ou nada disso afetará o fatídico e trágico momento de luto dos presentes na ocasião, tampouco degenerará a reputação da vossa empresa. Nos certificaremos de que ninguém perceba as alterações durante o velório.
– E se eu não participar dessa artimanha?
– Ah, caro Matheus, tu já fazes parte dela, desde o momento em que tocara aquele livro. Não preocupe–te, daremos uma boa quantia extra para vós e com certeza a receberá de bom grado, além do mais, é como eu e Omar, não contenta–te com o supérfluo, é por isso que foi escolhido.
Os ânimos acalmaram–se ante ao receber da proposta. Resoluto, indaguei–lhe:
– Estamos falando de quanto dinheiro?
– Cinquenta mil reais.
Hesitei por um momento, era muito dinheiro por um cadáver. Mas não poderia recusar aquela oferta, então respondi, com aptidão:
– Está feito. Mas qualquer problema que o caixão causar não será responsabilidade de minha empresa.
– Não te preocupas, o caixão será o menor dos problemas.
Sendo assim, terminamos nossa reunião. Retornei ao meu quarto embriagado não pela bebida alcoólica, mas pelo medo, como se o ecoar daquela coisa continuasse nos cantos inóspitos de meu subconsciente, e tive de ingerir um calmante para conseguir enfim dormir. Meus sonhos foram vazios e sem sentido, e quando acordei, a lembrança da noite passada não parecia mais do que uma pura ilusão, até que infelizmente eu olhasse para minha cabeceira e visse um talão de cheque bancário no valor determinado previamente.
O dia passou monótono, os preparativos para a cerimônia de enterro foram devidamente estabelecidos no local, onde uma pequena mas consistente quantidade de pessoas estavam presentes. Um padre fora chamado e alguns jardineiros floriram o caixão onde encontrava–se tão pálido quanto a superfície da lua Pedro Fonseca, trajando um terno simples e com o orifício em sua traqueia delicadamente costurado, o rosto resoluto e sereno de um homem que não parecia corajoso o suficiente para empunhar um tomo como aquele que encarei na noite anterior.
Tive a oportunidade de consolar Késia e Natália pessoalmente, elas tinham os rostos abalados e marejados; a maquiagem de suas faces borradas pelas lágrimas e o semblante escuro de luto contrastava a postura arqueada, cansada. E novamente tive de ouvir e acima de tudo, atuar como dramaturgo daquela peça, com samaritanos que arremetiam seus pêsames naqueles que não pareciam pesar–se de qualquer coisa.
O orvalho daquele ambiente e os pássaros que observavam o enterro diretamente de carvalhos alheios ainda são–me frescos na memória. Uma prece monocórdia de um devoto pela fé que tampouco era compreendida viajara através das fileiras ao ar livre, traçando uma sinfonia deprimente com os lamuriosos choros dos parentes e colaboradores mais próximos, mas recordo–me bem de perceber a presença de Adewalé e Omar, que apesar de complacentes, não derramaram nenhuma lágrima ou sequer prestaram preces singelas para Pedro.
Após o fim do enterro, ordenei para que minha equipe preparasse as malas pois voltaríamos ao Rio de Janeiro, e finalmente teríamos nosso descanso merecido. Mas mesmo na mais confortável cama eu não poderia apaziguar os pensamentos que decorreram daquela fatídica reunião, e ao ser indagado por meus funcionários qual seria o momento da partida, ordenei para que eles saíssem da cidade sem preocuparem–se por mim, pois eu ainda tinha tarefas a serem concluídas na cidade.
Fui ao meu quarto pelas dezenove horas da noite e procurei discretamente pela presença de meus antigos anfitriões. Ao não encontrá–los, fiz uma breve refeição na cantina e pedi para um de meus empregados trazer–me alguns utensílios antes de sair (uma lanterna, um celular portátil, além de um canivete suíço e as chaves de meu carro). Depois de receber os itens e liberar meus empregados para a capital, olhei no relógio enquanto comprava um café expresso e ia para meu veículo.
No âmago circunstancial que determinava minhas ações, eu sabia que sua natureza indutiva era irracional, o que haveria de racional naquilo? Mas talvez eu também soubesse o contra–argumento, já que a noite de sono mal dormida fizera–me repensar alguns aspectos referentes ao intelecto alheio e principalmente àquela obra anormal. Engatei as primeiras marchas e dirigi até o cemitério municipal, que estava vazio quando cheguei.
Estacionei o carro no muro adjacente ao beco que ligava duas ruas igualmente estreitas, e que dava–me apoio suficiente para que eu conseguisse observar com clareza o que havia do outro lado se apoiasse–me bem (não havia grades ali, apenas um muro de concreto simples). Como a cidade era pequena e os muros altos, não valia a pena custear verba para segurança noturna, que poderia ser melhor investida em outras áreas do município, tendo enunciado isso, o local que por si só apresentava uma conjectura inabitada igualmente facilitaria qualquer trabalho de exumação, mas ninguém gostava de mexer com os mortos, principalmente com os do povo do interior.
O relógio marcava nove e três da noite; aguardei durante um longo período, bebericando o café e lendo um jornal, as notícias faziam referência a desaparecimentos e a machete principal estampava “Incêndio no Museu Nacional compromete acervo nacional”; continuei a ler em uma sessão de caça–palavras, tentando em vão afastar a ansiedade de mim. Era duas e trinta e cinco da manhã quando ouvi a aproximação de dois carros que supus terem estacionado logo em frente ao cemitério.
“Eles realmente hão de exumar o corpo”, pensei, aflito. Mas eu precisava confirmar, precisava saber se tudo estaria intacto e a reputação de minha empresa não estaria prejudicada. Um pequeno grupo de pessoas (Omar e Adewalé inclusos) arrombou o portão da entrada lateral do cemitério com um alicate que resultou em um gemido metálico e desconfortavelmente agudo, após isso, adentraram calmamente no lugar. Meu coração pulava pelo efeito da cafeína e a adrenalina que dilatava minhas pupilas, tornando–me preparado para qualquer coisa; também regurgitava tremores que percorriam–me os dedos apoiados na murada.
Esgueirei–me melhor e observei Adewalé aproximando–se junto a outros que empunhavam pás ao redor de onde o túmulo de Pedro estava localizado, as flores ainda frescas e a lápide recém–colocada. De repente, um deles entregou ao africano aquele maldito livro como um cálice papal, que assustou–me de tal modo que fez–me escorregar da murada balançando pedrinhas, e se não fosse por minha cautela e paciência (pois ouvi alguém aproximando–se cautelosamente e debruçando–se de onde eu estava enquanto deitava–me na calçada e colava–me no muro, com minhas costas transpirando de pavor), eu não conseguiria ter saído dali sem ter sido pego.
Mas essa não é a pior parte, caro leitor. No atual momento em que escrevo este relato estou entupido de calmantes e analgésicos com uma garrafa de conhaque vazia pela metade na borda de minha escrivaninha, minhas mãos tremem e não consigo ficar muito tempo parado sem sentir uma falta de ar que arranha meus pulmões e revira meu estômago, junto a tontura que impede–me de escrever com mais clareza.
Após algum tempo, tomei coragem para debruçar–me novamente no muro, tomando cautela cirúrgica, e vi que Adewalé entoava uma frase na língua perdida que tinha ouvido há poucos dias.
Após isso, um silêncio pairou no ar e um dos encapuzados (todos vestiam mantos escarlates) aproximara–se com uma pá, testando a terra e removendo a grama artificial onde o caixão fora embalado, mas havia parado por aí, e todos ficaram em silêncio, observando uns aos outros. Eu olhei para aquela coisa de novo, oh, aquele maldito livro, e juro que algo sussurrara em minha mente naquela articulação maliciosa e perturbadora: “eu sei que você quer saber a verdade, eu sei que você não contenta–se com pouco, está aqui agora, afinal, então venha até mim!”, arquejei de espanto, mas não vacilei, tentei em meu desespero resistir no que resultara em um sussurro falho e mesquinho para aquela voz: “não, eu não quero nada de você!”, e a voz riu, leitor, a coisa riu.
Nunca ouvi nada tão assustador na minha vida até então, e quando achei que esse seria o ápice de insanidade pela qual minha mente estaria sujeita, oh… somente posso enunciar… pelo amor de deus, que é o único que poderia entender aquilo que um cético como eu não conseguira conceber… minha… mão falha somente… de tentar descrever o que vi, mas eu vi, caro leitor, eu vi o grupo ainda encarando–se, olhando para o vazio, quando percebi que não encaravam o nada, mas sim o chão, o gramado… Jesus Cristo… a terra estava remexendo–se, leitor… meu deus! Eu conseguia ouvir o barulho áspero e a poeira sendo iluminada pelo brilho da lua, eu senti frio, regurgitei de pânico, minhas pernas falharam e fiquei pendurado enquanto o suor invadia meus olhos atônitos… era impossível, caro leitor, mas eu vi o que pareciam ser pontas de dedos emergindo daquela terra úmida, e… e depois eu vi uma mão retorcendo–se, apalpando a terra, e depois um braço… nem mesmo os homens encapuzados esconderam seus terrores, alguns saíram correndo, e eu sairia, se conseguisse, mas as forças falharam–me, minhas pernas não mexiam–se, mas aquele cadáver, Pedro Fonseca, estava saindo como um feto no ventre da terra de uma forma que nem mesmo o diabo poderia elaborar.
Caro leitor, ele saiu, como se apenas tivesse dado um mergulho profundo em uma piscina relaxante, sua pele estava roxa, o algodão vazava junto com o sangue preso em seus vasos sanguíneos igualmente estourados, mas ele estava lá, e pegou o livro… e ele viu–me, olhou para mim com aqueles olhos incisivos… oh, ele realmente encarou–me… e eu vi… eu vi o diabo nos olhos dele! Entrei em meu carro em um salto, deixei as chaves cair e por pouco Adewalé não alcançara–me enquanto ligava o motor, e o que ainda perturba–me além de todas as coisas inomináveis que presenciei é pura e simplesmente um questionamento instintivo: eu fugi?
Não durmo há dias, e ainda não tomei coragem para sair deste quarto de hotel desde então. Eu poderia dirigir bem após algum tempo de descanso, mas sequer cochilei nessas últimas noites e não encontro–me lúcido o suficiente para rumar por longas horas.
Poderia pedir um ônibus ou transporte particular com um de meus empregados, mas tenho medo de sair até mesmo para o corredor, e a bateria de meu telefone por algum motivo pifou. Escrevo enquanto falo em voz alta pois até mesmo o raciocínio lógico está falhando–me e tenho de registrar qualquer som suspeito. Que lógica eu poderia encontrar depois de ver um morto voltando à vida? Maldito seja aquele livro e maldito seja aquele vidente que pusera–me nessa lástima de trabalho e maldita seja a minha mente curiosa!
O que mais aquele desgraçado previu? Fito a todo momento pela janela o que parecem sombras e nuvens inexistentes, com medo de ver vultos, de ver Pedro encarar a mim de novo, pois não sei se conseguirei manter minha sanidade em uma segunda onda de horror, e igualmente cubro meus ouvidos ao menor sinal de ruído, pois além de transcrever tudo que ouço para estas páginas, tenho receio de que aquela coisa fale comigo de novo, e se ela o fizer eu não aguentarei… ainda tenho o canivete, posso acabar com isso… não vai ser tão doloroso quanto esse tormento, isso é certo… espere um momento… passos… a maçaneta…
Toc, toc, toc.