Lovecraft Rio - Conto
Sussurros no Museu Nacional:
Na data em que redigo este relato, as circunstâncias que envolveram a fatídica noite da tentativa de obstrução do patrimônio histórico, que é o Museu Nacional, nada mais são do que invencionices que buscam omitir um terror que a humanidade não conseguiria conceber.
Infelizmente, eu, Antônio Martinho Ferreira, um singelo professor de história e guia turístico do museu o qual tanto amava, não posso parar de pensar naquele horror que passei junto ao pessoal da segurança – oh, coitados! – quando suspeitas de andanças de maltrapilhos da Boa Vista pelos interiores do ambiente chegaram a nossos ouvidos, e a surpresa de que alguma forma de atravessar os corredores de madrugada fora levantada acabou por esconder os verdadeiros terrores que estavam por assolar–nos.
Para empreender tal relato, e evitar acusações chulas de charlatanismo, vale ressaltar o prior acadêmico que nosso pessoal seguia a rigor ao efetuar pesquisas e investigações, tanto relacionadas aos fatores internos do museu, como os artigos de paleontologia, mineralogia, petrologia, antropologia biológica, arqueologia, etnologia, entre tantos outros, como também a nossa ressaltada crítica ferrenha aos últimos trabalhos e teses baseadas em pesquisas de campo pouco confiáveis que foram divulgados por uma tosca direção de ensino.
Acompanhávamos, eu e uma parceira de trabalho, Gabriela Santos da Silva, mas, na maioria das vezes, somente eu, os turistas ao longo de extensas galerias que há muito haviam sido administradas pela família imperial portuguesa, e posteriormente seria um notável patrimônio de Dom Pedro I e Dom Pedro II, cujo poderio do segundo reinado brasileiro permitira a coleção de milhares de itens que até hoje são objetos de análise para diversos acadêmicos.
Não obstante, tal modéstia também permitira avanços polêmicos quando adentramos na era republicana, com a administração cabendo a Universidade Federal do Rio de Janeiro e com suas conturbações confusas tendo em vista a escolha de determinados “líderes” do conselho estudantil. Diversos antropólogos dados como sensacionalistas surgiram dali, como o Xavier Fonseca Neto Filho, que era autor dos “Segredos cósmicos da pátria brasileira”, obra que ficara popular por seu caráter atribuído ao ocultismo, além da pesquisadora Pricila da Conceição de Luz, uma portuguesa que viera em uma expedição acadêmica e ministrara uma pesquisa em campo, no interior da Amazônia, que resultara em tragédia, com todos os expedicionários morrendo por alguma tribo desconhecida até para os antropólogos mais competentes.
Eu, apesar de cético, nunca descartei as possibilidades estranhas apresentadas por tais autoridades, mesmo que alguns colegas dissessem–me que essas calúnias estavam resultando na degradação da autoridade acadêmica, tanto da universidade quando do patrimônio histórico–cultural, e com o tempo, eu igualmente opor–me–ia ante essas repercussões conspiratórias.
As decorrências desses artigos, principalmente após o desastre envolvendo a Doutora Pricila de Luz, atribuíram ao museu estranha reputação, visto que muitos entusiastas e personagens excêntricos visitaram esses corredores em minha companhia. Lembro–me de um sujeito moreno e de classe alta que perguntara–me uma vez:
– Que achas destas teorias? Acredita que têm algum sentido?
Resoluto, lembro–me de replicar–lhe em prontidão:
– Interessantes e com embasamentos bizarros, ainda que alguns indícios sejam, de fato, convincentes. Porém, acredito que ultradimensionar tais fatores também é inferiorizar nosso povo, nossa cultura, nossa inteligência, e como historiador, é isso que importa–me: as pessoas.
O sujeito possuía a cara azedada quando terminei meu raciocínio, e nada dissera–me a não ser um singelo e debochado “continue, quero ver o que este lugar ainda tem a oferecer”. Assim, como sempre fiz, apresentei as sessões a ele e a centenas de outros turistas ao longo dos anos: desde crianças, homens e mulheres na flor da idade; senhores maturos e cultos, pintores, poetas, além de outros acadêmicos.
Tudo isso mudara quando, ao fazermos uma breve palestra sobre a importância do estudo clínico de culturas e da acessibilidade e coleta de informações acerca de tribos locais (o sensacionalismo já estava dando–me nos nervos), em uma sexta–feira aleatória de uma semana aleatória de meio de ano, após conversas com profissionais e estudantes e professores que formavam uma bancada opositora à diretoria atual (que, por incrível que pareça, compactuava com tais conjunturas), um velho senhorzinho, José Silvino, que chamávamos carinhosamente de “seu Zé”, viera ter comigo, a seu próprio modo, procurando ser o mais educado que podia:
– Ô, sinhô Antônio, poderia ter uma palavrinha com o sinhô?
Como estava de bom humor naquele fim de tarde, disse–lhe:
– Claro, pode falar.
Ele parecia meio arredio, em seu pescoço havia uma corrente com um crucifixo prateado, demonstrando o caráter catolicista do velho segurança; ele remexia o crucifixo com o dedo com estranha perturbação enquanto articulava–se, a seu jeito:
– Então, sinhô, já vigio esse prédio há bom tempo, mas nessas últimas noites tenho andado meio encabulado. Sinhô, o que esses doutô fala é real?
Lástima! Assaz lástima! Acadêmicos que deveriam ser o alicerce cultural da sociedade, que deveriam acalentar a dúvida com a consciência científica, deterioravam a todos com seu orgulho aprazível. Expirei, procurando confortá–lo com uma breve risada:
– Não se preocupe, seu Zé, esses doutores não passam de charlatões.
Ele pareceu–me mais agitado do que antes estivera, perscrutando os arredores com um receio estranho à medida que os ouvintes retiravam–se do prédio:
– É que, sinhô Antônio, essas últimas noites têm sido estranha…
– Como assim ‘estranha’, seu Zé?
– É que, o sinhô vai me desculpá, mas acho que tem gente que anda aqui de madrugada. Eu fico ouvindo uns barulho estranho… uns cochichos, ai de mim, só de pensar já chega a dar tremedeira…
Eu não pude conter uma risada; todas as alas do museu eram vigiadas, desde a rua às entradas laterais eram gradeadas. A não ser que o sujeito voasse, ele não alcançaria os andares superiores do prédio, que, apesar de antigo, permanecia estável em toda sua infraestrutura: as portas permaneciam com seu material preservado, as fechaduras, tanto das entradas principais e laterais quanto das janelas, permaneciam em constante manutenção e não demonstravam sinais de desgaste. O grupo de vigias, que incluía o seu Zé no expediente noturno, também possuía olhos e ouvidos aguçados, e apesar da Quinta da Boa Vista já não ser tão segura quanto antigamente, não haveria motivo em perambular por aqueles corredores se nenhuma tentativa de furto fosse efetuada. Ainda assim, procurando não ser rude com o velho senhor, pontuei todos esses aspectos lógicos contra tais teorias conspiratórias e acrescentei ainda:
– Escuta, seu Zé, depois de tudo o que eu falei, pode ficar tranquilo, não faz nenhum sentido essas andanças que o senhor ouve. Em qual ala o senhor está ouvindo mais?
O velho hesitou, pensativo, mas franziu o cenho, como se remontar qualquer cena fosse–lhe aterrorizante; não conseguira disfarçar a apreensão quando respondera–me:
– Foi na ala de ‘meteorística’, sinhô, eu juro que tem gente andando por lá.
Estava genuinamente compadecido com o homem, e, apesar de querer dispensar aquelas superstições caluniosas, não pude deixar de oferecer pelo menos um auxílio:
– Escute, está com o telefone aí, aquele mesmo que chegara recentemente para recepção de pedidos e alertas além do rádio?
– Tô sim, sinhô, ainda não sei mexê direito, mas acho que tá funcionando.
– Ótimo, anote o meu número; caso, ao longo da madrugada, realmente perceber algo de estranho e que acha que tem relação com aquelas besteiras publicadas nas revistas acadêmicas, pode me ligar.
Logicamente, não achei que de fato ele ligaria, visto que o velho José gostava de beber aos finais de semana, e, ultimamente, parecia que não somente neles matava a sede dourada. Retirei–me do museu; a noite estava clara e lá no céu, um mosaico estelar circundava a lua cheia, que incida um faixo pela janela do meu carro como um farol muito melhor do que os lucivelos que rodeavam–me.
Aconcheguei–me no banco de couro após adentrá–lo e atei o cinto de segurança, sentindo cada filamento sob minhas pernas calejadas pelas andanças do dia. Ajustei o rádio FM e fui brindado pelo acaso com “O Bêbado e a Equilibrista” de Elis Regina. Passeando pelos bairros até Copacabana, estacionei o carro num condomínio próximo ao meu apartamento e entrei num largo prédio, duas quadras antes da costa litorânea, e subi o lance de escadas para casa, evitando o elevador pois procurava um último esforço para justificar o conforto posterior, o descanso merecido e, quem sabe acompanhado de um bom livro: decidia–me entre Guimarães Rosa ou Clarice Lispector, um dos dois haveria de servir.
Por que tantos detalhes para um relato tão perturbado? Simples, pois, coincidentemente, as mesmas noites em que senti–me em uma plenitude que nunca antes havia experimentado, também eu experimentaria horrores inomináveis nunca antes vivenciados. Após algum tempo lendo “A hora da estrela” e pensando sobre as próximas aulas que ministraria ao longo do semestre acadêmico, o sono interpelou–se entre mim e as páginas amareladas pela luz da sala de estar.
Levantei–me, busquei um bom conhaque e mordisquei um tabaco forte. Escovei os dentes e tomei um banho gelado, para depois deitar–me e cair em sono profundo. Então, quando estava em um sono pleno esquecido como um meditante recluso, acordei com o barulho do telefone sobre minha cabeceira. Tri, tri, tri, tri. Atendi, sem ao menos olhar o relógio, minha garganta estava seca:
– Alô?
Ouvi apenas uma respiração abafada, tão ofegante que quase pude sentir uma brisa saindo dos alto–falantes do aparelho vindo de encontro a minha orelha, em um arrepio mórbido. Não havia nenhuma resposta, e eu encontrava–me naquele estado de subconsciência, ainda sem compreender (mesmo que pressentindo) o medo naquela voz entrecortada:
– Sinhô… sinhô… Antônio.
Coloquei meu pijama, lembrando–me dos últimos acontecimentos e temendo uma invasão de arruaceiros no museu:
– Seu Zé, tá tudo bem? Eu vou chamar a polícia.
A voz dele era tênue, ouvi sua articulação desesperada enquanto o chiado estático percorria meu âmago:
– Sinhô, não é vagabundo aqui não, pelo amor do pai amado, sinhô… tem um duende aqui…
A voz dele não estava arrastada, não poderia ter bebido, e não era de fazer brincadeiras de mal gosto. Disse a ele, conurbado com um estranho regurgito:
– Olha, seu Zé, tá escondido…
– Meu deus do céu…
Não sei o que ouvi do outro lado da linha, mas, ao fundo, pude captar, junto ao arquejo do senhor José, um som como o de rasgo em tecido, porém, era dotado de uma característica elétrica. Temi o pior, mas José amainou um pouco minha perturbação:
– Sinhô, tem um buraco na sala…
– Fuja…
– Eu não consigo me mexê, sinhô… tô escondido… ajuda…
– Tô indo pra aí agora, quer que eu chame ajuda policial? Bombeiros? Enfim, qualquer coisa…
– Não serve de nada, traz arma sinhô… ai de mim, esqueci a minha lá embaixo e o diacho do noviço não aparece… eles tão vindo pra cá, vou desligar… pai do céu, me ajude…
Eu corri. Vesti um calção social, camisa e jaqueta; coloquei um revólver calibre 38 (que guardava em um armário próximo) num dos bolsos e comecei a ligar para a delegacia. Desci as escadas após uma atendente da polícia militar receber minhas instruções, direcionando–me para o carro. Dirigindo pelas ruas na madrugada com os pneus derrapando, em pouco tempo (não sei pontuar exatamente quanto) cheguei ao museu.
O coração, sentia–o ribombar dentro de mim. Peguei uma chave reserva dos fundos quando a silhueta escura do prédio surgira, projetando–se como se outra identidade tivesse sobrepujado aquele semblante para dar lugar a uma mansão gótica, e saí do carro, o revólver preparado. As passadas ao longo da rua ecoaram singularmente pelo asfalto, e por um momento tive medo de que o chão sob meus pés cedesse.
Atravessando alguns corredores, ao chegar na lateral do prédio, pude ouvir aquele barulho novamente. Um segurança recentemente contratado estava de cócoras no chão, murmurando enquanto os olhos corriam de um lado para o outro. Perguntei para ele:
– Ei, o que aconteceu?
A voz dele era de puro desespero, como o latido de um cão, porém, naquela ocasião os latidos eram compreensíveis:
– Tá lá, na estrela… planeta doido! O duende… tem bruxa lá…
Corri, enquanto o barulho estranhamente eletrostático carcomia as entranhas de minha alma. Cada passada era acompanhada de um golfo invisível que misturava–se entre coragem e medo, uma antecipação irracional. Então, eu virei o corredor do segundo andar após patinar em impulsos vertiginosos até o lance de escadas encerado, e onde a ala de meteorística começava, pude ver… meu deus… não sei como consegui manter–me são naquela conjuntura.
Observei um brilho violeta viajando pelo assoalho polido, e num dos cantos da sala, vi, abismado, um círculo projetando–se onde as paredes encontravam–se, formando um ângulo labirintítico, um ângulo impossível, e de lá saiu uma estranha velha caquética com uma manta negra puída. Seus olhos eram verdes, e estava acompanhada de um duende, o duende mais demoníaco que algum dia poderia imaginar. Sua bocarra projetava–se pelo corpo nu, os dentes tortuosos como uma adaga oriental desciam à altura do peito. Sua pele escarlate transitava dentre vários tons escamosos, e a risada daquela coisa, oh, deus do céu.
Procurei José; o velho senhor estava atrás de um dos móveis do entorno da antessala, catatônico, e o demônio corria com suas pernas curtas e atrofiadas, tropeçando pelo corredor enquanto sentia o cheiro de medo. Perambulavam de lá para cá pelas salas, então, quando ele caiu (andava assustadoramente rápido), vi seu pescoço contorcendo–se em um trajeto ignominioso e nossos olhares encontraram–se, e ele novamente riu, os olhos negros, puramente sombrios, encararam–me, e ele começara a correr em minha direção, enquanto a velha morfética entoava um cântico estranho a mim. Gritei:
– José, corra! A janela!
A criatura veio correndo para mim, quando abriu a boca, eu quase desmaiei, pois ela contorceu–se de tal modo que a mandíbula parecia ter a extensão de uma espinha dorsal, e dentro dela, eu vi o espaço, vi constelações. Atirei. Pouf, pouf, pouf, pouf. Quatro tiros, a coisa estatelou–se ante mim com gritos ásperos e draconianos, seus espasmos faziam o chão banhar–se com um sangue verde como uma esmeralda, mas eu jurara que tinha acertado mais tiros, foi quando cogitei com um arquejo que um dos projéteis pudesse ter simplesmente viajado como um meteoro por aquele enigmático abismo, e minha espinha fraquejara ao tentar imaginar o que teria acontecido comigo se eu não tivesse a arma. A velha entoara um cântico. O senhor José corria na minha direção, desesperado; lá atrás, sirenes de viaturas puderam ser ouvidas. Eu gritei–lhe:
– Senhor José, aqui, rápido!
Quando estava prestes a chegar, o cadáver daquele tendeiro explodiu, e como eu fora ver onde a velha encontrava–se (ela simplesmente sumira por um portal impossível), por sorte não fui pego, pois quando voltei, os corredores irrompiam em chamas. Pude notar, mesmo em desespero, que um dos meteoritos da coleção havia sumido, e usei a própria janela daquela ala para debruçar–me e conseguir um jeito de escapar das chamas. Lembro–me sonoramente do clac na minha patela ao cair, e da dor que atravessara–me como uma facada.
Tornou–se imediatamente claro para mim que os policiais não entenderiam ou acreditariam em qualquer tipo de testemunho envolvendo misticismo, e não quero que o façam, não espero que o façam. Empapado com um suor frio de medo e dor, tive que mancar até o carro como um vagabundo, com medo da polícia, com medo do chão, do espaço, e do fogo, que ascendia aos céus em nuvens arroxeadas, e por um momento, em meio a fumaça, pareceu que um vulto formava–se. Não esperei ver o que formava. Entrei no carro e naveguei (sim, pois tudo estava girando em uma maré de dor), cheguei em casa aos prantos, entupi–me de analgésicos e virei a garrafa de conhaque. Depois de um banho gelado, deitei–me na cama, ingeri um calmante e apaguei.
Acordei na tarde do dia seguinte com a desgraçada da perna latejando, meu telefone não parava de tocar, mas não atendi. Entrei no carro e viajei até um pronto–socorro entre Rio–São Paulo que mais parecia uma pocilga xexelenta, e tive que gastar uma soma desagradável para ser atendido de prontidão para o médico, que, com pouco jeito, desentortou não sei o que no meu joelho. Lágrimas de suor confundiram–se com lágrimas de dor quando ele fizera aquela coisa, e imobilizara meu joelho com gases e ripas. Queria extorquir–me mais, porém, sacolejei–lhe o 38 e deixara–me em paz.
Fiquei indo de hotel a hotel, um mais fedido que o outro, até que comprei uma passagem para Salvador e evitei toda e qualquer pessoa até chegar à casa de um tio meu. Quero ficar longe do Rio de Janeiro, pelo menos por um tempo; o noticiário felizmente não apontara–me como suspeito, e graças a minha ligação, o incêndio fora controlado.
Estavam todos certos, aqueles acadêmicos, e mesmo assim não foram incisivos em seus estudos, o que somente pode indicar que há alguma relação entre eles. Eu não sei o que será de minha vida agora, somente espero que deus tenha piedade da espécie humana, pois os demônios chegaram, e eles são muito piores do que aqueles criados por nós.