Lovecraft Rio - Conto
Terror na UFRJ:
O parâmetro racional que percorre os limiares do incomensurável faz–se presente no cotidiano alheio, mesmo que os mal aprouvidos não o percebam (ou o neguem), e a reflexão frígia que resgata tal condição também traz consigo uma provocação ignominiosa, não obstante, tão palatável quanto qualquer outra indagação religiosa que tenta outorgar o poderio científico e informacional perante o desconhecido: existe algo que a ciência não pode prever (?).
A utilização do acento interrogativo entre parênteses não foi uma mera ocasião derivada de um engano das mãos pálidas pelas quais escrevo este testemunho, pois desde os primórdios civilizacionais, a mente humana tenta de uma forma ou de outra explicar eventos simples e grandiosos abstidos de ligações neurais tão astronomicamente improváveis que o mero termo “destino” não seria nem questionável ao mesmo que plausível, pois de que outra maneira a escala evolutiva permitira tamanhos privilégios a uma espécie tão orgulhosa em condições existenciais tão insignificantes?
Alguns estudiosos de meio–termo (e esses são os piores, pois de que adianta centralizar–se no processo de pensamento e manter–se de tal modo inserido nas discussões ateístas e espiritualistas, senão para finalmente encarar argumentos que tragam conflitos reflexivos suficientes para a consolidação de, pelo menos, um horizonte futuro no campo teórico enquanto as fórmulas são postas à prova no contemporâneo?) insistem que a ciência e a religião são condições implícitas do processo evolutivo e que tão logo a adoção da razão como epicentro da convivência e observação teria como resultado a simples aniquilação dos fundamentos espiritualistas, que, por sua vez, também contribuiriam para um ciclo resignado de ritos e crenças que seriam adotados e praticados à medida que novas ideias tomassem os grupos de larga escala.
Mas, se a própria razão impõe limite ao campo de ideias, ela igualmente sujeita o eu crítico a uma escuridão racional que, além de soar contraditória (visto que a razão seria o único modo de compreender melhor o universo, segundo muitos dos filósofos clássicos e cientistas que adotaram suas epistemologias perceptivas), faz–nos sentir insignificantes. Ignorando também os idealizadores nilistas e os criacionistas conservadores atuais (pois esses bebem do leite que a razão proveu–nos com a epistemologia objetiva que insistem em abnegar, seja com ideias ultrapassadas ou o simples mal–caráter que guarnecem no âmago de suas instituições, e não merecem nada além de uma sentença perpétua de lamento no último dos infernos que nem mesmo a mente humana poderia conceber), poderíamos também adotar indagações reducionistas pelo simples fato de desmoralizar o próprio processo evolutivo–existencial, mas também, não é isso que traz conforto para a mente de muitos estudiosos como eu.
A priori de uma constância de apropriações lógicas que somente o campo teórico da matemática avançada impõe nesse eu que denomina–se pleno na escala evolutiva do pensamento (mesmo quando o nega, visto que tal atitude implica indiretamente em uma apropriação lógica, ainda que não prescrita pelas ciências exatas), traz um estado existencialista que impede que o hipocampo neural entre em colapso ante enormes quantidades de dados e constatações, e o que era um simples apontamento (“existe algo que a ciência não pode prever”) torna–se a mais fajuta engrenagem racionalizada pelo lóbulo frontal, incorporando a dúvida conjurada nas profundezas das almas daqueles que acreditam no poder da ciência. Um simples ponto de interrogação, um caractere em específico dentre milhares de outras letras de outros alfabetos e outros símbolos representativos, um acento interrogativo em conjunto ordenado com outros traços alheios que trouxera o mais puro terror que a mente de um químico como eu seria capaz de aguentar.
Meu nome é Galvani Osmar Júnior, tenho sessenta e cinco anos e essa é a história de como eu sobrevivi aos acontecimentos daquela madrugada de vinte e cinco de agosto de 1995, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, madrugada essa que ficará para sempre em minha memória.
Atuar como pesquisador de química ambiental em expedições acadêmicas e seminários por todo o estado, enquanto ministrava aulas para cursos avançados e básicos de ensino médio, sem sombra de dúvidas era algo cansativo, mas o simples fato de poder deitar–me ao lado de minha esposa durante a noite, olhar para a hélice contínua do ventilador de teto e perceber que meu funcionamento era tão pleno e estável quanto aquela engrenagem, era tão reconfortante que o sentimento de cansaço sobrepujava–se pelo anseio de proporcionar eficiência e conhecimento tão bem, em um fluxo de ideias tão constante quanto aquele conjunto mecânico que transportava o vento fresco para minha face. Até os primeiros meses daquele maldito ano!
O grupo de professores e acadêmicos, fossem eles recém–formados ou longevos na carreira universitária (não vale muito informar o nome de cada um, os mais importantes citarei à medida que os acontecimentos fatídicos forem narrados), estabeleciam congressos semestrais para planejamentos junto à reitoria da universidade, visando a continuidade, encerramento e iniciação de novas pesquisas de campo, tendo em vista os interesses governamentais ou educacionais a depender das áreas abordadas. Até esse ponto nada que um professor que trabalhe na rede educacional já não tenha experienciado, contudo, vale ressaltar a minha área de atuação, cujo propósito justamente é o de estudar os fenômenos químicos na natureza e em uma camada mais aprofundada eu também analiso o impacto civilizacional nos principais meios de diferentes habitats.
Nos debates daquele início de semestre referente à consolidação de mais pesquisas com interesse de saúde pública, eu e dois amigos pesquisadores, Natália Leopoldina e Rodolfo Alencar (ambos especializados na mesma área citada anteriormente pela minha pessoa, e da qual faço parte) fomos recomendados junto à Secretaria Estadual em parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico para atuar em uma pesquisa de larga escala junto a outras universidades estaduais para o SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), tendo como objetivo delimitar de maneira precisa a qualidade do sistema de abastecimento de água do estado, reforçando e propondo diferentes projetos para melhoria logística e intervenção dos órgãos responsáveis a depender dos resultados.
Deste modo, nos primeiros dias de fevereiro, preparamos uma equipe administrativa da universidade e recrutamos assistentes bolsistas e que auxiliariam com nossa supervisão na manutenção das amostras para controle de dados. Visitamos as diversas regiões do interior do Rio de Janeiro enquanto ministrávamos um curso palestrante junto a outras redes de ensino, para conscientizar os funcionários públicos e cidadãos interessados sobre a importância de uma pesquisa como aquela. Além disso, visitamos pessoalmente as instalações da Companhia Estadual de Águas e Esgotos em cada uma das cidades, onde também tivemos a oportunidade de conhecer outros profissionais competentes e responsáveis quanto ao tratamento da água.
A água também não foi o único objeto de análise, pois muitas das vezes condições terciárias resultam na degeneração qualitativa do elemento natural, então Natália Leopoldina ficara responsável pela análise de infraestrutura, enquanto Rodolfo Alencar ficara responsável pela supervisão da metodologia de tratamento prevista na legislação.
Não posso dizer que aqueles foram dias ruins, pois não foram, e logo empenhei–me em catalogar e estruturar cada um dos parâmetros e comparar com registros industriais nacionais e internacionais, além de reforçar meus estudos na área. Após a coleta de aproximadamente mil amostras (sem contar as triplicatas para controle de dano), começamos nosso trabalho após o regresso à universidade, dessa vez recebendo auxílio de outros professores. O processo de análise pelo qual sujeitamos os itens seguiu os padrões previstos, até eu encontrar aquela maldita amostra: “A02BJI.”
Para esclarecer a você o fascínio sepulcral que apoderara–se de mim sobre aquele recipiente, eu preciso explicar os parâmetros de análise à medida que meu terror científico crescia. Ao segurar a amostra, percebi algum tipo de coloração anômala, de modo que ao aproximar–me, ela aparentava um estado cristalino, mas quando eu incidia luminosidade em ângulos específicos em meio à sua superfície (tendo precaução e consciente dos efeitos paraláxicos), pude perceber leves alterações provenientes de substâncias refletidas. Curioso, sujeitei ao sistema de análise integrada do laboratório, ainda sem saber dos horrores que aquilo guarnecia. A primeira coisa que chamou–me atenção foi a massa resultante ao disponibilizar a amostra na balança analítica (não converterei as medidas para elucidar de modo claro o terror que seguiu–se): “8,034g.” O problema era que na prancheta e no arquivo da planilha digital constava “5,345g”, uma discrepância evidente, mas que não perturbou–me, já que erros eram plausíveis e correções poderiam ser efetuadas no decorrer do processo.
Os primeiros calafrios vieram quando eu constatei dados extremamente exóticos ao sujeitar a amostra a análise de aspectos químicos. O potencial hidrogeniônico (que usamos para determinar o quão ácida é uma solução aquosa) indicava–me “3”, uma solução que, para a escala adotada, poderia ser considerada extremamente ácida, tendo em vista o local de coleta. Minha surpresa foi tamanha que chamei um de meus alunos para conferir a substância, porém, para o meu espanto, ao reanalisar a amostra, observei que a escala havia mudado drasticamente: “13”; extremamente básica – vale ressaltar que o equipamento utilizado estava bem calibrado.
Já um pouco alarmado, dispensei o aluno e sujeitei o item a uma nova análise, certificando–me de que o equipamento utilizado estava de fato bem calibrado com uma outra amostra que não apresentou problema, e quando eu novamente sujeitei à análise o “A02BJI”, estuporei–me, pois o equipamento indicava “7”, que, na escala apropriada, significava que a substância encontrava–se com o potencial hidrogeniônico neutro. Constatei também através do condutímetro que a escala voltaica e condutiva da solução estava a níveis astronomicamente desproporcionais, e que a água apresentava uma presença quase eletromagnética, e para a minha estupefação subsequente, ao analisar os sólidos dissolvidos, o equipamento não detectara nenhuma presença, de qualquer substância, mesmo a coloração evidenciando a existência de algo inserido na solução aquosa.
Após certificar–me de que as triplicatas sofriam com o mesmo problema e constatar uma configuração tão volátil, contatei Natália e Rodolfo, que também não conseguiram explicar ou deduzir uma hipótese plausível para aquele fenômeno. Decidi contatar o local de origem, o centro da CEDAE em Bom Jesus de Itabapoana, e após uma conversa com um administrador local, fui informado de que alguns compartimentos da estação haviam sofrido recentemente com o mesmo problema; de acordo com ele, em um dos módulos da estação fora encontrado um mineral desconhecido que logo fora empacotado e preparado para o envio ao laboratório, e que o mesmo ainda estava em fila para estudo.
Agradeci pelas informações e contatei o laboratório responsável, solicitando uma amostra do sólido que ainda aguardava a análise e fui cordialmente atendido por profissionais técnicos, um sujeito cortês em específico, Jorge Faria, mostrara–se muito prestativo e logo eu teria uma parte do sólido responsável por tamanha estranheza, pois os antigos colegas encontravam–se indispostos e minha ajuda seria bem–vinda.
Logo eu também teria o meu verdadeiro horror.
Alguns dias decorridos após a solicitação, o sólido finalmente havia chegado em uma cápsula térmica, e como meus companheiros mais próximos ainda não haviam terminado suas palestras das aulas da semana, dei–me o luxo de retirar o material por mim mesmo, utilizando os equipamentos essenciais de proteção individual. Para o meu fascínio, o sólido que encontrei possuía características observacionais atordoantes, não por serem necessariamente nocivas, mas sim por provocarem uma repulsão aversiva, como se eu estivesse vendo um enfermo terminal e fétido, porém não conseguisse reconhecer qualquer natureza terrestre em seu semblante ou a doença que afligia–o, como se o sólido granjeasse de alguma forma minha atenção e causasse um enjoo vertiginoso no que eu poderia considerar como meu espírito.
Utilizando uma pinça, retirei parte do material com o bisturi para sujeitar a análise; a superfície do corpo possuía um espectro de luminescência bizarro, variando desde um negro fulvo até um púrpura cintilante, dependendo de como era manuseado. A textura também não era natural, pois seguia–se em um contraste cacofônico entre áspero e liso, e seu interior homogêneo não possuía diferenciação evidente, além de uma cor sutilmente mais clara do que a da região externa. Ainda hipnotizado por aquela natureza extenuante (vale ressaltar que o corpo não emitia gases ou qualquer tipo de odor que eu pudesse perceber) submeti a uma análise individual dispondo o sólido para ser aquecido via espectroscópio.
Quando ativei o mecanismo, não pude conter um “impossível” ao perceber que o espectro de luz que eu observava era diferente de tudo o que eu já havia visto (eu poderia anotar as observações, mas achei válido esperar a atenção de outros profissionais qualificados – principalmente Natália – visto que o assistente no laboratório era apenas um aluno do ensino médio), eu não poderia nominar as coisas que vi, pois não eram cores conhecidas e transcendiam aquilo que eu sequer poderia conceber, mesmo nas minhas mais prolíficas epifanias.
Ainda meio anestesiado por aquilo, resolvi coletar a mesma amostra e colocá–la em um tubo de ensaio, manuseando aquilo que parecia ser um metal volátil (sua solidez também variava, em alguns momentos mais parecendo um glóbulo gelatinoso do que uma matéria rígida). Ao sujeitar a mais uma análise com a pérola de bórax, surpreendi–me ao constatar a condição estranha daquela coisa, pois de repente mostrou–se totalmente negativa e nem mesmo o uso do maçarico de oxi–hidrogênio esclarecera qualquer resultado comprobatório, evidenciando mais uma contradição do que qualquer outro fator.
Em minha teimosia, estudei a substância em diferentes reagentes. Para o meu horror, não reagiu a água (que parecia ter reagido de alguma forma na amostra original, “A02BJI”, mesmo que os efeitos de uma clara equação estivessem nítidos). Outrossim, não houve reação com o ácido hidroclorídrico. Tampouco o ácido nítrico ou a água régia abalaram aquele sólido. Não consegui manter minha compostura quando sujeitei aos solventes sem nenhuma mudança: amônia cáustica, solda cáustica, éter, álcool, disulfuro de carbono, entre alguns outros.
O que quer que fosse aquilo, não era desse cosmos. O que tratava–se uma pesquisa simples envolvendo parâmetros de potabilidade e abastecimento logo transformara–se em um alvoroço; quanto a Natália Leopoldina e Rodolfo Alencar, posteriormente obtiveram os resultados aterrorizantes. Divulgamos um texto científico sobre os dados observados, e para nossa surpresa, não havíamos sido os únicos a perceber o que quer que aquilo fosse.
Havia registros em diversos países: Universidade de Miskatonic, Estados Unidos; Universidade McGill, Canadá; Universidade Estatal de São Pertesburgo, Rússia; além de diversas outras espalhadas ao redor da Europa e Oriente Médio. Segundo nossas pesquisas, os relatórios convergiam com relação aos dados improváveis, mas a duração que a amostra teve nos laboratórios não ultrapassara as setenta e duas horas (fora relatado que o sólido simplesmente evaporara sem qualquer motivo aparente, corroendo superfícies adjacentes independentemente do material presente em suas confecções), e pesquisas duradouras do que muitos acadêmicos apelidaram de “Meteorito Azred” (não entendi o por quê do nome, mas deve haver alguma explicação plausível para tal) permaneciam sigilosas por organizações governamentais. Então por que a nossa permanecia intacta?
Após o interesse pelo profissional responsável pela entrega do corpo para mim, demonstrei igual pretensão em saber com mais detalhes sobre o estado de coleta no momento específico no centro de abastecimento, afinal, como um sólido daquele escopo intransigente fora parar em uma estação de tratamento de água tão remota? E pelo que tinha visto, a propagação das substâncias poderia ser nociva, mesmo que ainda não tivéssemos constatado evidências empíricas. Enquanto isso, pesquisas mais detalhadas eram trabalhas simultaneamente com o projeto original, e o corpo apresentara–se sem qualquer reação (além de um leve brilho, ainda sem explicação, quando o ambiente ficava escuro); sua distribuição eletrônica era inominável e o material emitia alguma radiação (mas não parecia encaixar–se nas emissões alfa, beta ou gama).
Abstive–me do trabalho, pois estava esperando a semana do nascimento de minha filha e adiantei todas as aulas do mês junto às análises, embora Natália e Rodolfo tenham–se mostrado extremamente compenetrados em seu trabalho de análise, mas isso não impedira–me de visitar mais uma vez o profissional que fornecera–me tal objeto, Jorge Faria, o que salvou a minha vida e sentenciou–me aos momentos mais aterrorizantes que a mente de um cientista poderia vivenciar.
Era um início de tarde de vinte e quatro de abril de 1995, e visitei o profissional formado em engenharia química e ambiental, sujeito de semblante humilde e muito atencioso que recebeu–me em seu escritório em um dos CEFET em que atuava. Algumas vezes a mente tenta obstruir as memórias, escondendo–as em profundezas tão desconhecidas quanto àquela natureza que há pouco eu havia encarado, mas às vezes permite que o ser lembre–se de cada minúcia, para que aprenda a lidar melhor com situações de estresse futuros, também conhecido como traumas, e foi isso que aconteceu comigo quanto entrei naquela maldita sala. Reproduzirei os diálogos com o meu colega, para ser o mais claro quanto a minha lucidez atual permite:
– Olá, Jorge Faria, é um prazer conhecê–lo pessoalmente.
Meu anfitrião era simpático, mas não pude deixar de notar uma agitação sutil em seu semblante:
– O prazer é todo meu, poderia fechar a porta, por favor?
Eu o fiz. Após isso, sentei–me em uma cadeira próxima à mesa de escritório em que Jorge encontrava–se, enquanto ele dizia–me:
– É o material que o traz aqui, não é? Por que não contatou–me por telefone?
– Precisava estar preparado para as procedências adequadas de acordo com o seu relatório, e ainda espero visitar o centro de tratamento local, ademais, necessitava de um tempo longe da universidade, está bem agitada ultimamente, e não dá pra falar tudo por telefone…
– Bom, ficarei feliz em ajudar no que estiver ao meu alcance.
– Ótimo, poderia me dizer quem foi a pessoa que encontrou o meteorito?
– Fui eu mesmo.
Foi nesse momento que um torpor estranho começara a serpentear meu corpo. Eu perguntei–lhe:
– Mas você me disse que havia sido um funcionário do centro, não foi?
Meu interlocutor parecia estar em uma confusão genuína:
– Eu disse isso? Estranho…
– Então do que você se lembra?
– Estávamos na sede de tratamento quando eu constatei a presença de um sólido desconhecido entre os filtros de um dos módulos compartimentais, então pedi para removerem com cautela o corpo da água e o guardei para análise posterior.
– A região entre os filtros não é um local fechado? Como poderia ter ido parar lá?
– Também suspeitei disso, mas não poderia ter sido sabotagem, visto que para disponibilizar o sólido do modo como se encontrava entre os filtros, seria necessário que as operações estivessem pausadas, e não estavam há dias, e o supervisor teria percebido qualquer outra atividade suspeita. Mas parece que há algum efeito, ainda não tenho provas da relação dos fenômenos, mas acredito estar próximo de uma comprovação, dê uma olhada nisto…
O que Jorge apresentara–me era um conjunto de recortes do jornal da cidade com os seguintes trechos:
“POPULAÇÃO EM PERIGO?¨”
“Profissionais da rede pública de Bom Jesus de Itabapoana relatam a presença de uma febre aparentemente viral e grave, acometendo os mais diversos cidadãos com delírios intensos e acessos de euforia derivados da doença. O governo estadual estuda intervenção e possível epidemia.”
“ASSASSINATOS INEXPLICÁVEIS:”
“Na tarde de 15 de abril de 1995 foi relatado por um residente do bairro do centro que um número pequeno (mas substancial) de pessoas atacaram comerciantes aleatoriamente. Uma das vítimas que sobreviveu relata que um velho gritava enlouquecedoramente enquanto tentava esfaqueá–lo, dizendo frases impronunciáveis.”
“ESTRANHA CIRCULAÇÃO DE PESSOAS NO CENTRO DA CIDADE.”
“Na madrugada de 10 de agosto de 1995 foi relatado por um morador local que uma pequena multidão foi avistada no centro de cidadania, desfilando de modo cacofonicamente sincronizado, por um tempo indeterminado até desmaio repentino. Após determinado período elas acordaram quase que em um mesmo momento e regressaram para suas casas sem saber o que havia acontecido. A polícia abriu um inquérito para averiguar o ocorrido e profissionais de saúde estudam o caso.”
Cada olhadela nos recortes dava–me calafrios atemorizantes, ondas de arrepio e vertigem ao compreender a catástrofe sutil e diabólica que aquela coisa poderia ter causado. O semblante de Jorge transformara–se em algo chocho, ainda que mantivesse firmeza enquanto eu tentava em vão procurar palavras para articular qualquer pensamento objetivo:
– Sei o que está pensando, Galvani, infelizmente eu era um desses sonâmbulos da última matéria.
Novamente senti os pelos de meu pescoço eriçando–se, e encarei, embasbacado, o meu colega. Ele não pareceu intimidar–se ou demonstrar qualquer tentativa de abalar–me com seu semblante:
– Existem coisas que vi nesses últimos dias que não desejo que chegue à mente de ninguém. Não era para eu dizer–lhe isso, porém, já é hora. Um mau acaba de se instaurar e creio que uma geração inteira de condenados foi amaldiçoada com uma virtude caliginosa, pela qual não poderemos nada fazer. Galvani, meus sonhos não são mais os mesmos desde aquele dia que toquei aquela pedra; eu não achei que poderia causar qualquer dano à minha saúde, esse foi o meu pior erro. Aquele meteorito, aquela coisa tem um poder incomensurável, você precisa destruí–lo, pelo bem do futuro da ciência.
– Mas, e quanto as outras universidades…
– As amostras presentes nas outras não evaporaram, as ‘coisas’ é que fizeram os pesquisadores acreditarem nisso. Ela só precisa de tempo para transformar–se, só deus sabe o que está a espreita nos outros países. Não pode acontecer o mesmo com o Brasil, temos que impedir… Galvani, você não sabe o que eu vi nos meus sonhos, eu vi um monstro, eu conjecturei o impossível… infelizmente ele exerce um controle naqueles que apresentam o mísero contato direto, mas você foi o único que não foi afetado… ainda.
Eu não conseguia entender nada, o terror deixava–me confuso em meio àquele diálogo, disse–lhe:
– Calma, como sabe disso? O que tenho que fazer?
– Eu vi você no sonho, essas coisas, elas tem o poder de presenciar o mau que as espreita, para eles, você é o mau. Se você não conseguir, aquela mulher, a escolhida, vai morrer… tem que impedir, aqui, tome isso.
Jorge parecia cada vez mais agitado enquanto entregava–me uma cápsula com um líquido estranhamente esverdeado, e eu disse–lhe:
– Que mulher? E como você…
– Não me pergunte, existem coisas que é melhor não sabermos. Você precisa acrescentar esta solução junto a ácido hidrofluorídrico…
– M–m–mas o sólido não reage a nenhum solvente…
– Ele vai reagir se você acrescentar essa substância… ah… droga…
Jorge pareceu tontear–se, sua mão postada à própria testa e os dentes cerrados demonstravam dor. Fui ao seu encontro, mas ele parou–me:
– Não, você precisa ir, agora. Eles estão vindo me buscar, e o próximo há de ser você, não sei por quanto tempo conseguirei aguentar. Vá, antes que seja tarde demais…
De repente, ele pareceu ter entrado em um estado convulsivo tão assustador quanto intenso ao mesmo que repentino, e como um manequim ressurgido das trevas, investiu contra mim como se eu fosse uma simples presa para um banquete cósmico. Tomado por um horror indescritível, eu chamei por ajuda, enquanto os dedos dele enterravam–se no meu pescoço, sua boca salivando, os olhos… estranhamente esbranquiçados… e quando a última vírgula de ar esvaíra–se de meus pulmões, eu pensei na minha querida esposa, na minha querida futura filha.
E eu agi.
Balancei–me no balcão, contorcendo–me o suficiente para exercer um chute abrupto mas assaz intenso para conquistar um pouco de ar, que logo usei para energizar mais um chute que fê–lo cambalear para trás. Então, com meus punhos fechados em desespero e agarrados a uma esperança que tampouco eu poderia conceber, desferi um soco forte o bastante para derrubar Jorge, e corri, esbarrando em outros alunos e professores que passavam, ainda sem entender, enquanto uma monitora clamava por ajuda. Eu tentei retomar o semblante apaziguado, mas vi três homens (andando do mesmo modo anormal que Jorge agia) vindo em minha direção lá atrás, e tive certeza de que aquele seria um dos piores dias da minha vida.
Corri em direção ao meu carro enquanto aquelas silhuetas também aproximavam–se assustadoramente rápidas para seu próprio andar. Inseri a chave na ignição e engatei a primeira marcha, enquanto um deles desferia um soco descomunal na janela lateral da minha traseira. Acelerei, tentando sair o mais rápido daquele estacionamento enquanto observava o desconhecido terror pelo meu retrovisor.
Um dos homens, parado como uma estátua, apenas deslizara o dedo indicador pelo próprio pescoço enquanto observava–me com aqueles olhos tenebrosos. Eu não tinha muito tempo. Aqui meus devaneios divagam, pois a adrenalina encarada em um intervalo tão curto de tempo afetara–me de tal modo que mal percebi a passagem do tempo enquanto percorria as estradas que levavam de volta à capital.
Não liguei para ninguém, afinal, quem acreditaria em um relato tão laborioso? Já é uma luta exaustiva tentar criar argumentos convincentes para quem quer que esteja lendo este relato, e naquele momento a cautela sobrepujara qualquer possibilidade de decisão premeditada.
O relógio do carro estava próximo das dez da noite quando atravessei a ponte Rio–Niterói; ainda teria uma hora antes de chegar à universidade. Uma ansiedade catalisadora abraçava–me, preparando–me para horrores tão avassaladores quanto aos que presenciei anteriormente; atravessando as ruas movimentadas e ultrapassando os carros e táxis alheios com o típico senso de urgência que precede uma catástrofe, enquanto de quando em quando observava aquele líquido esverdeado balançado de lá para cá (e que a cada hora parecia mais luminescente), rezei uma prece curta, que nada adiantara em meio ao trânsito. Não premeditei com tanta precisão o escopo de possibilidades e atitudes que seriam tomadas assim que chegasse na universidade, eu apenas faria o que os instintos de um cientista carioca poderiam proporcionar, esperando o melhor. E eu cheguei.
A universidade já estava fechada naquela hora, mas o ar da instituição soava–me estranho, repulsivo (em vinte anos lecionando ali, nunca tive sentimento tão apoderado). Parei o carro quase à frente dos portões e dirigi–me às pressas para onde o segurança local, conhecido meu, estava, e pedi para entrar com a desculpa de que havia esquecido papeladas importantes na minha sala. Ele assentiu, e fui tomado por uma ânsia de vômito quando o sujeito dissera–me:
– Por que há tantos colaboradores da sua área aqui nessa hora? Não que eu me importe, mas eu nunca tinha…
Interrompi–o com o último dos meus ímpetos:
– Espere, Natália Leopoldina e Rodolfo Alencar permitiram a entrada desses colaboradores?
– Sim, permitiram. Por quê?
– André, preciso que você me escute: uma das amostras que estávamos analisando pode ter prejudicado seriamente a saúde dos funcionários, preciso de sua ajuda para eliminarmos ela o quanto antes, mas os outros poderão mostrar–se hostis.
– Não quero me envolver nisso, senhor Galvani. Não sei não…
– Você não precisa fazer nada, sei que não pode sair do seu posto, mas temo pela minha segurança, poderia me acompanhar?
– Posso chamar outros…
– Não, eu confio em você!
Relutante, ele consentiu em seguir–me enquanto nos dirigíamos para o depósito de química (que, para nosso azar, estava estabelecido adjacente ao laboratório). Assim que pus as mãos em um garrafão contendo o ácido indicado por Jorge, olhei de soslaio para o laboratório e pude observar, pelo menos, uma dezena de pessoas reunidas ao redor do corpo sólido, no mesmo estado que aqueles malditos perseguidores encontravam–se. Se houvesse qualquer tipo de comunicação, somente era possível entre seus correligionários, pois não fomos percebidos ao esgueirarmo–nos. O segurança disse–me:
– O que eles estão fazendo?
Eu não respondi. Não por que eu não sabia, mas por que eu tinha certeza do que estava prestes a acontecer, e somente havia um objetivo em meu âmago: destruir aquela aberração vinda do espaço. As pessoas começaram a rodear o sólido e pude ver Natália Leopoldina segurando–o como uma estatueta sagrada, e tão logo suas mãos encostaram na superfície inominável, a textura igualmente começara a brilhar. Em um reflexo instintivo, eu exortei:
– André, aconteça o que acontecer, não olhe para aquele brilho de modo direto, você pode ficar cego em questão de segundos.
Ele obedeceu–me. Não conseguiríamos adentrar ali sem chamar a atenção deles, então somente havia algo a fazer–se: nos juntarmos àquela hoste bizarra. Se fôssemos rápidos o suficiente, eles não teriam tempo para impedirem–me antes que eu jogasse o líquido respectivo, e André poderia auxiliar–me para ganhar frações de segundo suficientes para eu derramar a cura sobre aquela coisa demoníaca. Comuniquei rapidamente a ideia e mesmo que meu camarada tenha mostrado–se hesitante, concordara em ajudar–me.
Invadimos a sala em supetão, e aqui a memória novamente falha–me, convergindo em poucas certezas, então rezo (sim, isso mesmo, rezo pois não resta–me mais nada a fazer) para que o seguiu–se realmente tenha acontecido.
Lembro–me de atravessar a sala em saltos ferozes enquanto aqueles moribundos observavam a mim e ao meu companheiro em um espanto animalesco, emitindo sibilos e palavreados que transcendiam a articulação vocal conhecida. Empurrei Rodolfo Alencar de tal modo que desequilibrei outros dois enquanto pude ouvir o ecoar de disparos atrás de mim e riscos de luz que correram as paredes, ecoando desespero, e barulhos que até hoje não consigo explicar; pareciam lamentos tenebrosos mas vindouros de uma dimensão sonora desconhecida.
Alguém machucara–me, um chute, um soco, não sei, mas lembro–me de sentir um impacto muito forte nas minhas costelas, seguido de uma dor excruciante, quando olhei para trás, parecia ter visto um buraco na parede, um túnel onde uma velha caquética surgia. Outros seguranças chegaram, e mais tiros foram disparados enquanto um véu percorria o ar. O impacto não foi suficiente para deter–me, mas fui desacelerado enquanto corria para aquela coisa brilhosa e jogava minhas últimas esperanças; Natália entrepôs–se no caminho do jorro ácido em um glamour suicida, e espantei–me ao ver sua pele sendo corroída sem qualquer reação de dor por sua parte.
Então, eu joguei o resto naquilo, e atrás de mim houvera mais disparos, provavelmente o do segurança, enquanto aquela voz parecia lamentar–se, e as outras repetiam seu timbre. A última coisa da qual lembro–me é de ter sido acordado por um enfermeiro na manhã seguinte, embrenhado em uma mortalha horrenda; todos os presentes da madrugada passada haviam morrido no que parecia ter sido uma parada cardiorrespiratória; a única exceção foi meu infeliz companheiro André, pois os disparos haviam sido feitos em sua direção.
O resultado disso fora duas costelas quebradas que deixaram–me hospitalizado em uma unidade particular, e em meu tempo de recuperação tomei a oportunidade para escrever este relato. Por que não atiraram em mim invés de André? Onde Jorge arranjara aquela substância desconhecida que pareceu corroer aquela massa diabólica? Aquilo de fato foi expurgado? Os profissionais somente encontraram sinais de corrosão, mas substâncias alheias àquelas de padrão indicado por mim não foram encontradas. Amanhã, investigadores civis virão até aqui para interrogarem–me, e ainda não sei se conto a verdade por receio de que investigações posteriores possam despertar maldições cósmicas ainda maiores, ou mantenho o silêncio e sofro sozinho, evitando perturbar minha esposa em um momento tão delicado.
Decidi–me. Esse horror será enterrado para poupar a minha sanidade, pois ainda quero ter a chance de viver uma vida normal. Vamos nos mudar, Rio Grande do Sul parece bom, sim, quero estar longe daqui. A única certeza que posso guarnecer não é mais a de que “existem coisas que a ciência não pode prever”, pois a ciência não é uma personalidade, é um método consciente, e a melhor sentença que poderia definir esse fatídico episódio de minha vida seria apenas uma: “existem coisas que nem a mais brilhante das mentes é capaz de absorver sem que a sanidade falhe–o… a ciência é somente mais uma refém do inominável.”