Lovecraft Rio - Conto
Os Fantasmas de Macaé:
Em muitas noites, vossas pálidas feições podeis ser observada de soslaios em meio às avenidas desertas do centro. Vossos fantasmas andais como homens, o espectro de vossa enaltecida serenidade tampouco firmais qualquer conclusão racional, mesmo aos mais céticos. Assim que a luz lunar beijais o asfalto e correis através das casas, acendes teu incenso, pois vós chegais, com vossas enormes carapuças enigmáticas que de nada servi–lo–á para escondê–los. Os moradores de rua quase sempre enlouquem em acessos de pânico e cólera, o os mal afortunados desaparecem.
Não sei o que os fantasmas querem, apenas observo–lhos a vós em revoada através das madrugadas de fim de mês, amaldiçoando vossas estadias enquanto pairais sobre nossas moradas. Mas, se de fato fantasmas existem, qual de nós eres o verdadeiro amaldiçoado? Não sei responder a isto também, afinal, tenho a única certeza de que conhecemo–los pouco, apesar das suspeitas que trazem–me ao conflito desta dissertação. Não matraqueio tal conjuntura com o intuito de amedrontar vossas mercês, apenas pontuo que a chegada dos fantasmas nada tem a ver com medo e terror, pois eles apenas anunciam o quão ignorantes somos; nosso derradeiro horror está na imbecilidade, e a esta direciono minha cautela, e se para afastar–me da tolice popular terei de juntar–me a eles, fá–lo–ei de bom grado.
Ainda não apresentei–me a tu, não? Deveis pensar: “Que bobeira é esta que encontra–se em minhas mãos?”… “esta bobeira, monsenhor…” proponho–te que imagineis minha réplica: “nada mais é do que a inconformada jurisdição do nosso império, que, além de pouco servir ao palato populacional, tampouco aprouvem de justiça os desafortunados; a justiça apropriada que mal servira de aprendizado pelos infortúnios do império português”. De que adiantais tamanho rebuliço para a independência do império nacional, se o resultado de tal modéstia resultas em injustiças como esta? Se os senhores ainda desconhecem minhas infortunadas perturbações, elucidá–las–ei de bom grado, pois na data em que sento–me como escrivão para desenhar este texto, fará um ano que o maldito julgamento de um pobre coitado ceifara–lhe a vida, e com ela, o tormento desta pacata cidadezinha começara através da justiça abalado dos conterrâneos.
Tanto os senhores vindouros de Minas como seus contingentes de escravos recitam as lendas que a cada brilhar da aurora mais aproximam–se de uma hecatombe infeliz, já que as inconfidências têm–se mostrado de incômodo notório, e tomam o conselho ministerial do Rio de Janeiro, excluindo qualquer auxílio para esta costa amaldiçoada. Nem mesmo os cristãos que aqui assentam morada e confiam na graça da providência podem deixar de sentir um medo irrefreável quando as noites de outono atravessam nossos cerrados. Isto, digo–lhos, é o pagamento do pecado!
A criadagem de minha terra correm–se da senzala até a mim desesperados, e nem mesmo meu compadecimento de pouco servira–lhes ao acaso que viaja por essas bandas fajutas à procura de testemunhas. Dado dia, aproximo–me de casa e vejo empregada aos prantos para minha esposa:
“Sinhá, tem coisa no mato! Ai de nós, deixa nós dormi na senzala não, muda a gente!”
“Ora, pois…” aproximei–me dela e acudi–a “estás louca? O que veis que tanto vos aflige?”
“Sinhô, a gente viu vulto quando o cocheiro acompanhou a criadagem pra descarrego de dejeto, lá na pracinha!”
Lembro–me de fitar minha esposa, cujos traços do rosto ressentiam–se ante os traços delicados de seu vestido. Decidira–me ali mesmo, já que um orvalho taciturno caía sobre a ruela de minha residência e a noite caminhava rumo ao apogeu:
“Chama–te o cocheiro e traga o cabriolé aqui, hei de constatar tal algazarra.”
“Faz favô, sinhô, machuca ele não.”
“Não o farei, não te preocupas.”
Aguardando o velho aproximando–se e apeando, subi à carroça e damo–nos a prosseguir. Disse a ele:
“O que vistes lá, Abreu?”
Enquanto as balançadas pela terra batina confundiam–se com o tremelicar das rodas, a consternação no semblante do velho traçava seu olhar supersticioso a mim:
“Sinhô vai me desculpá, mas o que vi foi espírito ruim, andando todo descabreado… parecia até um urubu… lá onde tá o cadafalso na pracinha… só pode ser punição divina.”
Resignei–me ao silêncio reflexivo, pois, de fato, estávamos a ter maus olhares voltados para nós, tamanha a negligência daquele caso. A sombra esbranquiçada das estrelas trespassava as nuvens bem como calafrios vindos de deus sabe onde de repente abraçaram–nos. Passamos pelas ruelas onde as padarias, estalagens, sapatarias, enfim, uma série de estabelecimentos fechavam suas portas e o único a funcionar era uma pharmacia lá atrás.
Apeei e pedi para que o cocheiro aguardasse enquanto íamos de encontro à mata onde o conselho da senzala assentava–se, a uns tantos quarteirões da pracinha. Foi quando, atravessando o capinzal com uma lanterna a óleo, pude ver, parados entre as sombras dos carvalhos e abetos, figuras azul–esbranquiçadas em compostura endemoniada, enquanto os escravos, lá ao lado, gritavam de terror. Estranhamente, resignei–me e de medo pouco senti, visto que nenhuma daquelas pinturas espectrais aproximava–se de nossos casebres, ainda que encarassem–nos.
Fui–me até a senzala, e lá ouvi pedidos de ajuda, dizendo que deveria realocar a senzala para a antiga fazenda, o que não era possível visto que uma quantidade considerável de escravos fora utilizada de escambo no último acordo com os Oliveiras Prestes. Ainda assim, enaltecido pela boa índole daqueles desafortunados, decidi, mais pela curiosidade do que qualquer outra coisa, falar com um daqueles fantasmas.
Atravessando o mato, com um estranho torpor que instigava–me às passadas ministradas com cautela, bem como à articulação que deveria ter para com eles, finalmente fiquei frente a frente com um dos lumes translúcidos, e disse–lho:
“Eres quem penso seres?”
“Dependes, quem pensas que sou?”
“Penso que eres aquele que comanda a inconfidência que a graça de Dom Pedro não conciliara.”
“Pois eres deveras preciso no que dizes.”
“Que tipo de fantasma é tu? É o que amaldiçoa?”
“Não, somos aqueles que aguardam.”
“Por quem?”
“Por ti, ora pois.”
Então, pela primeira vez senti a tremedeira apossar–se de mim:
“O que tem eu?”
“Tens algo que será de valia muito em breve.”
“O quê?”
“A brancura, tens de prestar serviço político.”
“E que vós, fantasmas, tenhais a ver com isso?”
“Nada, apenas observamo–lho e preparamo–lo para seu papél”
“E que papél és esse?”
“Saberás quando saíres daqui, não somente desses recantos, mas lá para cima, onde as estrelas gritam com o inominável. Este mundo fadado ao fracasso está, bem como esta terra, mas ainda existe chance de salvar alguns.”
“E o que eu teria de fazer?”
“O que queres?”
“Justiça.”
“Pois assim o terá.”
Então, estendendo as mãos, senti o ar frio onde nossos dedos roçaram, pois sentia–os e não sentia–os, tudo ao mesmo tempo, e resignei–me; se tivesse de contatar Bonifácio em pessoa, o faria de bom grado. Porém, ao retornar, não pude conter uma surpresa indecisa, ao ver meus escravos apavorados comigo, correndo como loucos:
“Meu deus, chama sinhá, o barão virou fantasma!”
Assim, andando a pé até casa, preparei minhas coisas, sem acordar minha esposa, que cochilava num canapé na varanda dos fundos, a aguardar–me, e retornei à clareira, onde as sombras transparentes pareciam montar guarda:
“Até que enfim chegastes.”
“Para onde vamos?” perguntei–lhes.
“Vamos para um lugar onde deus não alcança, um lugar fora desta terra, cujas entranhas servem de berço para horrores esquecidos. Segure minha mão.”
Assim o fiz, e juntos, partimos em direção às estrelas.