Lovecraft Rio - Mini-novela
O Culto em Arraial do Cabo:
“Não há nada que faça um homem suspeitar tanto como o fato de saber pouco.”
Sir Francis Bacon
I. Onde as Estrelas não Alcançam:
“de: Armando Josias Neto (novo delegado da Sede de Perícia Civil da Região dos Lagos)”
“para: Gabriela Cortes Matos (Promotora do Tribunal Regional de Justiça e Crime Civil do Rio de Janeiro)”
“Data de Envio: 27/11/2004 (14:52)”
“Título: Caso ‘Da Cunha’”
“Mensagem:”
“Boa tarde, Gabriela,
Desculpa estar te enviando esse email em um horário como esse, ainda em seu endereço pessoal, mas acho que um de meus casos pode ser de interesse, tendo em vista os estranhos acontecimentos daquele processo que você estava comentando com o pessoal da agência mês passado, e como o teor analítico dele é tão meticuloso, creio que o caso ‘Da Cunha’ possa ser reaberto se levarmos em consideração as circunstâncias bizarras e as prescrições legislativas da abordagem; o arquivo dos diários pessoais que digitalizei está anexado em PDF. Enfim, espero que possa esclarecer algum encaminhamento com sua experiência na jurisdição civil.
Atenciosamente, Armando”
Talvez eu não estivesse nesta carcaça inefável de erudição demoníaca se soubesse das capacidades criminosas que permeiam o comportamento coletivo, mentes que a priori não poderiam efetuar qualquer mal às míseras presenças de seu entorno, mas que unidas, seja por uma necessidade tribal e tendo como alvo a pura sobrevivência, seja por uma crença inexpugnável e tóxica que suplanta o status quo, blasfemando quaisquer conjecturas antes estabelecidas, agora rechaçadas por fluxogramas filosóficos tão hediondos quanto poéticos em sua malevolência, ou pelos dois, o que é muito pior, convertendo assim um grupo (dos pobres aos abastados, tanto em mente quanto em corpo) como peões e bodes expiatórios do inominável para assim gerar o caos, que agora perturba meus nervos e obriga–me a registrar tais horrores em documento, visto que nem mesmo eu poderia acreditar em tais circunstâncias de outro modo.
A invisibilidade caótica rasteja através das almas alheias, causando as mais perturbadoras situações que a mente humana seria (ou não) capaz de conceber, pontualmente encarando vírgulas que tentam outorgar ordem e conforto perante o irrefreável, e eu, Carlos da Cunha Baltasar, sou uma dessas vírgulas, e a noite de terça–feira de abril de 2004 iniciaria uma das maiores comprobações investigativas relacionadas ao ocultismo que o sistema de perícia criminal brasileiro poderia conhecer; ressalvo “poderia” pois grande parte do processo dedutivo e investigativo somente pôde ser concluído devido a abstenção de qualquer pragmatismo lógico ou científico, e não ouso divulgar publicamente as coisas que vi e fiz por ter receio de que a humanidade abra fendas para horrores fora da realidade.
Ainda assim, o caráter ético do meu ofício compelira–me a ingressar em uma rede de providências de parâmetro introspectivo e especulativo, com a breve integração de agentes próximos de minha pessoa e na qual eu poderia depositar confiança para as necessidades decorrentes daquela maldita madrugada, cujas lembranças vêm à minha mente como um alerta cristalino daquilo que aguardava–me.
O céu estrelado do horizonte austral de Arraial do Cabo atravessava nossa visão, onde pontos esbranquiçados e luminescentes eram entremeados por camadas extensas de nuvens corriqueiras. O asfalto reluzia a luz dos postes e a lataria refletia não somente as lâmpadas isométricas, mas também o fulgor do rastro de nossas lanternas, que assim como a cauda de um cometa persegue sua rocha, perseguíamos também um criminoso fugitivo.
Douglas da Silva era integrante de uma rede de comércio informal que percorria as orlas da cidade, bem como as vizinhanças, mas tudo mudara na noite em que tivera um ataque de histeria, eliminando dois desafortunados que passavam por sua rota vespertina (uma mãe e seu bebê de colo, mortos depois de receber dezenas de facadas – a mulher tentara proteger a criança de cinco meses interpondo–se entre os ataques impostos a ela e a seu filho, mas a mãe da criança não resistiu aos ferimentos e morreu de hemorragia torácica antes de chegar ao pronto–socorro mais próximo, e o bebê… apenas direi que seu fim não fora menos hediondo do que o de sua mãe, colaborando, desse modo, para o meu infortúnio posterior). Eu e meu companheiro de trabalho, Júnior Teixeira, passávamos próximo ao local (não estávamos em expediente) quando a notificação chegara pelos nossos telefones.
Acionamos as viaturas excursivas para limitar a locomoção do fugitivo (que, segundo testemunhas repentinas, estava desprovido de auxílio com qualquer veículo). Com a ajuda de moradores, saímos do meu carro e percorremos as ruelas claustrofóbicas onde o criminoso poderia esconder–se, perscrutando becos e quintais abandonados até o Mirante do Pontal da Atalaia, onde pudéramos observá–lo em meio à orla deserta e o mar agitado, cujo azul contrastava com aquele retrato vermelho ao qual fitávamos.
O agora vagabundo portava uma faca de cozinha enferrujada, e seu semblante era de pura estranheza. Sua postura reclinava–se quase na diagonal, e o pescoço ereto, bem como os olhos estranhamente compenetrados, observavam as estrelas; assim, com ele parado, aproximamo–nos com cautela e demos voz de prisão (só não atirei pois fora a primeira vez que reconheci Douglas e embasbaquei–me pela atitude incongruente daquele jovem rapaz):
– Douglas, você tá preso! Mãos na cabeça, o que deu em você, moleque!?
Ele pareceu não ouvir, os olhos vidrados encaravam a imensidão cósmica e somente voltou a si quando uma das nuvens sobrepusera–se aos pontos estrelados. Mas ao voltar para si, tampouco soara lúcido; ele dizia–nos algo como isso:
– O monstro vai nascer, a coisa vai nascer onde as estrelas não alcançam, na aurora, tio Carlos, para só então retornar a elas, mais aterrorizante. A coisa…
Achei que o delírio estava sendo algum tipo de estratagema persuasivo, e não convenci–me das elucidações de meu ignominioso fugitivo:
– Douglas, abaixe esta faca agora e deite–se no chão, está fora de si. Se não fizer isso, teremos de atirar!
Então, retraído em uma catatonia ameaçadora, ele virou–se, lento como uma lesma, como se houvesse uma fatiga transcendental tomando suas energias, lágrimas escorrendo pelos cantos de seus olhos:
– Tio Douglas, ele vai matar todo mundo. O bebê maldito, a criança, eu vi, e não posso desver… tio Douglas!
Então, desesperado, ele correu em nossa direção com faca em punho, e fizemos o que precisávamos ter feito. Atiramos. O projétil perscrutara uma linha cirúrgica através da traqueia, onde Douglas, um menino conhecido por ser tão humilde, generoso e contagiante, agora agonizava, afogando–se no próprio sangue. Podíamos vê–lo com as mãos arranhando o orifício do projétil e escarrando ondas de sangue. Quando a morte abraçou–o, Júnior (camarada de rondas que coincidentemente acompanhava–me no momento do crime) exortou:
– O que deu nesse desgraçado, em? Seriam as drogas?
Descartei a hipótese, ainda ajoelhado próximo do cadáver, assistindo o vermelho afluente dos córregos sanguíneos do moribundo:
– Não, o Douglas era gente de bem…
– Gente de bem? Onde é que estavam os pais dessa criança…
– O pai morreu assaltado quando o garoto tinha dez anos, e a mãe foi–se recentemente… um câncer. Ele vendia picolé pra pagar o tratamento, sei disso por que ajudei–o com contribuições financeiras pessoais. Ele não faria isso, alguém alienou–o.
– E quem você acha que é?
Enquanto a ambulância chegava ao local, dei–me o luxo de revistar o corpo antes do transporte para a funerária, e somente pude observar o cartão de visitas da igreja em um de seus bolsos, a Assembleia das Mulheres. Respondi–lhe:
– Não sei quem, mas acho que sei onde posso encontrá–lo.
II. Alguns Filhos não têm Nome:
Os trabalhos na delegacia do Farol Velho permaneceram rotineiros naquela semana fatídica. Os boatos sobre o assassinato percorreram a cidade e ainda persistiam nos corredores de escritórios avulsos e estabelecimentos usuais. Após o fim do expediente, peguei meus itens de trabalho e dirigi–me para a igreja que Douglas frequentara.
O local era típico, uma construção modesta estabelecida ao fim de uma grande rua, que, por usa vez, prosseguia, adjacente ao litoral alaranjado. As pessoas de lá, moradores comuns e transeuntes resignados, porém, sempre que aproximava–me de algum, procurando cumprimentos ou instruções, pareciam de certo modo recuados, esquivos. Dirigi–me ao salão principal, onde senhores de idade esparramavam–se sobre as fileiras amadeiradas, com suas bíblias de bolso e cordões com crucifixos dependurados, orando para a estatueta de Jesus projetada no púlpito.
Aguardei o culto daquela tarde terminar, para então conversar com o pastor particularmente. O velho usava uma jaqueta social e calça jeans apresentável, seu rosto moreno, de cabelo grisalho e barba feita, davam boa impressão, ainda que, no fundo de seus olhos, eu pudesse perceber um elemento incongruente, quase uma apreensão. Gentilmente, retratei–me a ele:
– Com licença, pastor.
A voz dele era típica de um bom samaritano, agitada, contagiante e otimista:
– Opa, na graça de Deus? O que o traz na Assembleia das Mulheres?
– Na verdade, impressiona–me não haver mulheres aqui.
– Ah, é que o culto delas só começa às sete da noite, na verdade, são a maioria. A pastora Marcela tem estado muito atarefada com os acampamentos de férias ultimamente, muita gente procurando Jesus, ainda mais em épocas conturbadas como tem sido esses últimos anos.
– Então, era justamente isso que eu gostaria de te perguntar…
Estendi do bolso da jaqueta o panfletinho que Douglas carregara (nenhum dos policias ficara sabendo da existência do panfleto e omiti tais informações para a polícia civil e os legistas – são uns verdadeiros incompetentes que de nada ajudam para com os problemas do interior), e pude notar os cantos dos lábios do pastor contorcendo–se em uma sutileza que somente quem era malandro conseguiria compreender. Por sorte, eu o era. Continuei–lhe:
– Este panfletinho… ele faz referência às escolinhas dominicais e aos acampamentos de férias… ainda estão ocorrendo?
– Ah, sim. Duas turmas foram encaminhadas, lá para Rio das Ostras; estão fazendo um passeio em um dos condomínios, mas por que a pergunta?
– Não sei se irá me reconhecer, é que eu fiz parte de um episódio meio trágico, mas estou curioso sobre o menino Douglas…
O semblante dele demonstrara desprezo:
– Ah, esse arruaceiro… é um drogado, isso que é.
– Por que seria? Conheci–o pessoalmente, não achei que o menino era usuário de drogas.
– Pois é, eu também não, por isso convidei–o para o acampamento de férias. O garoto era gente boa, a aparência limpa, mas todos têm seus podres, até aqueles que acreditam em Deus. Tivemos de expulsá–lo depois que ele ficou assediando algumas colegas, e a intenção dos nossos cultos é justamente conscientizar os rapazes sobre amizade e respeito a elas.
– Presumo que ele não aceitara bem.
– Não, e como se não bastasse, o moleque seguiu uma pastora, amiga nossa e mãe da menina que ele assediara, por que acreditava que estava sofrendo racismo, a Marcela Soares ficara indignada, e eu também. Você acredita nisso? Essa igreja foi construída e ministrada por negros desde a década de setenta, qual seria o sentido disso? Se ela fosse racista, certamente passaria longe daqui.
“Enfim, a mulher tivera de chamar ajuda, mas como o arruaceiro estava usando drogas, tiveram pena dele, pois se fosse preso, nada melhoraria para nós e muito menos para o Douglas. Fizemos um conselho e decidimos afastá–lo de todas as atividades, e auxiliamos tanto a menina quanto apaziguamos qualquer tipo de suspeita diretamente com os pais, prezando sinceridade. Agora, se esse menino andou por aí fazendo atrocidades, nada posso falar por essa igreja, que abomina tais atos.”
– Entendo, sabe onde eu poderia encontrar a pastora Marcela? Gostaria de conversar pessoalmente.
– Ela está para chegar, se quiser esperar…
– O farei de bom grado.
Assim, sentei–me num dos bancos e aguardei até que o culto da noite iniciasse–se.
…
Já era nove da noite quando o culto terminara, a mulher, uma senhora de boa aparência, não mostrou–se nem um pouco acuada quando aproximei–me, no intuito de efetuar–lhe uma interrogação informal:
– Com licença, pastora Marcela Soares, não é?
– Isso mesmo, na graça de Deus? Como posso ajudá–lo?
– Eu apenas gostaria de saber mais sobre os relatos envolvendo o menino Douglas…
– Ah, sim.
Então, ela repassou–me os detalhes e pormenores já citados pelo pastor anteriormente, o que fez–me desconfiar da relação de mãe e filha, visto que não houve citação do pai da criança, porém, como eu estava sendo muito intrusivo, decidi permanecer com as perguntas silenciadas. Curiosa, ela perguntara–me:
– Você tem interesse em nosso acampamento de férias? Tem filhos?
– Não, não. Mas espero que a sua esteja bem com tudo isso, qual é o nome dela?
– Aurora.
– Nome bonito. Eu poderia conversar com ela, mais tarde? Ou quem sabe em outro dia? Estamos vendo se podemos nos aproximar de alguns vereditos e esse adiantamento poderia poupar a reputação da igreja.
– Por quê?
– Encontrei isto no bolso de Douglas, pouco depois de sua morte… ele ficava repetindo coisas estranhas…
– Drogas, só podem ser drogas…
– Enfim, ela estaria disponível? Não se preocupe, não serei intrusivo.
– Infelizmente, não, ela está em um retiro e só poderá retornar daqui a algum tempo, mas quando estiver melhor, eu contatarei o senhor. Foi um prazer conhecê–lo, Da Cunha.
– Digo o mesmo.
Trocamos números de telefone. Retirando–me do templo e indo para o meu carro, após sentar–me no banco do motorista, peguei novamente aquele panfleto ensanguentado e, como de súbito, a voz de Douglas veio à minha mente.
[– O monstro vai nascer, a coisa vai nascer onde as estrelas não alcançam, na aurora, tio Carlos, para só então retornar a elas, mais aterrorizante. A coisa…]
Aurora… poderia somente ser uma coincidência, mas meu coração palpitara de tal modo que não pude conter um arquejo. Haveria mesmo uma ligação? Eu sabia que alguma coisa estava errada, e dediquei–me ao longo das semanas vindouras a procurar a filha da pastora, que nem mesmo os amigos próximos haviam visto.
Finalmente, quase obcecado com aquela cena que atormentava–me em noites quase sempre mal dormidas, descobri que a família Soares tinha um ponto de encontro, um evento familiar em que provavelmente a filha de Marcela, Aurora, encontrar–se–ia; finalmente poderia confrontá–la diretamente e descobrir o que o Douglas queria dizer com aquilo. Arrependo–me profundamente dessa decisão.
III. Entre o Mar e o Inferno:
Poderia ter sido menos intrusivo, porém, o que contribuíra para o meu empenho no caso era que alguns moradores de rua relataram, na delegacia, movimentação de gente estranha na calada da noite. E como a maior parte das testemunhas eram bêbados maltrapilhos, os relatos de pouco valeram para os registros de ocorrência; mas comigo, comigo fora diferente.
A testemunha que encontrei não era outro senão um humilde pescador, e enquanto eu coincidia as provas, criando assim uma relação direta entre os eventos, tal pescador (do qual não direi o nome, visando sua proteção) viera até mim e confidenciara–me:
– Ô, Da Cunha, o sinhô é gente fina, sabe que eu não tô mentindo. Eu pesco na Ilha dos Porcos há vinte anos, eu nunca vi gente tão cabulosa indo pra Ilha do Farol. Quer dizer, sempre tinha um vagabundo ou outro, mas esse grupo tá crescendo, e vai dar ruim…
Precipitando–me tolamente, disse–lhe:
– Escute, senhor, poderia me levar até a ilha discretamente? Tenho algumas suspeitas, mas preciso comprovar isso para meus companheiros, e eles confiariam em mim caso eu trouxesse um relatório convincente, entende?
– Entendo perfeitamente, sinhô. Que horas quer ir?
– Vamos esperar o próximo encontro, se o senhor ver algo estranho durante a madrugada, prepare o barco e me chame.
– Tá certo.
…
Nos meus sonhos, Douglas estava sempre a encarar–me, e naquela noite, seus olhos marejados de sangue novamente elucidavam o que a boca não conseguia murmurar. Ele falar–me–ia um nome, porém, acordei com o barulho do telefone a tocar:
– Alô.
– Oi, sinhô, o pessoal estranho acabou de embarcar em um escuna, tão indo pra ilha agora.
– Prepare o barquinho, já estou chegando.
Peguei o revólver, vesti uma roupa básica e bebi um gole de conhaque, para acalmar os nervos. Saí de casa, entrei no carro e dirigi até a orla. Chegando lá, o velho senhor, na extremidade da prainha, preparava um barquinho. Um vento gelado percorria nossos rostos e o barulho das águas regurgitava incerteza e apreensão em nossas almas.
Quando finalmente observamos ao longe o escuna atracado na trilha que dava para o farol abandonado, eu aconselhei o pescador para que deixasse o motor pronto, e, descendo para a areia e seguindo cautelosamente uma trilha para o topo do morro, pude ver um lance de archotes abrindo caminho pela mata.
Empunhei o revólver, e, esgueirando–me em uma moita, observei a reunião dos integrantes daquele grupo bizarro. As árvores farfalhavam com a brisa salina, e jurei que estava sentindo um perfume viajando através do vento. Ouvi sibilos que foram aumentando à medida que eu prosseguia para encarar aquelas sombras. Pessoas em mantos negros circundavam uma mulher, não… uma garota… sim, era a filha de Marcela, pois uma das pessoas ao redor do círculo era a própria pastora. Senti meus ossos enregelarem, pois aquele grupo de mulheres a rodear a adolescente, que, por sua vez, parecia agonizar com a dor do trabalho de parto, estava entoando um cântico estranho, assustador, ainda que incompreensível.
Preparei–me para intervir, já ligando para meu companheiro, Júnior, pois solicitaria apoio imediato. Porém, as vozes aumentavam a cada vírgula, e as tochas que iluminava o círculo de pessoas começaram a dançar, até que seu fulgor fora substituído por uma luminescência esverdeada. E a menina, coitada, gritava e gemia em acessos de pânico; estava vestida em um manto branco e disposta na relva.
Ela precisava de ajuda médica, poderia ser uma complicação. No outro lado da linha, meu colega atendera–me com um sonolento “Alô”, no que eu apenas sussurrei: “traga ajuda médica para a Ilha do Farol e prepare umas três viaturas, rápido”. Desliguei o telefone e começava a sair da mata quando ingeri mais uma dose de horror.
A adolescente, agonizando, escorregara entre suas pernas um bebê… não, não era um bebê. Meu deus! Tremo–me todo somente de relembrar aquilo; uma criatura escamosa saíra pelo ventre da menina: tinha orelhas pontudas, patas atrofiadas e longas, mal parecia um filhote, apesar de comportar–se como um; sua cauda (sim, ele tinha–o) estava estirada sobre o colo da menina e contorcendo–se como uma serpente. E seu choro, oh, seu maldito choro, não pertencia a esse mundo.
A coisa arrastou–se para os seios da menina, e estava sendo amamentado com um carinho hediondo enquanto os outros cultistas ajoelhavam–se com um respeito ignominioso. O meu verdadeiro teste começara ali, pois o que eu fiz nenhum outro conseguiria: fui impedir que aquela coisa continuasse viva.
Aproximei–me com uma frieza que espantara–me a mim mesmo, apontei o revólver na criatura que abraçava sua mãe, e atirei. Dei dois tiros e ouvi um lamento, da própria menina, que gritara, como se não visse o demônio que acabara de conceber. A pastora começara a correr em minha direção, enquanto outros encontravam–se embasbacados e surpreendidos. Dei um tiro nela, na pastora, seu crânio parecia contorcido quando tombara na relva, e parecia convulsionar. Apontei o revólver para alguns sujeitos que tentavam pegar algo (uma arma, facão, não sei) e eles recuaram, ficando de bruços. A menina chorava:
– O QUE VOCÊ FEZ!? MEU BEBÊ, MEU BEBEZINHO!
Aproximei–me a passos firmes, encarei aquele rascunho infernal e olhei para a criança de olhos marejados e ventre esmorecido. Meti dois projéteis nela: um na boca, por que ela parecia falar a língua do demônio, como se estivesse conjurando um feitiço, e outro na testa, sentindo pedaços da massa cefálica respingando na minha calça. Matei–a pois se seu útero concebera aquela coisa, nada impedi–la–ia de conceber outro, se era que já não o tinha feito.
Alguns homens vieram de encontro a mim, empunhando armas, mas esgueire–me para a mata, e com o treinamento que tinha aprendido no exército brasileiro, encaminhei–me para o barquinho, despistando–os. O pescador estava apavorado com o barulho dos tiros, e não ousei responder qualquer uma de suas perguntas que não fosse com essa resposta:
– Eu impedi o mau de cair sobre essa cidade.
Caro Douglas, agora finalmente eu havia entendido, Deus colocara–lhe em meu caminho, e fico feliz, mesmo que meus nervos tenham tornado–se frangalhos, de impedir esse demônio de andar pela Terra. Simplesmente sumi depois de recomendar para o velho pescador que saísse da cidade por uns dias; ele disse–me que viajaria para a casa de parentes em Bom Jesus de Itabapoana, e eu, decidi enfiar–me num ônibus e partir para São Paulo; nunca mais quero ver o interior fluminense de novo, mas aqui está, esse é o meu veredito, caso alguém encontre esses documentos no futuro, significa que consegui sair do país; legalmente ou não, apenas sei que não quero mais viver neste continente.