Lovecraft Rio - Mini-novela
O Louco de Rio das Ostras:
I. Luau:
Todas as noites, na trilha abandonada ao sul da praia da Costa Azul, ouviam–se lamentos guturais provenientes de um homem misterioso e enlouquecido. A gente fitava o rochedo litorâneo, e em meio aos luaus, onde muitos jovens divertiam–se com boa música e bebida, o festival sempre era interrompido pelos estrépidos do louco de Rio das Ostras.
Em uma das noites de verão, onde o claro anoitecer abraçava as águas do píer e agitava as linhas de pesca dos senhores que ali procuravam descanso, um grupo de jovens divertia–se com os batuques de pandeiros e os dedilhares de ukuleles. A melodia era entremeada por latinhas de Itaipava e um churrasco a beira–mar.
Letícia já não ia a alguma festa havia meses. As últimas provas do IFF tinham sido, como sempre, um tormento, e cada hora de estudo era valiosa para evitar as recuperações semestrais. Quinze dias de férias, esse é o tempo que tenho pra esfriar a cabeça. Sorveu mais um gole da cerveja, que descera ardendo e refrescando a garganta. Ajeitou o shortinho e sentou–se ao redor da fogueira, sentindo a areia macia sob suas pernas enquanto os amigos iam dar um mergulho. Natália, sentada no colo de Felipe e comendo um petisco, disse a ela, percebendo sua dificuldade para relaxar:
– Amiga, as férias chegaram, relaxa aí… pensa no agora, aproveita…
O sorriso a contragosto de Letícia não fora convincente:
– Eu sei, eu sei. É que tipo, a gente já tá indo pro último ano… tem estágio, o vestibular, e mais uma caralhada de coisa que ainda tenho que ver…
– E quando chegar a hora, a gente se preocupa. Não tô falando pra gente esquecer o trabalho, mas um bom descanso vai ajudar, lá na frente.
Felipe roubara o um dos petiscos da namorada e complementara:
– Já pensaram no que vai ser? Comigo, pelo menos, vou direto na Petrobras, leque, um salariozinho da hora, e depois, e só depois, esquento em ver se fico em Macaé ou meto o pé pra São Paulo.
Natália levantou–se e afastou–se um pouco deles, com a desculpa de que precisava esticar as pernas. A ideia de se separarem não parece agradá–la. Porra, como alguém arranja tempo pra namorar justo num momento tão fodido? O problema, se é que havia problema nisso tudo, é que os dois passaram com folga. Sorvera mais um gole aguado, encarando o fundo da latinha. Os amigos chegaram do mergulho:
– Coé, rapaziada… – um menino qualquer disse. – passa uma latinha aí, faz favor.
E assim, a muvuca fora crescendo. Matheus, Henrique, Daniela, enfim, a galera toda estava ali, com suas próprias rodas de namoro, conversa e música. Alguns traziam caixinhas de som e ouviam um funk perto da orla, outros, os casais namoricos, ficavam no som leve e contagiante dos batuques a das cordas ao redor do fogo, e mais uns outros faziam uns “rap’s”, lá na entrada do píer. Letícia preferira ficar próxima do fogo, era estranhamente reconfortante encarar o contraste entre as labaredas e as estrelas no céu.
Henrique veio sentar–se ao seu lado:
– E então, ‘CDF’, como tem sido a estadia nessa praia cheio de desempregados?
Letícia riu, não sabia se por graça ou pela apreensão em constatar que o que ele falava era verdade. Respondeu–lhe, enfim:
– Ah, na medida do possível, levando em consideração a qualidade da carne e a excelente, pra não dizer merda, cerveja que, com certeza ainda tá gelada, até que tô bem.
Henrique era um cara de bom humor, e ficara feliz em fazê–lo sorrir, não era com frequência que Letícia podia ajudar no humor de alguma pessoa, ainda mais em períodos conturbados como aquele:
– Mas, me diz aí, será que você conhece uma forma de desligar a cabeça dos problemas da vida e curtir um pouco? Pois, bem, eu tô na roda da pegação, e não tô com ninguém…
O sorriso dele era sagaz, conversavam frequentemente, mas estavam naquele típico momento que não sabiam se o sentimento era de amizade ou algo além disso. O bom era que, independente dos sentimentos, os dois encaravam a coisa toda com bom humor. Ele disse–lhe, fazendo uma mesura e quase tropeçando no montinho de areia; a galera riu:
– Ô, porra, calma aí… agora sim… Cara Letícia, se vossa mercê permite–me, gostaria de apresentá–la a um camarada mui especial, apenas um momento…
Então, virando–se para a roda lá no píer, gritou:
– Ô VITINHOOOOOO, SEU ARROMBADO!
Lá na roda, alguém respondeu em mesmo tom:
– QUE FOI, SEU VIADO?
– CHEGA AÍ, RAPIDÃO!
Um moleque com camisa longa e bermuda jeans aproximara–se, sorrindo:
– Já sei o que tu vai pedir… falo apenas a língua do dinheiro.
Henrique estendeu uma nota de dez reais, no que o amigo estendeu um pacotinho plástico com um baseado:
– É pra quem?
– Chega mais… gostaria de apresentá–lo à madame Letícia. Letícia, este é Vitor…
Acompanhando a brincadeira, ela disse–lhe:
– É um prazer conhecê–lo, Vitor.
A voz dele soara–lhe contagiante:
– O prazer é todo meu, agora, se derem–me licença, tenho um moleque pra humilhar na rima. Adeus!
Então, enquanto Natália e Felipe pegavam–se depois de amainarem qualquer coisa que pouco interessava a ela, como de costume, e enquanto outros amigos riam ou escutavam a melodia de Pedro, o “bardo” do grupo, Henrique estendeu o baseado; Letícia perguntou–lhe:
– Conheceu ele aonde?
– Lá em Teresópolis, ele é cria. Gente boa… agora, se a senhorita fizer as honras…
Ela encarou–o como uma estátua:
– Eu fiz Proerd.
E ficaram em silêncio mútuo, para depois, caírem na gargalhada em um acesso de riso que fê–los perderem o fôlego por alguns segundos. Henrique perguntou–lhe:
– Cê tá zoando, né?
– Não tô não.
– De qualquer forma, aqui está.
Aproximou a ponta da fogueira e acendeu–o, tragando profundamente e estendendo a ela:
– Porra, essa é da boa.
Letícia hesitou, o baseado entre seus dedos, estranhamente, fê–la lembrar–se das canetas que utilizava, e lembrar–se das provas, dos cadernos, dos laboratórios; também fê–la lembrar–se do governo, que estava uma merda; da mãe e do pai, que brigavam constantemente; dos avós, que viviam pressionando–a para ingressar no curso de direito, mesmo que ela quisesse engenharia; e lembrar–se de muitas outras coisas. Caralho, a maconha não é pra fazer a gente esquecer das coisas? Essa daqui parece ter o efeito contrário… mas manteve o pensamento para si; Henrique fitava–a, interpretando seu olhar enigmático, até que ela disse:
– Quer saber? Foda–se.
Tragou, e com vontade. Sentira a fumaça adentrando os pulmões em um baque, e o cheiro forte da maconha invadindo a narina; a visão embaçara por alguns segundos com o lacrimejar. Ela tossiu, e quando o fez, também sentiu uma leve tontura. Tragou de novo, ouvindo Henrique:
– Aí sim, gata.
Um novo baque, um novo torpor, leve, mas agradável. E assim, os dois continuaram a conversar na roda, sobre a vida, sobre a moda, sobre política, tudo com a profundidade rasa da adolescência. Sentiu a cabeça ficar leve, e apoiou–a nos ombros dele; um cafuné foi bem–vindo a ela enquanto os moleques atiçavam o fogo. Também sentiu as mãos subindo em sua coxa, o olhar vindo de encontro a seu rosto:
– Ei, Letícia.
– Que foi?
– Posso te beijar?
– Não.
Ele beijou–a. Sentiram–se nos lábios um do outro, até que Natália e Felipe exortaram, alegres:
– Aí, mais um casalzinho pra roda!
Henrique respondeu–lhe, estendendo o dedo do meio:
– Vai se foder.
– Que tal geral se foder hoje, em?
E houve aquele silêncio constrangedor, que ele mesmo tivera de apaziguar:
– É piada gente, relaxa o cu aí…
– A gente sabe.
Natália levantou–se, de repente:
– Ouviram isso? Pedro, para aí.
Ele parou de dedilhar o ukulele; o cara realmente gostava mais de tocar o instrumento do que uma mulher. Agora ouviam, em meio ao estalar da madeira, o som de um grito longínquo. Henrique disse:
– É o ‘Louco’, o velho toda noite vai lá pro morro da trilha e fica gritando pro mar.
Felipe disse–lhes:
– Ei, eu já tô ficando meio enjoado de ficar sentando aqui, bora na trilha?
Pedro disse–lhe:
– Tem muito noiado lá.
Henrique, compelido pela proposta, disse ao grupo:
– A gente é que é noiado. Se for geral vai dar bom, eu quero saber o que esse cara tem de errado, topa, Letícia?
– Topo.
– Boa, e os outros?
A galera dali concordara e levantaram–se. Pedro disse:
– Alguém conhece a trilha certinho? Andar pelo mato a essa hora pode ser perigoso.
– Opa, então a gente vai por trás da mata? Aí sim, espera, vou chamar o Vitinho… VITINHO, SEU ARROMBADO!
Lá atrás, ele respondeu:
– QUE FOI, PORRA?
– BORA LÁ NA TRILHA!
– PRA QUÊ?
– PRA VER O DOIDÃO!
Ele aproximou–se, interessado:
– Caô, ele tá lá agora?
– Tá sim, tu conhece a trilha, né?
– Sim, meu pai é do Corpo de Bombeiros, passa por lá direto. Quem vai?
– Bom, eu, Letícia, Natália, Felipe e Pedro… e você, se quiser.
– Eu topo, perdi essa porra de batalha mermo…
– Então partiu!
E assim, sem saberem o horror inominável que aguardavam–nos, o grupo seguira em direção a trilha.
II. Trilha para o Desespero:
O coração de Letícia começara a palpitar acelerado quando vislumbraram o matagal que rodeava a estradinha de terra, serpenteando seu caminho até o topo do monte onde a trilha começava. Os capões das árvores balançavam com a brisa da noite, e os gritos daquele velho cessaram. Mesmo assim, ninguém chegara a objetar a empreitada com um “é melhor voltarmos” ou “não é uma boa ideia”, eles sabiam que não era uma boa ideia, contudo, aí morava a graça da situação.
Estar acostumada aos corredores de bibliotecas e salas de aula, bem como prédios e meios de transporte, fazia–a sentir um estranho contentamento ao vislumbrar um ambiente tão inóspito, ainda que próximo de uma cidade agitada; apesar disso, o medo daqueles estranhos gritos assolavam os pavimentos de sua serenidade. Enquanto aproximavam–se, Natália disse:
– Esse homem louco, por que não está internado?
Foi Vitor quem respondera–lhe:
– Aí é que tá o problema, o homem não é louco. Dizem que sofre de sonambulismo…
Henrique riu–se:
– Porra, que sonambulismo é esse que faz você ficar de frente pro mar gritando? Deve ser um puta de um pesadelo…
– A melhor coisa a se fazer é evitar acordar a pessoa, mas eu quero ver de perto esse cara, meu pai já o viu, só falta eu.
Então, de forma súbita, eles congelaram com aquele lamento viajando através da mata, que abria um estreito caminho por entre moitas e capim. Felipe parara ao lado da trilha:
– Então, quem vai na frente?
Ninguém respondeu, então coube a ele concluir:
– É, pelo visto sou eu.
E assim, eles prosseguiram. Não ouviam o barulho de grilos, mosquitos, nem mesmo o som de uma cigarra ou coruja, apenas o vento trespassando as folhas caídas e sons tênues que faziam os galhos ao redor deles quebrar–se. Volta e meia paravam para ouvir qualquer coisa, mas sempre mantinham–se firmes e em nenhum momento o tópico do regresso fora sequer cogitado. Estranhamente, qualquer outro tópico fora cessado, pois o intervalo entre os gritos diminuía:
– AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!
Não chegava a ser um grito de puro tormento, era quase um cântico, um cântico desesperado, mais ainda assim dotado de musicalidade. O bramido percorria a mata e atravessava seus ouvidos, fazendo–nos terem calafrios. Vitor, com o auxílio da lanterna de um celular, prosseguia junto com Felipe, e corrigia qualquer rota equivocada; Pedro ficara um pouco mais atrás.
Após andar por algum tempo, lá na frente puderam observar as ruínas do que parecia uma construção. Letícia perguntou:
– O que é aquilo?
Rugas de musgo carcomiam aquela estrutura circular aos pedaços, um extenso carvalho crescia por ela, invadindo tijolo e atravessando as outras plantas daquele arvoredo como se estivesse sentando–se em um trono e reinando aquele país tropical. Vitor disse–lhes:
– É um mirante, um dos mais antigos… data do período colonial… os marinheiros usavam postos de controle como esse pra saber quem tentava atracar na costa, mas sabem o que é doido?
Eles escalaram as escadas apodrecidas e tatearam as ruínas, sentindo os tijolos úmidos e imaginando aquele estranho matagal como um campo límpido próximo à costa. Foi Pedro quem continuara:
– O que pode ser mais doido do que um doido gritando no meio do nada, Vitinho?
– Então, eu e meu pai tava pesquisando as paradas da cidade, os documentos e essas coisas, quando a gente descobriu isso aqui…
Henrique disse:
– Isso aqui o quê?
No que Vitor respondera–lhes:
– Chega mais, cambada.
Eles aproximaram–se. Vitor havia agachado–se em uma espécie de anexo abandonado na lateral do mirante, um pouco mais acima do centro da estrutura. Lá, iluminada pelas luzes das lanternas, eles viram, estranhos hieróglifos estavam esculpidos nos tijolos. Natália disse:
– Isso é árabe?
– Não. É uma língua doidona, a gente pesquisou e descobriu que a parada na verdade era tipo um latim, só que mais antigo do que a própria língua.
– Tu sabe o que tá escrito aí?
– Pois é amigos, essa que é a parada, eu juro por Deus, mas o negócio que tá escrito aqui mais ou menos é ‘para os verdadeiros guardiões dessa terra, que não deixem o mau ser esquecido, pois…’ como era o nome dele mesmo? Ah, é… ‘Tsathoggua lembra–se dos tormentos, e usa os homens como alimento.’
Letícia disse:
– Que porra de Satogua… xatoga.. sei lá que porra de nome é esse… o que significa?
– Então, falam que é um bicho indígena, sei lá, o negócio é cabuloso. Mas tamo aqui pra ver alfabeto do demônio ou ver o doido no fim da trilha?
Natália disse:
– Bora continuar, galera.
Assim, abandonando aquele mirante, eles prosseguiram através da vegetação até um vale íngreme, onde tomaram cuidado para não escorregar durante a descida pela qual encontrariam o maluco, e, novamente seu grito fora ouvido:
– AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!
Porém, não somente ele. Ao redor da mata, não sabiam dizer de onde, pois o som parecia vir de todos os lugares, eles ouviram um barulho de regurgito, gelatinoso, e estalidos. Todos pararam, até que Pedro gritou:
– Ai, meu deus, galera, que porra é aquilo ali?
Eles viraram–se, parecia, e era, uma jaguatirica, porém, à medida que encaravam–na com atenção percebiam que seu focinho estava simplesmente extinto, e o que o substituíra era um buraco fibroso com guelras, e sobre as quatro patas, como que preparando um bote, a coisa rosnou. O coração de todos rimbombou, pois quando a coisa abrira a boca, viram que lá dentro havia pessoas lamuriando–se. O horror fora tão grande que eles simplesmente correram, tropeçando mata afora.
Henrique segurara a mão de Letícia e corria com ela, enquanto Vitor e Pedro já encontravam–se lá na frente. Natália perdera as forças por um momento, e Felipe ficara para ajudá–la, porém, quando estavam a correr, puderam ouvir o estrépido de algo tropeçando, e viram que Natália havia novamente caído desmaiada; ao encontrar o chão, sua cabeça estatelara–se em uma pedra, e sangue voou ao redor. Felipe arquejou, e Letícia e Henrique pensaram em parar para acudi–los, foi quando aquela criatura voou, sim, simplesmente voou até os amigos e dilacerou–os. Não ficaram para ver, pois o mais puro horror tomava conta de sua corrida desesperada. E o pior ainda estava por vir.
III. Entre o Mar e a Morte:
Meu deus, meu deus, meu deus. Os galhos projetados através da mata arranhavam seus braços e o barulho dos gritos de dor lá atrás reviravam a sua alma; gritos horrendos de agonia que faziam–na regurgitar a cerveja dentro de si, e se não fosse pela agilidade de Henrique, não conseguiria sair daquela trilha. Eles prosseguiram pela encosta íngreme até as pedras do rochedo aparecerem, bem como o paredão que levava à praia, onde o mar quebrava–se ante o aglomerado rochoso de algas e poças salgadas. Pedro e Vitor estavam parados, pois à frente deles encontrava–se aquele louco, que, de louco, nada parecia.
Suas vestes eram humildes, mas nada havia de desgranhado na vestimenta ou no semblante, a não ser a feição, cujo horror denominava um elemento ausente a suas visões; ele encontrava–se no caminho cuja rocha permitia a descida e a escapatória deles daquele horror que escondia–se, lá atrás, e precipitaram–se quando viram Letícia e Henrique indo de encontro a eles.
O louco parara, de súbito, o que fê–los pular para trás, de susto. Ele disse, em tom de raiva:
– Merda, o que estão fazendo aqui!?
– A–a–agente v–v–veio ver o senhor… – foi Vitor quem disse. – mas, tem algo lá na mata!
– Eu sei, porra, por que acham que estou aqui?
Vitor disse, consternado:
– Achamos que você fosse louco.
– As pessoas acham muitas coisas.
– O que você tá fazendo aqui, então?
– Protegendo a cidade.
Henrique e Letícia aproximaram–se, com receio de que a qualquer momento aquela criatura pudesse saltar da mata e atacá–los. Ela disse–lhe:
– Protegendo do quê? Se for aquele monstro lá na mata, parabéns…
– Não, porra, estou protegendo de algo maior, elas são somente servas da coisa.
– Que coisa?
– Cuidado, venham pra cá!
Eles foram, e quando deram meia–volta puderam fitar, lá no topo do morro, não somente uma, mas quatro daquelas criaturas que pareciam possuir formas estranhas de animais: uma jaguatirica, um gambá, uma coruja e um cachorro–do–mato. Elas rosnaram, o brilho daquele vazio que eram seus rostos brilhando em escarlate. Eles arquejaram com o horror:
– Meu deus, o que é aquilo?
O louco disse:
– São os criados, venham aqui.
Eles obedeceram, ficando dentro de um círculo desenhado com cal e tinta vermelha, no centro de um estranho hieróglifo, muito parecido com aquele que tinham visto nas ruínas. A coruja, repousada no ramo de um carvalho, alçara voo e partira de encontro a eles, mas, antes que pudesse machucá–los com seu bico cortando o vento, seu corpo simplesmente desaparecera com uma chama e um grito que parecia de dor. Pedro ficara estupefato (os outros estavam assustados demais para dizerem qualquer coisa):
– O que aconteceu com ele?
O louco respondera–lhe:
– Um círculo de proteção, não saiam do círculo, eu vou tentar eliminá–lo.
– Eliminar quem, porra?
– Aquilo!
Apontou para a água, e seguiram a indicação por onde as ondas remexiam–se entre rochedos e um coral; a luz da lua incidia seu reflexo tortuoso na maré bem como no agora pavimento de seus espíritos, somente para enunciar outro brilho, o brilho das profundezas… meu deus! Ela gritou, pois fora a primeira a vê–lo, mas os outros também o fizeram, quando viram aquilo. O brilho escarlate percorria suas escamas, uma bocarra que assemelhava–se a um bagre continha o mesmo lume daqueles bichos, e seus olhos eram estranhamente esverdeados.
Não possuía nenhum tentáculo, mas suas mãos e pés, na compostura do que parecia ser um sapo, eram dotadas de garras elétricas como os filamentos de uma água–viva, e aquela coisa pareceu encará–los, cada vírgula de seu corpo incidindo abalos cósmicos em seus estados mentais. O louco, entoando um cântico estranho e pegando próximo de si um arpão encrustado com algum metal que eram–lhes desconhecido, disse–lhes:
– Esperem o meu sinal, assim que verem algo saindo da água, uma pedra ou qualquer coisa do tipo, corram, e se estes bichos não tiverem desaparecido, eu sinto muito.
Então, ele simplesmente pulou, com tudo, em um mergulho profundo, e puderam ver aquela coisa movimentando–se. As criaturas desciam maliciosamente em sua direção, soando rosnares como chocalhos e dando investidas que eram interrompidas assim que a linha encontrava–se sobre suas patas.
E lá do fundo, eles ouviram sons, abafados, mas pareciam fogos de artifício, pois imensos focos de luz surgiam e desapareciam, ora azuis, ora verdes, ora roxos, e as criaturas respondiam a elas, ora mordendo, ora granindo, ora movimentando–se, tudo como um nado sincronizado na superfície, enquanto, abaixo dela, o terror escondido pelas águas escuras acontecia.
Ficaram ali no que parecia ser horas, sem ao menos enunciarem uma frase, apavorados por um espetáculo hediondo e apoiados uns nos braços dos outros, com medo. Quando os primeiros raios de sol despontaram no horizonte, assustaram–se, pois as criaturas graniram de dor e evanesceram sobre seus olhares. O louco não voltara, mas tampouco o dito sinal fora enviado. Pedro, Vitor e Henrique levantaram–se, os joelhos de Letícia latejavam com as dores do terror há pouco vivido. Henrique estendera–lhe a mão:
– Vem, eu te ajudo, a gente ainda têm que descer a trilha…
Vitor, com as mãos trêmulas, acendia um baseado, e Pedro, olhando de um lado para o outro, como que esperando um ataque fantasmagórico, segurava o ukulele como uma marreta, preparado para qualquer coisa. Henrique disse, enquanto desciam a encosta até a praia do início de manhã:
– Tá, aquilo realmente aconteceu…
Letícia finalmente deixara as lágrimas escorrer pela face:
– O Felipe, a Natália, como a gente vai contar pra polícia o que houve?
Vitor, com o semblante compenetrado, ainda que as mãos e a voz falhassem–no de quando em quando, disse–lhe:
– Simples, a gente não vai. A gente saiu da mata, onde eles preferiram ficar, eles eram próximos, então uma transa vai ser fácil de se imaginar… e continuamos, não vimos o louco, e também não vimos eles…
– Será que eles vão acreditar?
Pedro disse:
– Eu não sei, mas é a única coisa que temos. O Vitor tá certo, por mais que eu esteja apavorado, ninguém vai acreditar no que a gente viu. E a gente viu.
Quando a areia gelada pelo orvalho da manhã amaciara suas passadas em um tapete gelado, eles aproximaram–se da orla, observando os rastros da fogueira da noite prévia e olhando uma última vez para o horizonte, onde o sol levantava–se. E a partir daquele dia, o que mais desejaram foi manterem–se nos seus afazeres, lotados de trabalho, estudo e tudo que fizessem–nos esquecer aquela noite que ficaria para sempre marcada em suas vidas, ainda que nunca conseguissem livrarem–se dos pesadelos causados pelo horror que presenciaram ao encontrar–se entre a morte e o mar.