Lumen Saga - Capítulo 14
Um segundo. Esse era o tempo que faltava para o ferrão da harpia perfurar o maxilar de Theo e partir seu crânio ao meio, sorte se não o dizimar por completo. Aquele olhar de desdém da harpia lembrou a Theo como ele era…
— E então, o que te torna tão poderoso? — Kaiser indagou à Liam. Por sua vez, o tenente permaneceu em silêncio.
No campo de treinamento privado do imperador, todos os tenentes e generais treinavam até que o imperador decidiu testar sua nova escolha: Liam Mason.
Já é sabido que, em Egon, aqueles que manipulam a ciência têm acesso ao Weltna — equivalente à mana. Isso deriva de manipulação elemental até técnicas inatas. Mas, para os amaldiçoados Le Fay, esse termo é rompido. Sem Weltna, sem obediência às leis da física, apenas aquilo que rompe todas as leis universais: a verdadeira magia, bruxaria.
Todos dessa linhagem eram caçados e queimados vivos, tanto pelos nobres menores de Egon quanto pelo império rival de Mikoto. Portanto, é raro ver um real Le Fay em combate. E a batalha entre Liam e Kaiser logo se tornou a principal atração para os tenentes e generais do imperador.
— Não gosta muito de falar, né?
Kaiser caminhou até Liam, tirando seu sobretudo. Tocando o rosto de Liam, ele se inclinou analisando levemente as cicatrizes.
— Não são cicatrizes de batalhas. Por que não as cura? Creio que ficaria mais atrativo para as mulheres, visto que já é — disse Egon.
Kaiser Egon continuou passando o polegar no rosto de Liam, que não respondeu de forma alguma. Seja com contato visual ou físico. Até que Egon, acidentalmente, toca na cicatriz mais profunda de Liam: um corte profundo na garganta. Tal que seu pai lhe presenteou aos dez anos, o fragmento do vidro foi tão longe que perfurou uma artéria de Liam. Naquele instante, os olhos azuis de ambos se encontraram.
— Hum — soprou Egon, jogando o rosto de Liam para o lado e dando uma volta no soldado. — Finalmente me olhou nos olhos. Então, que tal me falar o porquê?
— Você é inferior. — Foram as primeiras palavras de Liam direcionadas ao imperador.
— O que disse?
— Você é mais fraco do que eu. Todos aqui são. Não vejo sentido em me relacionar com pessoas assim.
— Boa. O conceito egoriano: sou melhor que todos. Nada é maior que nosso ego e orgulho. Então, Liam. Se é melhor que eu, por que eu sou o imperador e não você?
— Porque eu ainda não quis te matar — retrucou Liam. — Para ser o imperador, basta apenas eu te matar. Igual você fez com seu pai.
— Essa insolência dele com o imperador já está me irritando… — resmungou o general Johan, escutando os dois conversarem ao longe.
— Então por que não me mata? — indagou Kaiser.
— Está assumindo responsabilidades que eu não quero para mim. É mais útil vivo — retrucou Liam.
— Entendo. Eu sou mais fraco, né? Então se eu vencer você em um combate, irá me obedecer?
— Tente — desafiou Liam.
O terceiro tenente, James, apenas observou de longe, cruzando as pernas e achando uma posição mais confortável.
James se formou com Liam na academia militar, então ambos já eram conhecidos. Além de que, também vem da mesma linhagem de Liam.
— Vai ser interessante — comentou James.
— O que será interessante? O Kaiser ganhar do moleque mimado? — indagou Johan.
— Por que mimado? Os egorianos são educados dessa maneira — disse a tenente Mia. — Todos egoístas, arrogantes, orgulhosos e vaidosos. Desde sempre foram criados para se acharem superiores a tudo e a todos, menos a Deus. Podem rejeitar, mas há menos de quinze anos, todos vocês também eram assim. Não é mesmo, generais?
— General Johan, não é o Kaiser quem irá ganhar — disse James. — Será a primeira gota de sangue de Egon.
Os generais mais experientes se calaram. Os mais novos, seguraram um riso abafado e Johan não conseguiu se conter ao insulto do tenente novato.
— O leão é o topo da cadeia alimentar na selva. Que outro ser vivo iria contra algo do tipo?
— Leão? — indagou James. — A personificação do Kaiser Egon pode ser um leão. Nada mais justo que o rei da selva para o imperador. Mas, para personificar o Liam…
Kaiser e Liam se posicionaram para o combate.
— Não há nada mais justo do que… — Sem mudar a expressão, enquanto Kaiser arregalou os olhos, Liam mexeu o primeiro músculo. — a própria morte — completou James, soltando um sorriso sádico em resposta ao avanço brutal de Liam contra o imperador.
O soco de Liam foi três segundos mais rápido que o som emitido pelo movimento, mesmo assim o Kaiser desviou com uma certa dificuldade. Contra-atacando, Egon desferiu dezenas de chutes, que Liam conseguiu prever antes mesmo do movimento inicial ser dado.
Segurando a perna esquerda de Egon, Liam chutou pode detrás do joelho direito de seu imperador, desequilibrando totalmente o adversário. Não satisfeito, Liam jogou o cotovelo sobre o rosto do Kaiser e o esmagou contra o chão. Ainda tentando processar, o imperador pensou:
“Não consegui sequer reagir…” ponderou ofegante. “O tempo de resposta dele é incrível. Não pensou, apenas agiu, diferente de mim.” raciocinou. “Assim que a luta iniciou, não pensei que ele atacaria tão rápido. Imaginei que ele fosse do tipo estratégico que demoraria mais tempo, porém não foi o caso… Além de que, eu não consegui usar minha técnica inata desde o início. Essa é a habilidade que a bruxaria de Morgan ofereceu a ele? A capacidade de anular o Weltna?” concluiu Egon.
— Entendeu agora, Kaiser? Você só está vivo por que…
— Sim, entendi. Pelo visto uma rivalidade vai surgir — disse Kaiser.
— Nunca. Rivais são pessoas equivalentes. Nós já temos a resposta de quem é superior — disse estendendo a mão. Aceitando o gesto, Kaiser se levantou dizendo:
— Liam, reconheço minhas fraquezas desde sempre. É por isso que tenho em mente que ainda existe escada para subir até me tornar um verdadeiro imperador. Está disposto a me acompanhar?
— Disposto eu não estou. Mas já que estou sendo obrigado… — retrucou Liam.
— Relaxa Kaiser — disse James, saltando nos ombros de Liam. — O idiota aqui se sente honrado com vossa oferta.
— Perdão. Mas quem é tu? — indagou Kaiser.
— Ah! Claro. Sou o segundo-tenente, James. Novato.
— Então é o outro Le Fay? Esplêndido — disse sorrindo enquanto estica a mão para um comprimento com James.
E sem saberem, o trio mais poderoso da história se reuniu casualmente pela primeira vez.
Toda essa memória passou pela cabeça de Theo em somente 0.800 milissegundos. O tempo se tornou um conceito irrelevante, assim como em um dia chato de aula, o tempo parecia não passar. Do tempo restante para o ferrão atingir Theo, restavam apenas 200 milissegundos.
“Não… consigo. Eu não consigo ser igual a ele. Se eu fosse, não seria tão fraco. Eu… desisto.”
Seu corpo por inteiro relaxou, permitindo que a harpia o atacasse.
No último segundo, a marca em sua mão explodiu em uma rajada de vento que jogou Theo para trás e espantou a harpia para longe. Aproveitando a distância, o corpo de Theo se moveu sozinho para executar um feitiço silencioso.
Puxando da marca em sua palma esquerda uma flecha de energia verde, cujo logo transformou-se em vento. A flecha, embora feita de energia, era casualmente afetada pelo vento ambiente. Sem consciência, os lábios de Theo mexeram-se:
— Ártemis: Sagitta Lunae divinae Cervi.
A flecha de vento foi disparada contra a harpia, mas, antes de chegar na besta, ela se separou como dois pequenos chifres de cervo, dando uma volta em direções opostas na harpia como a lua sobre o planeta.
Vendo o show de luzes naturais, Theo despertou novamente. Ele havia apagado, porém, seu próprio corpo não desistiu de lutar. Mesmo assim, Theo tinha certeza de que ele não havia agido.
Theo fugiu pela floresta enquanto a flecha ainda continuou girando pela harpia. A besta apenas ficou paralisada processando aquilo. Como um ser que tem como instinto se provar o melhor daquele elemento, a harpia ficou indecisa sobre qual atacar primeiro: o feiticeiro ou o feitiço, não conseguindo distinguir um do outro.
Juntando-se novamente em uma flecha, não demorou muito para o feitiço explodir em um tornado forte.
Um minuto fugindo pela floresta.
Esse foi o tempo que Theo durou para rodear o morro e voltar até o território do cristal, mas não sozinho. Após se livrar do feitiço, a harpia surgiu novamente por de trás de Theo, caçando-o ferozmente.
— Aryna, agora! — ordenou Theo.
Instantaneamente, Ivan e Antony avançaram contra todas as bestas que atacavam Aryna. Gesticulando uma arma de fogo com seus dedos, ela se recordou das palavras ditas por Theo recentemente.
“Respira fundo. Feche os olhos.” Aryna seguiu cada passo respectivamente. “Concentre-se no seu núcleo. Não há nada além de bilhões de partículas tentando escapar de uma esfera limitada. Comprima! Empurre-as para dentro novamente. Torne-as em somente uma…”
Quanto mais energia nuclear alguém tem, maior será a descarga de energia em um só ataque. Com Aryna não difere: mesmo no seu feitiço que menos necessita de energia, ela liberava ao equivalente de 50% de um núcleo inicial — azuis ou amarelos, sendo os núcleos mais fracos.
Com isso, os desviantes com maior capacidade energética, como Aryna, utilizam de uma técnica complexa onde a energia é compactada. Gerando bilhões e bilhões de partículas energéticas o tempo inteiro, a técnica permite que com uma concentração imensa o desviante transforme esses bilhões de partículas em somente uma, reduzindo o gasto em 100%.
Tendo uma fonte de energia limitada, isso é algo que Theo tem conhecimento, mas não pode usar. Já que mesmo após comprimir a energia, deve existir uma fonte externa para preencher o espaço das outras partículas. Mas, para Aryna, a situação é outra. O termo energia infinita se refere a uma hipotética situação onde, o próprio núcleo, mesmo que esteja vazio, irá gerar energia por conta própria sem necessitar de uma fonte externa como a mana natural para repor a carga.
Com a energia infinita e a técnica de comprimir partículas, para Aryna, resta apenas ter concentração o suficiente para manter o ritmo. Concentrando-se, o tempo para Aryna se tornou inexistente. É como se o universo desse a ela o tempo necessário para pensar.
As partículas verdes do núcleo de Aryna, que antes tentava fugir da esfera energética, se comprimiram a um nível subatômico. O que antes era uma estrela, não passava de um fóton. Lentamente o espaço vazio do núcleo foi se preenchendo sozinho.
Uma única gota d’água começou a deslizar pela ponta do indicador direito de Aryna. Num piscar de olhos, essa gota se transformou num jato d’água de alta pressão que perfurou o núcleo da harpia. Estendendo o braço para o alto, Aryna dividiu a besta ao meio como se estivesse cortando papel.
“Isso!” Theo comemorou mentalmente.
Seu corpo estando tão cansado que sequer conseguia mover os lábios ou expressar felicidade. Mesmo assim, ele usou seu último movimento para criar um impulso de vento que o jogou contra o cristal.
Todas as aves se voltaram para o cristal assim que a harpia morreu. Antony e Ivan correram para proteger o avanço de Theo enquanto Rebecca criou uma barreira com o mesmo objetivo.
Há apenas dois passos do cristal, Theo sentiu a pureza que emanava. Há apenas um passo, o cristal começou a se rachar. Coisa que se durasse mais um minuto, daria vida a um monstro de grau seis na concepção de Paul.
Mas Theo conseguiu impedir que isso acontecesse. E como? Simples: agarrando o cristal que estava prestes a implodir, Theo absorveu toda aquela imensa quantidade de energia até que o cristal enfim se tornasse algo sem cor.
A horda de aves geradas pelo arcano logo explodiram em partículas verdes.
Rebecca caiu de joelhos, suspirando de alegria. Afinal, a luta de quase uma hora havia acabado.
— Como assim?! — reclamou Antony, insatisfeito com o desfecho. — Por que deixamos ele pegar a energia do cristal?
— A luta só existiu para isso acontecer — disse Rebecca.
— Hã?
— No primeiro contato com Amiah, nós escutamos Theo falar sobre um certo problema — disse Ivan. — Paul explicou a nós que o problema era a fonte de energia limitada do Theo. Foi por isso que desde que chegamos na floresta, procuramos apenas animais de éter. Mesmo que não tenhamos conseguido…
— Esse foi o motivo para iniciarmos a luta contra esse cristal. Foi o motivo para você entrar no território, não foi? — indagou Aryna, tratando Antony com desdém.
— Claro — gaguejou. — Obvio que foi por isso. Eu estava preocupado com o meu amigo. Obviamente eu sabia disso — respondeu Antony, em um tom não muito convencido.
— Sei…
Ao cessar das partículas foi quando Amiah e Paul decidiram ir ver seus alunos. Quatro deles estavam bem fisicamente, exceto por Theo que estava no limite.
— Agora que concluímos a missão… — disse Aryna. — Iremos para Fulmenbour, né? — indagou a Paul.
— Sim — retrucou Paul. — Mas não iremos para lazer. Então esqueçam a parte de comprarem centenas de roupas — reprimiu as duas garotas. Aryna fintou olhares de raiva com seu mentor.
— Consegue se levantar? — Amiah indagou a Theo.
— Sim — respondeu, com dor em sua voz. Fazendo um breve esforço, Theo conseguiu se levantar.
Os outros alunos já estavam seguindo trilha pela floresta junto de Paul. Pareciam menos acabados do que realmente estavam.
Theo olhou para sua palma esquerda em busca da marca, porém ela não estava mais lá. “Aquilo foi um surto?…” indagou a si.
— O que foi? — perguntou Amiah.
— Não é nada… — retrucou, ainda olhando para a própria mão. — É. Não é nada. Podemos voltar?
— Já era para vocês estarem na carruagem — respondeu em tom sarcástico, porém, sério e preocupado.
“Aquela sensação de antes… com certeza foi uma explosão de éter. Não veio da harpia, disso tenho certeza. O moleque não tem energia o suficiente para isso. Então quem…” pensou Amiah.
“Aquela marca de antes… Foi uma ilusão energética? Não… A sensação estava realista demais para uma ilusão…”
Em momentos de crise, partículas de energia se aglomeram em um único lugar. Afetando diretamente o cérebro do indivíduo, essas mesmas partículas geram uma ilusão de alguma forma. Geralmente, essas ilusões fazem o desviante ganhar confiança e impulso, onde pensam estar mais poderosos, quando, na verdade, estão cada vez mais fracos. Por mais que afetem a visão, as ilusões energéticas param aqui mesmo. Não passando de algo visual, sendo incapaz de criar sons, sensações, sentimentos ou odores.
“O pior de tudo é que… eu simplesmente efetuei um feitiço que eu sequer vi antes.” Enquanto caminhava, Theo fechou os olhos e tentou se concentrar. “Praticar meditação caminhando é complicado, mas acho que consigo levar a energia até a minha mão…”
Enquanto guiava a energia por uma veia até sua mão esquerda, seu corpo paralisou. Os olhos de Theo se arregalaram antes de fraquejarem. A visão dele se tornou turva, acompanhando seus músculos relaxarem.
E finalmente, após uma cansativa fuga contra um grifo, uma pequena ida ao reino espiritual de Hades, somente três horas de descanso e mais meio-dia de batalhas… O corpo de Theo se rendeu ao cansaço, caindo no chão como uma pedra.