Lumen Saga - Capítulo 23
Eu sempre fui considerada uma criança única no meu vilarejo, um gênio. Afinal, eu era uma camponesa que se interessou e aprendeu gramática, leitura e matemática, uma garota estranha, considerada pelos demais. Afinal, quem, com dois anos, iria preferir tentar juntar sílabas e aprender a ler, ao invés de aprender a realizar suas tarefas obrigatórias? O único que me entendia era ele.
Lembro-me como se fosse hoje. Eu e as outras crianças do vilarejo estávamos falando dele, quase praticando bullying com o coitado. Ele estava lá, sentado e isolado, tão pálido que provavelmente nunca havia saído de casa. Na verdade, ele tinha se machucado antes daquele tempo? Seus cabelos eram cor de trigo, não um loiro qualquer, mas sim uma cor mais forte e brilhante. A genética dos desviantes ajuda às vezes. Seus olhos, iguais aos do duque Ethan: âmbar de mel, como se uma gota de ouro tivesse pingado em suas íris. Theo estava lá, isolado e solitário, apenas desenhando na areia com um graveto.
Senti um pouco de empatia, afinal, éramos ambos esquisitos. Mas nunca cheguei perto dele antes do dia em que meu avô me obrigou. Ele me forçou a conversar com o Theo. Afinal, o Sir Ethan o trazia toda quinta, porém ele ficava lá, embaixo de uma árvore com o Sir Edward desenhando na areia. Deduzimos — eu e as crianças de Midian — que ele era arrogante e orgulhoso, somente por ser nobre. Mas a Lady Camille nunca deixaria isso acontecer. Afinal, ninguém sabe o porquê, mas a Lady Camille e o Sir Ethan odeiam o comportamento da nobreza e não só isso: eles odeiam tudo que provém da realeza em si. Eles sempre deram mais valor aos que não tinham nada do que aos que tinham tudo.
Então, um dia eu fui obrigada a engolir o orgulho e conversar com ele. Na verdade, foi meu avô quem me obrigou a isso, ordenou que eu fosse amiga do filho do duque. Não por interesse, mas sim porque meu avô era o líder do vilarejo, sendo a maior fonte de trigo de Romerian. Por isso, a família Lawrence era tão próxima de nós. Às vezes, era possível ver o próprio Sir Ethan ajudando na colheita e afazeres dos aldeões.
Mesmo assim, eu me aproximei. Ainda me recordo do seu desenho. Era um olho, mas não um comum. Uma espécie de galáxia rodeava sua pupila. Na época, ele disse ser uma técnica ocular, que utilizava de magia para anular os poderes dos outros. Lembrando agora, Theo realmente sempre foi criativo.
Daquele dia em diante, começamos a nos aproximar. Claro, foi gradual. Ele tinha problemas para se expressar, não tinha atitude para falar algo, ficava apenas observando. Eu não entendia, então achava que estava me evitando. O tempo foi passando e Magnum se juntou ao trio — um garoto de cabelos ruivos e olhos âmbar, era camponês, mas eu e Theo com o tempo teorizamos que ele era filho de nobre. Nenhum camponês poderia ter essas características.
Foi estranho como o tempo passou. Tínhamos dois anos e, do nada… Boom! Já estávamos com cinco anos. Ah, essa idade… Já nos considerávamos melhores amigos. Eu, Theo e Magnum éramos inseparáveis.
Por ser um desviante, Theo sempre teve agilidade e velocidade imensuráveis se comparado às crianças da nossa idade. Magnum detestava esse fato, por isso tentava sempre competir. Nunca me importei; sempre preferi ficar com um livro em mãos enquanto eles competiam para ver quem corria mais, pulava mais alto ou quem se cansava por último. Nota: Theo sempre ganhava.
Mas foi no dia nomeado “Cataclisma Negro” que nossas vidas viraram de cabeça para baixo. Parecia apenas mais um dia comum. Eu estava sentado debaixo de uma árvore lendo um conto que Lady Camille, mãe de Theo, me deu. Enquanto isso, ao meu lado…
— Agnes! Cê viu o Theo por aí? — indagou Magnum.
— Não vi. Mesmo se tivesse, ele ia me xingar por contar.
— Desgraçado me tacou uma pedra de barro nas costas e vazou. Quando eu ver ele…
— Vai fazer o quê? — Theo surge em um galho, numa das árvores mais altas do bosque que rodeia a plantação.
Magnum olhou para cima com desdém. Theo revidou o olhar com sarcasmo.
Jogando um galho em Magnum, aproveitou para saltar da árvore. Ele repousou ao meu lado e olhou o livro.
— Ah, o conto da separação dos continentes? — indagou, enquanto Magnum tentava tirar o galho fino dele.
— Sim. Já leu esse também?
Não importava quais livros eu lesse, Theo já sabia o desfecho de todos. Isso era detestável, porque ele é o tipo de pessoa que estraga a primeira experiência.
— Aham. O deus Zetian afunda Atlantis com um raio, pois naquela época o conhecimento deles ameaçava os deuses. O deus Nethuns, governante de Atlantis, ficou irado com isso e cravou seu tridente no chão. Durante quarenta dias e quarenta noites, nosso mundo foi atacado por terremotos e tempestades intensas. Nethuns voltou para seu reino, que agora estava submerso e deixou o tridente solto em algum lugar. Após isso, os continentes foram divididos. E; por isso, há uma tempestade além dos oceanos…
Bati o livro com toda a força.
— Obrigada, Theo, agora não precisarei ler mais um dos quinze livros que você me contou tudo antes que eu saísse da primeira página.
— De nada. — Ele riu. Caminhou até Magnum e tirou o galho que estava preso. Posteriormente, a irmã mais velha de Theo, Thays, apareceu vindo das plantações.
— Theo, está tudo bem por aqui? — perguntou Thays. Seus cabelos são uma cópia dos de Sir Ethan: lisos e brancos. Seus olhos, por outro lado, são iguais aos de Theo. Porém, com um tom esverdeado.
— Sim.
— Certo. Regressarei para Midian. Então não briguem e vão para casa de Agnes em dez minutos.
— Sim, senhora! — concordamos.
Quando Thays virou as costas e voltou ao vilarejo, Theo resmungou:
— Estou com fome. A macieira já desabrochou?
— Não sei se o correto é desabrochar… — comentei.
— Se entendeu o significado, então tanto faz. Magnum, vamos ver?
— Bora.
— Você também — disse Theo, puxando meu braço e correndo pelo bosque. Minutos depois, iríamos ter preferido acompanhar Thays até Midian.
Ao chegarmos na macieira, a atenção de Theo foi voltada para um cogumelo andarilho. Ele era brilhante, azul neon. Qualquer criança se interessa, porém, naquela época, Theo estava com o trabalho de estudar os animais. Foi um trabalho que a professora Beatrice havia lhe dado, já que Theo queria ser um pesquisador biólogo na época. Ele atravessou o riacho e lá demorou um bocado de tempo. Temos o suficiente para mim e Magnum nos preocuparmos. Porém, quando menos esperávamos, ele surgiu da floresta, tropeçando em uma pedra e se afogando no riacho.
Rápido, ele se ergueu e voltou a correr até nós. Estava pálido, mais do que nunca. Porém, o que mais me preocupou foi sua boca e olhos. De seus lábios descia sangue, manchando sua túnica branca. Seus olhos oscilavam, não paravam quietos, estavam arregalados e banhados por desespero.
— Theo… — Eu disse, parando-o pelos ombros. — O que aconteceu?
— Não importa. Vamos sair daqui…
Uma explosão o interrompeu. Não só uma, como várias. Todas vindo da plantação de trigo. Nuvens de fumaça poluíram o céu daquele dia, que estava limpo como um dia de verão. Corremos para aquela direção, tentando concluir o que havia acontecido.
Ao subir uma pequena elevação entre o bosque e a plantação, Magnum encontrou seu tio no chão, sangrando no estômago e já morto. Ele correu em busca da figura paterna.
Theo e eu corremos para a maior nuvem de fumaça, afinal, apontava a direção em que minha família costumava ficar na plantação. A estrada de barro, cortando a plantação de trigo, destacava nitidamente o enorme ciclone de fumaça.
Parei de correr bem ali. Foi de canto, mas o necessário para me traumatizar. Eu já tinha passado por corpos carbonizados, desfigurados, esmagados e até mesmo explodidos naquele dia. Mas aquela cena me impactou para o resto da vida.
Minha mãe estava jogada à direita, sem conseguir se mover. Afinal, estava com um pedaço afiado de metal cravado em seu estômago, tal que já havia cortado seu braço ao meio. Suas pernas estavam quebradas por ser jogada há cinco metros de altura diretamente ao chão. Sua dor era tanta que sequer conseguia manter os olhos abertos.
Me joguei ao seu lado e comecei a gritar por ela. Sir Ethan surgiu repentinamente e tocou na placa em seu estômago. Somente com um toque, ele carbonizou todo o metal; com outro toque no estômago da minha mãe, ele criou uma espécie de barreira de energia que estancou o sangue temporariamente.
Pegando minha mãe nos braços, ele me indagou: — Você estava com Theo? Onde ele está agora?
Meus lábios tremeram e os olhos lacrimejaram. — Eu não sei… — respondi chorando.
— Edward! — gritou por seu irmão mais novo. — Edward! Edward!
— Oi! — exclamou de volta, saindo da plantação com três feridos.
— Levem-nas para o vilarejo. Irei atrás de Theo.
Sir Edward pegou minha mãe nos braços e me ordenou: — Siga-me, depressa!
Deu tempo apenas para que chegássemos na principal estrada até o vilarejo, que a explosão maior aconteceu. Foi tão poderosa que nos jogou por mais de dois metros.
✡︎
Entre os três, eu e Theo fomos os únicos a chegar no hospital. Sem ter mais informações sobre o paradeiro de Magnum desde aquele dia, demorou um tempo para processarmos que ele também havia morrido.
Olhando para mim, um médico baixinho e parrudo disse:
— Ela está bem, machucou apenas o braço esquerdo. — O médico entregou meu diagnóstico a lady Camille. — Já o garoto… — Referiu-se a Theo. — O impacto da explosão, mesmo que amenizado pela proteção do Sir Ethan, causou uma fratura no crânio, duas no antebraço direito e em cinco costelas.
Sir Ethan pousou sua mão na minha cabeça e confortou-me: — Vai ficar tudo bem. Não se preocupe.
Lady Camille envolveu Theo num abraço frágil e se despediu, pedindo para que Sir Ethan o levasse para casa.
— Agnes. Vamos visitar sua mãe? — Estendeu-me a mão.
Caminhamos pelo corredor. Espiei de cantinho cada quarto, e neles havia somente os feridos do incidente. Entrei no quarto de minha mãe e olhei as janelas, no pátio, mais carruagens chegavam com mais mortos e feridos. Somente na região de Loureto — a capital do ducado Lawrence —, estimou-se cerca de quinhentas mortes. Aquilo aconteceu no mundo inteiro, só não tínhamos ciência disso.
De repente, uma mulher pálida e de cabelos lisos, longos e brancos surgiu na janela, com um vestido preto rasgado. Ela me ignorou e olhou diretamente para a minha mãe. De seus olhos, lágrimas escorriam.
Corri rapidamente para perto da lady Camille e de minha mãe, mas antes que eu pudesse dizer algo sobre a mulher, minha mãe disse:
— Agnes, querida. Ajude a Lady Camille. Obedeça-a. Olhe para a frente e não se arrependa…
— Mãe, uma mulher…
— Eu te amo, filha.
A mulher da janela berrou. Somente eu escutei, mas os vidros de qualquer lugar do hospital se quebraram com seu grito. Pus a mão nos ouvidos e reclamei de dor.
Lady Camille me agarrou e me levou ao canto da sala enquanto gritava pelos médicos. Quando percebi que aquelas haviam sido as últimas palavras da minha mãe, já era tarde demais.
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Não demoramos muito para chegar até a casa dos Lawrence. Sir Ethan e Theo também haviam acabado de chegar. Eles nos esperaram na escada, então lady Camille não conteve lágrimas e palavras para lamentar a morte de minha mãe. As duas eram amigas há mais tempo do que eu e Theo temos de idade.
— A família O’Neill… — murmurou Sir Ethan, sequer tomando medidas ao me encarar.
— Existe apenas Agnes agora — disse lady Camille. — E eu quero adotá-la como nossa terceira filha.
— Hã? — murmurei, ainda tentando entender o que havia acontecido com minha mãe.
— Ela como minha irmã? — resmungou Theo.
— Uma nova menina na casa? El! — Thays exclamou pela criada de Theo. — Terá mais uma criança para cuidar!
— Que bom, eu acho… — retrucou Ellen, em um tom tímido.
Olhei novamente para Theo, e aquela imagem nunca saiu de meus olhos. Ele estava olhando para o chão, refletindo sobre algo. Sua pele ainda estava um pouco pálida, estava todo enfaixado. Seus olhos dourados… sequer tinham brilho. Estavam tão ausentes que pareciam um abismo de sentimentos confusos.
E foi assim durante anos, até que ele superasse a morte de meu avô. Como não conheceu nenhum de seus avôs, ele decidiu tratar o meu como seu segundo pai. Eu o vi mentindo, falando que treinava para proteção, e que não queria ver aquilo acontecer novamente, mortes que ele não pudesse evitar. O vi lutar sem motivos. E foi assim por todos esses anos.
Ultimamente tenho me perguntado bastante: ele chegou a Vagus há uma ou duas semanas. Como ele está? Encontrou um motivo? Já achou a emoção que desejava?
Estava coberta por trabalhos e projetos. Minha mente estava uma poluição de tanta coisa, porém, ela iluminou como a lua iluminava a noite. Me senti leve quando escutei sua voz exclamar meu nome pela multidão.
— Agnes!
Virei o rosto para os lados, procurando quem me chamou. Meus olhos cansados se arregalaram e brilharam quando vi aquele moleque branco e de cabelos dourados. Fiquei mais feliz ainda quando notei sua expressão alegre e desperta.
Vendo ele correr pela calçada, um sussurro escapou dos meus lábios: — Theo…