O Belo e a Medonha - Capítulo 10
Após a captura da fêmea, Tsezar visou seu atual alvo, a fera que ele observava já havia se levantado e preparava seu ataque arrastando os pés sobre o solo.
Ao analisar o solo e observar os pequenos pedregulhos que ali haviam, o rapaz lentamente se abaixou e agarrou uma pedra na forma de ponta de lança.
A disparada do animal começou antes mesmo do loiro se levantar, o chão tremia como sempre. Os olhos da fera estavam cheios de fúria, queimando em um tom de vermelho semelhante a um alvo.
Aqueles anos de prática mais uma vez valeram a pena. Tsezar precisou de míseros segundos para lançar aquele pedregulho rápido o suficiente para explodir o olho direito da fera quando colidiram-se.
Aquela enorme besta caiu ao chão quase em simultâneo ao choque; a pedra atravessou seu globo ocular e se fincou em seu cérebro, matando-o instantaneamente.
A calmaria voltou a consumir o lugar, o rapaz se aproximou do cadáver, encostou a mão sobre a carne ainda quente, fechou os olhos e realizou um pequeno sinal com os dedos.
Com outro sinal, dessa vez direcionado a Pricyla, Tsezar a chamou para terminar o serviço. Ela acatou a ordem, se desvinculando do javali fêmea.
Tudo que a serpente metálica precisou fazer foi se enrolar em torno do cadáver e fixar aos braços do rapaz, já Tsezar fez a parte mais difícil, levantar a fera e a colocar sobre os ombros.
O corpo todo do rapaz sentiu o baque do peso instantaneamente; era difícil até mesmo tirar os pés do chão, mas isso não o impediria.
Mesmo com todo aquele peso, o loiro teve que sair o mais rápido do recinto, antes que a fêmea acordasse e fosse atrás deles.
Os músculos das costas, panturrilhas, quadríceps, ombros e peito de Tsezar queimaram, o caminho foi torturante em todos os níveis.
Para sua felicidade, eles já haviam encontrado uma clareira não muito distante da caverna. A passos apressados, a dupla chegou no local desejado.
O loiro, com nenhum cuidado, jogou aquela carcaça ao chão, gerando um estrondo que reverberou pela floresta. Com as mãos vermelhas como sangue e com o coração a milhão, Tsezar soltou um grande suspiro e se sentou.
— Uff… parte 1 completa, você cuida das coisas por aqui — disse apontando aquela carcaça para seu colega.
Um sentimento de indignação exalava do companheiro de batalha de Tsezar; ela já havia se desvinculado do braço do rapaz e do cadáver.
— O que foi? Concordamos com isso. Você cuida da preparação e eu cuido do resto.
Podia ser uma alucinação dado o esforço exagerado que o rapaz fez anteriormente, mas ele tinha certeza que viu uma veia de raiva surgir na “cabeça” de Pricyla — era uma alucinação.
— Não sei por quê você está reclamando tanto? Você ficou com a parte mais fácil.
Já de pé e com as mãos no bolso, Tsezar iniciou sua marcha para fora do recinto, mesmo com a serpente com os “nervos à flor da pele”.
Ela tentou questionar ou gritar uma última vez, mas foi completamente ignorada pelo homem que já se preparava para correr. A conclusão de seu abandono veio quando um choque sintético chacoalhou o ambiente, Tsezar já estava longe.
De volta aos portões de Damuzzu, a discussão dos guardas já havia terminado, porém uma aura estranha reinava naquele setor de trabalho.
BOOM
Nenhum dos dois esperava um estouro de vento e poeira contaminou e arrastou tudo pelo ambiente, jogando ambos ao chão como esterco de gado.
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Não muito distante da entrada, um grupo de três crianças brincavam com brinquedos de madeira improvisados e uma bola de couro bastante desgastada. Elas estavam não muito distantes da feira local.
Suas roupas esfarrapadas e o estado rudimentar de seus brinquedos escancararam a condição financeira do trio. Uma das crianças, a mais alta do grupo, demonstrava dominância sobre o grupo dando ordens aos outros dois.
— A bola é minha então eu decido quando vamos jogar — disse o líder.
— Qual é, Kaz, esperamos a manhã toda pra jogar — falou o segundo menino.
— É, você disse ontem que jogaríamos se déssemos nossa mesada pra você — reclamou o último garoto.
Antes que Kaz pudesse mais uma vez negar o pedido, os arbustos próximos começaram a se mexer. De dentro, saiu um quarto menino, com roupas ainda mais esfarrapadas e o cabelo longo, ruivo, que a muito não via um banho.
Uma voz rouca e baixa que dificilmente seria ouvida pelos garotos, sendo quase sussurrada pela garganta do menino soou:
— Ei, gente, posso brincar também?
Kaz e sua trupe, com feições de nojo e repúdio, observaram aquele garoto se aproximar. Ao tomar a frente, o líder se colocou no caminho do garoto.
A discrepância de altura dos dois não era muita, porém naquele momento ela quase esmagava o visitante perante a Kaz.
— O que dissemos da última vez, Dawid? Não queremos um órfão como você brincando com a gente.
— Eu sei… mas eu realme…
Antes que Dawid pudesse terminar, ele prontamente foi cortado: — Não tem “mas”, deixamos claro! Não queremos ralé como você mexendo nas nossas coisas.
De detrás do líder, uma pedra foi lançada em direção ao ruivo junta de um grito:
— É! Sai daqui seu órfão!
Quase que em simultâneo, mais e mais pedras foram lançadas em direção a Dawid, criando nele diversos machucados e o jogando ao chão. O líder do bando apenas observou o sofrimento do garoto.
O sangue quente já estava a manchar o chão conforme vazava das feridas recém criadas. A feição sádica de Kaz ia apenas crescendo e amassando os sentimentos do ruivo.
O terceiro menino veio em direção ao seu líder e o entregou um pedregulho pequeno, convidando-o para o lixamento.
Com a pedra em mãos, Kaz vociferou suas palavras de ódio: — Isso é pra você aprender a não dirigir a palavra a alguém superior.
Pronto para lançar, o menino subitamente parou o arremesso no momento em que sentiu suas mãos leves. Ao olhar para cima, viu que a pedra que antes carregava já não estava mais lá.
Uma fraca brisa passou diante dos dedos dos outros dois meninos que também perceberam o sumiço de sua munição.
Surgiu então, uma larga feição de confusão e ansiedade que incorporou os três, porém, a maior surpresa ainda estava por vir. Eles entraram em choque assim que uma grande figura surgiu na frente do pobre Dawid.
— Suas mães não os ensinaram a não maltratar o amiguinho?
Com três pedras em mãos, Tsezar surgiu perante os meninos; ele havia visto a situação enquanto voltava e resolveu tomar a iniciativa.
Em um misto de surpresa e indignação, Kaz foi até o cavaleiro e gritou: — Por que você está protegendo ele, forasteiro!?
Tudo que ele recebeu foi as costas de Tsezar, que havia se virado e ajoelhado para acolher o garoto que estava ao chão.
— Você está bem, garotinho? — disse estendendo a mão.
— Vou sobreviver…
Junto de suas palavras, Dawid cuspiu para fora sangue e saliva, enquanto tentava ao máximo se pôr de pé. Vendo aquele garoto todo machucado, algo gritava dentro de Tsezar, desejando ajudá-lo de alguma maneira.
Surpreendendo o garoto, o oficial o levantou no ar, o colocou em suas costas e falou: — Vou cuidar das suas feridas, se segure.
— Ei! Por que você está ajudando esse órfão!?
Antes do loiro se pôr em marcha e sair, ele olhou nos Kaz nos olhos uma última vez, aquele olhar frio e pesado desmoralizou a alma e o corpo do garoto em todos os sentidos.
Em questão de segundos, o oficial desapareceu da frente dos três garotos, deixando para trás uma fraca brisa e um trauma que os acompanhará por muito tempo.
— Kaz! Você tá bem? — gritou um dos garotos.
— Esquece isso… pelo menos aquele traste foi embora, vamos brincar…
O pequeno Kaz tentava ao máximo se recompor, mas suas mãos trêmulas mostravam a verdade.
— Mas cadê os brinquedos? — falou o terceiro menino ao olhar para trás.
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Com o garoto sentado sobre um tronco de árvore caído, Tsezar retirava alguns esparadrapos do bolso para cobrir os ferimentos nas pernas do garoto.
— Está doendo?
— Não muito… — As feições de dor do menino diziam o contrário
Com a cabeça baixa, o loiro analisava aquelas feridas rasas já secas, junto delas haviam muito mais cicatrizes.
— Não é a primeira vez que aqueles garotos te atacam, certo?
— Muito menos a segunda.
Com o último rolo de esparadrapo em mãos, o último ferimento exposto do menino foi tampado com sucesso. Tsezar levantou a cabeça e olhou o garoto nos olhos.
— Eles disseram que você é órfão, isso é verdade?
A grande franja ruiva tampava os olhos de Dawid, um duro silêncio foi criado já que ele demorou para responder.
— Eles morreram já há algum tempo…
— Quem cuida de você?
Mesmo com seu semblante rígido, era visível a sensibilidade de Tsezar sobre o tema; ele não era exatamente cuidadoso com as palavras, mas tentava ao máximo entender o garoto.
— Quem você acha?
Outro silêncio constrangedor tomou o local, uma estranha dor no peito do oficial ia aumentando e aumentando a cada palavra que o menino dizia.
Aquela dor e raiva, Tsezar sabia exatamente o que era aquilo, ele entendia tudo que o menino estava passando.
— Eu vou indo, muito obrigado pela ajuda, senhor.
Dawid já ia se levantando no momento em que uma característica chamou a atenção do oficial, o braço esquerdo dele estava para trás o tempo inteiro.
— O que você está escondendo? — disse apontando para o braço dele.
— Err…
Em poucos segundos, o garoto que estava com os dois pés no chão, subiu ao ar e afundou seu calcanhar em direção ao rosto do oficial.
Um estouro não muito alto soou no momento em que sem muita dificuldade Tsezar levantou o antebraço e se chocou com a perna do menino.
Na mão direita de Dawid estava a bola de couro que Kaz e sua gangue estavam brincando.
— Esse brinquedo? São dos garotos de antes.
Não demorou muito para o menino cair para trás, pousar, ignorar a pergunta do oficial e se colocar em posição de combate. A feição de coitado de Dawid converteu-se em algo semelhante a um animal selvagem.
— Não adianta tentar fugir, eu capturo você se tentar correr — falou brandamente o loiro.
Aquela pose de caça não demorou muito para se dissolver. Dawid relaxou os ombros e caiu ao chão dada a presença do oficial.
— Droga…
O simples cruzar de braços foi necessário para abalar a confiança do baderneiro.
— Conte a verdade.
— Eu não menti! Eu sou realmente órfão.
O olhar profundo tocava o garoto como se ele atravessasse os olhos dele e tocavam diretamente na alma, quase doía fisicamente.
— Mas esqueceu de dizer que é um ladrão.
— O que você acha que alguém como eu poderia fazer? Se eu não roubar eu não janto!
Ao ouvir aquelas palavras, Tsezar expurgou um grande suspiro, retirou o quepe da cabeça e ajustou para se sentar, igualando com a altura do garoto. Dawid não tirava os olhos do chão, um misto de raiva e vergonha fluia por todo corpo dele.
— Você não tem ideia quantas vezes eu já ouvi isso. — O oficial não tirava os olhos do garoto, fixando seu olhar por detrás da franja dele.
— O que você sabe sobre isso!?
— Mais do que você imagina. Eu já fui exatamente como você, só que pior.
— Acho difícil.
— Acha? Vou te contar um pouco do que passei.