O Belo e a Medonha - Capítulo 3
— O que faz aí no chão, meu jovem?
Um homem com bastante idade, chapéu de palha na cabeça e foice na mão, cutucava o abatido guerreiro.
— Hã? Onde estou?
Tsezar levantou a cabeça, com o rosto sujo dado a terra que ele estava deitado. Ele estava estilhaçado no chão.
— Damuzzu. Encontrei você aqui não faz muito tempo, está tudo bem?
— Que horas são?
— 7 da manhã.
Quando aquelas palavras colidiram nos tímpanos do rapaz, a compreensão total da situação lhe veio à mente. Ele havia colapsado na frente do portão no dia anterior, dormindo a frente de seu destino.
Prontamente ele saltou e se pôs de pé, a ansiedade e o medo navegaram por todo seu corpo.
“7 DA MANHÃ!? O tenente costuma passar as missões cedo pela manhã, se eu perder o relatório oficial eu vou estar morto!”
Pondo as mãos no bolso, o jovem rapidamente retirou o pergaminho amarelado. Ao abri-lo, uma onda de alívio o tomou por completo; estava em branco.
Agora, mais calmo, o rapaz pôs seus olhos no simpático homem que o havia acordado.
— Estou bem, velho simpático. Obrigado por me acordar. — Tsezar se limpou antes de colocar sua mão à frente, comprimentando o senhor.
Respondendo, o fazendeiro estendeu o braço completando o aceno do rapaz, com um sorriso no rosto.
— Então, jovem, o que faz nesse humilde vilarejo?
— Sou um oficial vindo da capital. O líder da vila requisitou ao centro oficial ajuda externa, e aqui estou.
Ao ouvir aquelas palavras, o sorriso do senhor se transformou em uma carranca mórbida. Seu suor, frio, começou a cair conforme ele tremia.
— Siga reto, o centro fica para lá.
O fazendeiro cuspiu aquelas palavras com rispidez, ele prontamente se retirou da presença do jovem mais rápido do que um homem da sua idade deveria andar.
Adentrando a um pequeno casebre próximo ao grande portão.
Tsezar não teve a chance de agradecer o senhor. Tudo que ele fez foi seguir o seu caminho e colocar aquela situação na sua lista pessoal de: “Coisas estranhas que essa droga de lugar me mostrou”.
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Alguns muitos passos à frente e o cavaleiro se deu de cara a uma multidão de pessoas que perambulavam em uma grande feira. Os comerciantes gritavam “Ovos! Ovos! Compre seus ovos!”, as galinhas ciscavam no chão e os cães dormiam ao lado de cada barraca.
O rapaz foi adentrando a massa de gente, analisando o cardápio de itens, frutas e carnes de animais que os feirantes vendiam.
Uma pequena barraca com uma tenda vermelha chamou a atenção do oficial. A carne fresca, a curta fumaça e o cheiro de churrasco atraiu o rapaz, como um cão no cio, que corre atrás de uma fêmea.
— Como posso ajudá-lo, senhor? — disse uma mulher de pele morena.
Sua voz fina, o pequeno pano em sua cabeça, seu vestido vermelho esfarrapado e o babado na borda da saia puxaram o jovem cavaleiro definitivamente.
Apoiando na mesa e encarando a vendedora nos olhos, Tsezar falou: — Qual carne temos para hoje?
Virando-se para o lado, a jovem olhou um homem grande com um longo avental mexer algumas fatias de carne em uma larga churrasqueira.
— O que temos para hoje, papai?
— Só fígado de cervo e coração de galinha! — respondeu o homem com sua grossa voz.
A chama alta fazia todos próximos suarem, o barulho era ensurdecedor para os ouvidos de Tsezar.
— Nah, não curto fígado, mas adoraria um filé caipira.
— Senhor, não temos isso… — Antes de terminar sua frase a jovem percebeu a péssima cantada que havia ouvido. — Desculpe senhor, mas eu estou noiva.
Ela levantou a mão esquerda e mostrou um pequeno anel prateado no dedo anelar.
A visão de Tsezar se encheu de decepção mais uma vez.
— Oh… então me dá o coração de galinha.
A atendente fez um pequeno aceno para seu pai, que retirou do canto da churrasqueira 5 corações de galinha. A grande chama começou a assar as carnes que agora estavam no centro da grade.
Se apoiando agora de costas, Tsezar começou a ver o movimento das pessoas pela feira.
— Então? Como é o vilarejo?
— Damuzzu é bastante tranquilo e pacifico, planejo construir minha família por aqui — disse a moça gentilmente.
— Aposto que seu noivo também quer.
— Sim, sim. Quando finalmente nos casarmos me mudarei para casa dele.
Era visível o incômodo do churrasqueiro a cada palavra que sua filha exalava, se tornando palpável a partir desse ponto.
— Para onde é o centro da vila? Gostaria de falar com o líder desse lugar.
— Ah, fica a duas ruas a frente. É uma casa grande, não é muito difícil de achar. O líder é bastante gentil, aposto que ele vai te atender.
— É o que eu espero…
Mais chama, o calor na barraca se intensificava. Tsezar sentia seu suor molhar o curativo e coçar seu ferimento. Seu uniforme começou a encharcar, enquanto a atendente e seu pai pareciam não ligar para a constante elevação na temperatura.
Se abanando, Tsezar tenta puxar assunto com a simpática atendente.
— Me diga, ouvi boatos que alguém da capital está vindo aí, será mesmo que é tão seguro aqui?
Novamente, como se fosse algo análogo a todos naquele vilarejo, a atendente se tornou ríspida e trêmula. Não dava para saber se o suor que ela derramava era por causa do fogo ou…
— Está pronto.
Com uma força desnecessária, o churrasqueiro bateu um prato com 5 corações de galinha em cima da bancada. O barulho da batida cortou o pesado clima que havia se formado.
Mesmo sem que dissessem algo, Tsezar sabia que aquilo era um pedido para ele sair dali. Assim ele o fez, pegando tudo em cima do prato e colocando pra dentro.
Deixando a tenda para trás, o cavaleiro tomou seu caminho em meio a feira, andando até sair dela.
Ele sentia sua boca queimar dada a carne, porém, a sensação era sobreposta por seus constantes pensamentos.
Ele estava mais atento a aquele lugar e aquelas pessoas após essas situações.
Agora fora da feira, o oficial começou a reparar nas casas e construções daquela vila. Fora do intenso comércio tudo era mais calmo; os idosos sentavam em seus bancos nas portas de suas residências e as crianças brincavam nas ruas.
“Todo mundo aqui tem uma roupa meio esfarrapada, é bem diferente da capital”
Surpreso pela estranha humildade do vilarejo, Tsezar caminhou por uma rua enquanto sujava suas botinas com a poeira daquele lugar. Isso tudo estava começando a irritar o oficial.
O bolso do uniforme bruscamente se acendeu, aquele brilho azulado contrastava com a paisagem amarelada.
“Atualização da missão
Pelas previsões oficiais, sua localização atual é o vilarejo Damuzzu, ao sul da república.
O vilarejo é extremamente pacifico, não é registrado um crime desde a fundação da república, logo, o requisito de um oficial é uma situação extremamente incomum.
O povo local possui certa aversão ao governo atual, evite demonstrar ou dizer seus títulos, apenas se comunique com os líderes locais.
O objetivo será passado pelo líder do vilarejo já que não temos conhecimento total da situação.
Salve a República!”
Um pequeno sorriso surgiu no rosto de Tsezar, talvez fosse a estranha coincidência, talvez fosse o ódio crescente que ele sentia sobre aquele lugar.
A passos largos, o oficial foi andando até bater seus olhos em uma casa de madeira com dois andares, portões duplos e um jardim bem cuidado à frente.
O pequeno portão e uma cerca baixa separavam as propriedades. Havia uma diferença drástica entre as humildes casas dos habitantes do vilarejo e o dito cujo “centro da vila”.
Quando Tsezar parou em frente da residência, um pequeno pássaro esverdeado saiu de uma casinha no jardim.
— Visita! Visita! — gritou o projeto de campainha.
A buzina ambulante começou a circular o visitante enquanto ainda gritava, atormentando o já atormentado cavaleiro. As veias de Tsezar começaram a explodir para fora de ódio, ele realmente cogitou transformar aquela carreata empenada em sua próxima refeição.
Antes de preparar seu almoço, o jovem é surpreendido pelas portas duplas se abrindo e um homem rechonchudo saindo de dentro.
— Edward! Deixe-o!
Uma casaca de couro, calças sociais e um grande chapéu novamente de couro cobria o grande homem de cabelos castanhos. Uma barba longa refinava seu rosto, sendo bloqueada por uma grande cicatriz no canto esquerdo da face.
O pássaro prontamente abandonou o jovem e voou devolta a sua casinha.
— E quem deveria ser você? — A voz grossa daquele homem era estranhamente nostálgica aos ouvidos de Tsezar.
— Você é o líder desse lugar?
— O próprio, me chame de Heiko.
— Ótimo, tenho que falar com você.
Atrevidamente, Tsezar foi abrindo o pequeno portão e se direcionando à entrada do recinto. O líder do vilarejo demonstrava repúdio à “invasão” que o visitante estava fazendo, respondendo a isso Tsezar logo disse: — Eu sou o oficial que você chamou, me chame de Tsezar.
A expressão do gorducho mudou drasticamente, ele logo começou a convidar o cavaleiro para adentrar em sua residência.
Assim como por fora, por dentro tudo era rústico e cravado em madeira. Fossem as placas, pinturas, esculturas e até algumas estátuas de animais, tudo era feito em algum tipo de madeira refinada.
— Você que fez tudo isso? — disse apontando para algumas decorações.
— Sim, sou marceneiro nas horas vagas. Não se chega ao cargo de líder sem fazer nada.
A frente dos dois, outra porta dupla apareceu; a maçaneta em forma de asa de corvo foi apertada pelo líder que abriu a portinhola.
— Aqui é o meu escritório, sente ali que eu pegarei alguns papéis — falou apontando para um largo sofá no canto da sala.
Tsezar acatou ao pedido, sentando e se jogando sobre as almofadas de couro. Heiko andou até uma larga mesa de madeira ornamentada, ao centro da sala.
— Imaginei que você fosse demorar mais — expressou Heiko enquanto mexia em algumas gavetas abarrotadas de papéis.
— O pessoal da capital é extremamente rígido quanto a tempo. Vim o mais rápido que pude.
— Ha ha, imagino, fui à capital quando mais novo, sei como é. — Enquanto falava, o líder jogava no chão alguns papéis e documentos. — Como foi a viagem?
— Terrível, fui atacado umas 3 vezes antes de chegar aqui, e a estrada não ajudava nem um pouco.
— Ha ha ha…, por esse motivo Damuzzu é pouco visitado, mas temos nosso charme.
— Sei de que charme você se refere.
Deitado, Tsezar massageava o ferimento de ontem, seu curativo já estava manchado e sujo, a dor crescia conforme a conversa progredia.
— Certo, vamos falar do elefante da sala, por que um vilarejo tão “pacifico” — o rapaz fez o sinal de aspas enquanto exprimia — requisitou ajuda da capital?
Assim como todos os outros, o líder fechou sua cara no mesmo momento que encontrou o tão procurado documento.
Apertando o papel com força, Heiko prensou a folha na mesa e a colocou na direção do oficial.
— Você disse que foi atacado, certo? Pelo que?
Surpreso pela pergunta, Tsezar se levantou e emitiu: — Um cervo de sangue, dois bandidos e um HomemFera, lobisomem.
Amuado, Heiko se levantou lentamente, se apoiou na borda da mesa e repetiu em um tom calmo:
— Era o que eu imaginei, é exatamente esse o problema…
Com dificuldade, o oficial se levantou e foi em direção a mesa, pegando a folha enquanto Heiko o olhava com olhos pesados.
— Damuzzu foi pacifico por quase 100 anos, vivíamos vidas tranquilas até 2 meses atrás — com o olhar entristecido ele continuou a vociferar—, em um fatídico dia, encontramos a casa de um cidadão arrombada, naquele dia vi algo que nunca esquecerei.
Ao mesmo tempo que Heiko exprimia, Tsezar lia o documento da missão, lá estava escrito nomes e localizações que o oficial desconhecia.
— Nikolai Zhuk, é esse?
— Sim… ele era um cidadão admirável, trabalhou honestamente por toda vida e curtia a primavera da vida, um senhor respeitado por todos.
— Como ele foi encontrado?
— Morto, tudo que encontramos foi seu cadáver, sem todo o tronco e barriga, sobrando apenas cabeça e membros.
Tsezar sentiu seu estômago remexer, talvez fosse o coração de galinha se encontrando com seu suco gástrico ou talvez, fosse o rabisco de um lobisomem, idêntico ao qual ele havia encontrado, estampado no papel.