O Bom Senhor - Conto
O Bom Senhor:
Ela não via o bom senhor havia três dias. Não que importasse–se com isso, a companhia da sala escura era reconfortante o suficiente. O que deixava–lhe aflita era o grito das outras. Ruídos agudos que machucavam seus ouvidos, berros de lamento e dor, cansados e roucos.
Mas o bom senhor era diferente, o bom senhor trazia–lhe frutas frescas e água. Ele contava sobre o que havia fora do quarto, a voz solene, calorosa e enérgica. Às vezes ela ouvia–o cantarolar, assobiar, talvez para abafar os lamentos. Ela não conseguia falar muito com ele, mas podia pensar. E pensava, durante muito tempo.
Os tijolos frios e úmidos ao toque, cinzentos e encardidos com a sujeira de tempos passados era a sua paisagem favorita, e a única. O colchão era confortável, apesar do cheiro azedo de urina e forte de dejetos, era macio o suficiente. Desde que estivesse em um lugar menos duro que o chão onde as formigas e baratas não beliscassem sua pele fraca, ela estaria feliz.
Não gostava de tentar olhar para fora, não arrastava–se além do necessário. Quando tinha sono, sonhava com melancias e bananas, biscoitos e bolos, afinal, a comida não vinha a todo momento, e eles (os sonhos) eram quentes e reconfortantes como os braços de sua mãe; poderiam durar para sempre, mas as outras acordavam–na.
Ela não gostava da luz, as poucas vezes que via–a sentia sua pele eriçar–se, os olhos ardiam e coçavam de tal modo que ela pensara que poderiam sangrar, talvez tivessem, pois quando o bom senhor sentia o cheiro pútrido de sua pele, preparava um banho. A única pessoa que fazia–a sentir–se bem era o bom senhor, e quando ele entrava através daquelas portas escuras e silenciosas, os quartos iluminavam–se, e o cinza parecia branco. E ela, em toda sua alegria ansiava para que ele viesse a seu encontro.
Mas muitas vezes o bom senhor ignorava–a, indo ao ninho de outras raposas, como ele mesmo gostava de dizer. Sempre que passava por ela, dava um sorriso, os dentes escuros, algumas vezes via–os e sentia um cheiro forte de gasolina. A camisa listrada sempre estava empapada de suor; ele desbotava a vestimenta e puxava as mangas, deixando os pelos negros à mostra.
O bom senhor era alto, e isso assustava–a, mas com o tempo acostumou–se. De onde vinha às vezes havia luz, outras, apenas escuridão. Ela sempre aguardava em sua cama, sentindo o cobertor macio e encharcado; a ventania adentrando suas narinas como coelhos correndo para suas tocas, ou talvez, porcos para seus chiqueiros.
O bom senhor sempre escolhia uma raposa, e juntos eles caçavam duendes malfeitores pela floresta encantada, à procura de tesouros. Ela não entendia por que suas amigas choravam, caçar parecia tão divertido, com certeza era mais divertido do que ficar ali, sentada, sentindo os ossos doloridos e o estômago latejar pela falta de alimento. Às vezes havia uma bacia com água, mas tomava–a apenas quando estava com muita sede.
Certa vez, a água viera escura como seus cabelos, e quando ela bebeu, aquilo não fê–la bem, e acabara vomitando na própria bacia. Mas o bom senhor não havia chegado, então ela teve de beber daquela bacia novamente, a água azeda descendo a garganta enquanto ela observava o corredor, onde outras raposas aninhavam–se em seus quartos.
Algumas eram mais velhas, outras, nem tanto, porém, quando o bom senhor vinha até elas, todas choravam e tentavam afastá–lo, aos berros e chutes. Elas têm medo dos duendes? Não precisavam ter medo, o bom senhor ajudaria.
Irritar o bom senhor não era algo bom. Ela não gostava de vê–lo com raiva. Certa vez, o bom senhor tentara levar uma raposa e quando estava em frente ao seu quarto, ela mordeu–o; era possível ouvir o barulho de carne sendo mastigada e rasgada, enquanto a raposa grunhia e lacrimejava. O bom senhor urrou de dor enquanto retirava–a dali.
Depois daquele dia, aquela raposa não retornou.
Algumas voltavam; o bom senhor dizia que eram boas caçadoras. Um dia, será como elas, ele dizia–lhe. Mal podia esperar para que esse dia chegasse; caçaria quantos duendes pudesse, somente então para comer biscoitos e bolos, talvez até um suco, se ela comportasse–se.
O bom senhor falava pouco com ela, e menos ainda com as outras. Ela também tentara falar com as raposas, mas elas não abriam a boca, ou quando faziam–no, a única coisa que ela conseguia escutar eram letras desconexas: aaa, eeei, ooe, aoa.
Seus rostos eram diferentes. Ela nunca tinha visto raposas tão diferentes umas das outras. Algumas tinham a pele escura, cortada e arranhada, outras tinham pele clara e cabelos desgrenhados, sujos e tão duros quanto cordas. Mas todas possuíam riscos vermelhos em seus corpos, marcas roxas que teciam seu caminho tortuoso através da pele.
Algumas delas chegavam nuas, jogadas em seus colchões e deixadas ali para quando a próxima caçada começasse, outras recostavam–se nos cantos de seus quartos e choravam, rezavam, imploravam para qualquer coisa que ela não conseguia ver, em uma língua que tampouco entendia. Às vezes, as raposas vinham até ela, usando o vermelho da própria pele, arranhando o chão em uma cacofonia perturbadora, escrevendo palavras que ela não conseguia entender.
Lembrava–se de quando sua mãe ensinava–a a entender as palavras. Ela dizia que existiam outras coisas na vida além de caçar, e que no futuro ela veria isso, até mesmo pediu que escondesse um bilhete na rachadura da parede, e que não mostrasse nunca ao bom senhor, somente quando saísse dali, pois aquilo era um ingresso especial para um parque de diversões, e ela precisava apresentar o bilhete se quisesse brincar com outros. Mas ela não saiu, e um dia o bom senhor levou a mamãe. Desde então, ela ainda está caçando.
O bom senhor banhava–a e trocava o colchão de vez em quando, seu toque era frio, o hálito fedia, mas não tanto quanto ela. Mas as coisas estavam melhores, ela ganhou uma boneca na última noite em que o bom senhor veio até ela. Mas ele, o bom senhor, não gostava de irritar–se, então ela pedia biscoitos e bolo somente quando ele estava de bom humor.
As outras raposas não tinham a mesma sorte. O bom senhor usava mangueira nelas, o jato frio ecoando através das paredes. As raposas usavam roupas de homem. Ela ainda tinha um vestido do seu aniversário de seis anos. Lembrava–se quando vira o bom senhor pela primeira vez.
Ela e sua mãe estavam indo para casa, o carro do papai era velho, a mamãe dizia, e naquela noite, ele parou de funcionar. Ela não lembrava–se do que havia acontecido, somente recordava–se de ter acordado com um grito estridente, a luz dos faróis sempre cansava a sua vista, e daquela vez não tinha sido diferente.
O banco de trás era confortável, o couro do assento era macio, pelo menos melhor do que aquele colchão, mas o grito havia–a incomodado. Ela levantou–se, procurando a mamãe, e lá estava ela, no asfalto mal iluminado, em uma noite estrelada. Não havia mais ninguém na estrada, apenas ela deitada e o bom senhor. Não chegou a percebê–la, e assim ela ficou, até que ele entrou no carro.
Quando o bom senhor viu–a, ela sentiu medo, vontade de gritar e correr, mas o cinto estava atado e as portas, travadas; a mamãe não gostaria que ela abrisse a porta, e, além do mais, o bom senhor disse–lhe que estava tudo bem e que sua mãe estava cansada demais. Lembrava–se de também ter perguntado pelo seu pai, mas o bom senhor não respondeu, em vez disso, deu–lhe uma goma de mascar, doce durante muito tempo, mas salgada depois, e ela dormiu e acordou ali.
Às vezes o bom senhor trazia visitantes consigo. Ela procurava pelo papai, mas o bom senhor repreendia–a, e quando os outros homens aproximavam–se do seu quarto, como uma verdadeira alcateia de lobos, prontos para atacar, projetando um paredão de sombras através da grade enquanto rosnavam uns para os outros, o bom senhor afastava–os, dizendo que ela era a raposa dele.
Tinha poucos amigos ali, e quando ficava frio, ela não tinha cobertor, apenas um lençol leve e áspero que usava para tampar o rosto; então fazia xixi na cama, assim, ficava mais quentinho. Depois de um tempo, Fofucho e Bolota sempre vinham brincar com ela.
Se tivesse restos de comida, os ratinhos brincavam com ela por mais tempo. Mas nessa noite eles vieram mesmo sem xixi, atrás da boneca. Ela não deixaria Olívia ser destruída por Fofucho e Bolota. O nome de sua mãe estava nela, e não perderia ela também. Antes dormia no colo de sua mãe, sentindo a mão macia sobre o rosto enquanto ela cantava–lhe algo reconfortante: a dona aranha subiu pela parede, veio a chuva forte, e a derrubou.
Ela via as aranhas tão bem quanto lembrava–se da música que sua mãe cantava–lhe, mas agora, ela não estava mais lá, e a única coisa na qual apoiava a cabeça para dormir era a boneca de pano; a pele empoeirada e os cabelos feitos de cordinhas amarelas que irritavam seu nariz quando cheirava–a. Não tem o cheiro da mamãe, mas ela ainda é minha.
Quando eles (os ratos) tentaram mordê–la, ela atacou–lhes com socos e palmadas. Fofucho não gostou da reprimenda, e mordera seus dedos, fazendo–os sangrar, os dentes torcendo–se através da pele encardida e ossuda que uma vez fora a sua mão gordinha, mas ela não deixaria Fofucho atacar a mamãe. Segurou o ratinho pelo rabo e balançou–o enquanto ele gritava, os sons agudos e desesperadores, assim como as outras raposas faziam quando eram pegas pelo bom senhor, as patas em vão procurando qualquer caminho para fora daquele lugar. Por fim, ela balançou–o para lá e para cá, finalmente batendo–o na parede, o som gelatinoso do crânio partindo–se ao meio.
Ele parou de gritar.
Quando ela viu o vermelho, lembrou–se do giz de cera que a mamãe dera–lhe. De repente, Bolota saiu dali, assustado com ela, ou talvez com o barulho vindo de fora. Uma moça do quarto à frente observava–a, e essa tentou falar, a voz meio rouca:
– Bofê, benina. Efconda o rafo.
Ela não entendia o por que a moça falava daquele jeito, mas ficou mais surpresa por ela saber falar, então respondeu–lhe:
– Por quê? Posso usar de giz de cera.
– Guer fair bagui?
– Quero caçar duendes na floresta encantada, mas o bom senhor disse que sou muita nova.
– Bofê bode fair, eu abudo.
– Como?
– Bafe a binda no rofbo.
Estava difícil de entender a moça, mas ela gesticulava, como que compadecida com algo que ela não conseguia enxergar. Ela não gostou da ideia:
– O bom senhor não vai me deixar caçar, ainda sou nova.
– Fãbos funbas, eu e bofê.
– Mas o bom senhor não vai escolher você.
– Ebe fai, be dife.
– Mas não disse pra mim.
– Eu bou, baf bofê brefifa finbirfe de borfa.
Aquilo soara–lhe engraçado:
– Eu? Como?
– A binda… Bai enbaná–bo.
– Tá bem, mas só se for pra caçar.
– Bofê bão bode fabar ou abir of boios, bomete?
– Prometo!
Nunca saíra dali antes, estava ansiosa. Disse para a boneca enquanto passava a tinta do Fofucho no rosto e guardava o bilhete que a mamãe dera–lhe:
– Viu, mamãe? Vou caçar, não vejo a hora, talvez eu encontre você!
A tinta era pegajosa; ela mergulhou os dedos, atravessando a carne do Fofucho e cutucando seu interior, à procura de mais vermelho. Era quente, pelo menos. Fedia, mas era quente, e ela precisava do máximo de tinta. Enquanto atravessava o corpo do animalzinho ela conseguia sentir os ossos de seu crânio repartido espetando, bem como o resto de seu interior. Também passou um pouco no rosto da boneca.
O momento demorou a chegar. Quando a porta do corredor abriu–se, ela ficou ali parada, deitada como algumas moças ficavam depois do bom senhor levar–lhes, bem como a moça falou. Olhos fechados, não posso respirar, nem falar, é fácil. O bom senhor abriu o quarto da moça e começou a arrastá–la, mas ela gritou–lhe:
– A benina! A benina efba borfa, ou boende!
O bom senhor parou de arrastá–la. Conseguiu ouvir um arquejo, e o barulho do quarto abrindo–se, as grades de metal colidindo com o molho de chaves que o bom senhor carregava. Ela teve vontade de rir, mas não podia rir, ela prometera à moça. O bom senhor levantou–a e começou a levá–la junto a outra, ali não tinha luz, ali era muito escuro.
Ouviu o barulho de passos em degraus, tão cristalinos como a água, ou, pelo menos, era o que ela achava antes de ter chegado ali. Após algum tempo, conseguira ouvir uma porta escancarando–se com o barulho da ferrugem. Quando o ambiente ficou mais claro, o bom senhor pestanejou, em sua voz grave e arrastada:
– Deve ter sido um arranhão, ela tá respirando normalmente… não está –
De repente, a moça gritou qualquer coisa e um barulho de ferro fora ouvido. Ela caiu no chão e abriu os olhos. O céu, cinza como os tijolos. Mas estava ali fora, e o que viu foi um bosque, árvores mais altas que o bom senhor, e ele tinha sido a coisa mais alta que ela já vira depois de prédios. A moça gritou–lhe:
– Fuba, Fuba!
O bom senhor estava agarrado a ela, grunhindo e bufando enquanto as correntes enrolavam–se como uma trança ao redor de seu pescoço, puxando ele e sua grande barba grisalha para o chão. O bom senhor era mais velho do que ela pensava, percebia agora, mas não podia ficar ali; a escuridão do céu cinza anunciaria sua primeira caçada. O bosque era denso, mas era uma floresta encantada, e ela preparou–se para aquele momento por muito tempo.
Correu ansiosa enquanto os batimentos de seu coração anunciavam cada passada no caminho lamacento que prosseguia, até finalmente correr através das árvores. O bom senhor não poderia pegá–la. Sentir o vento gelado em seu rosto era recompensador, e quando as primeiras gotas de chuva começaram a cair, sua caçada havia tornado–se mais divertida. Onde quer que houvessem duendes, elas encontraria–os, mas o bom senhor era um bom caçador.
Árvores e árvores, o vento frio e a chuva eram reconfortantes. Mas não conseguia encontrar os duendes, ao invés disso, depois de muito correr na solidão tão escura quanto o quarto frio em que morava, ouviu o barulho de carros. Andou em direção ao som, mas conseguiu ouvir o bom senhor atrás dela, chamando–a.
Vou conseguir caçá–los, vou conseguir. Se conseguisse, o bom senhor gostaria dela. O morro ia ficando cada vez mais íngreme, mas os sons, mais nítidos. O bom senhor estava logo atrás. Enquanto subia, ela escorregara em um galho com um sonoro clac. O bom senhor quase alcançou–a, tentando puxá–la para si; sua cara estava vermelha e seus braços, arranhados. Ela conseguia sentir sua respiração enquanto tentava alcançá–la, quase tão perto quanto sua boneca.
Seus olhos frios e escuros estavam arregalados, sua face estava coberta por uma película de suor que reluzia o brilho dos faróis de carros que passavam por eles e dos postes de luz mal iluminados estabelecidos ao longo da estrada. Isso era um desafio, e ela iria até o final. À frente, na estrada pouco movimentada, ela viu um posto e correu em direção a ele, o bom senhor estava quase alcançando–a. Ela conseguiu sentir o vento que suas mãos rígidas fizeram ao tentar alcançar sua saia, mas ela continuava. Correu tão rápido quanto podia até o posto, onde algumas pessoas conversavam. Não eram duendes, mas poderiam saber onde encontrá–los.
Quando perguntou onde havia duendes, o senhor estava logo atrás dela tentando pegá–la pelo pulso e arrastá–la assim como fazia com as outras raposas. Mas ela sabia que o bom senhor usava primeiro a mão direita, e não foi difícil escapar dele. Um rapaz e uma moça abasteciam um carro quando ela aproximou–se, ofegante.
Eles perguntaram seu nome, e o que estava fazendo ali. O bom senhor tentou falar alguma coisa, tentando agarrá–la. O bilhete, ela precisava dar o bilhete para o parque, pois eles somente poderiam estar indo par ao para lá! Esforçando–se para puxar o pedaço de papel antes que o bom senhor alcançasse–a, ela correu em direção a eles e deu o recado anotado, assim como a mamãe a disse para fazer e falou que estava caçando duendes.
Desde aquele dia, ela nunca mais viu o bom senhor.