O Desejo Depois Da Morte - Capítulo 12
[Do lado de fora da torre principal, momentos antes].
Cada vez mais soldados caíam diante da violência e força bruta do feral. A batalha acontecia de frente para um grande portão, a saída da fortaleza. De alguma forma, pressionaram o feral até lá, mas isso é o máximo que conseguiam fazer.
A formação de batalha não era o suficiente para contê-lo. Marcus, o guerreiro ruivo, notou o balanço das garras daquele monstro que jogou vários soldados para o ar como bonecos de pano, logo ele seria o próximo. Prontamente puxou um companheiro da formação, usando-o como um escudo humano.
O homem foi despedaçado, os soldados ocupados demais lidando com a monstruosidade para prestarem atenção nos detalhes.
Maldição, isso não vai funcionar! Nenhum homem aqui além de mim e Edgard é um pujante, não temos magos, e nossos arqueiros estão todos mortos!
Marcus se afastou da formação, ignorando seus aliados sendo mortos e correndo na direção do prédio principal. Alguns corpos jaziam jogados pela escada, mas o ruivo ignorou.
Não vejo nenhum sinal do desgraçado do Edgard, aquela coisa soltou fogo para todos os lados e até mesmo o prédio está ruindo! Logos aqueles desgraçados vão chegar!
Marcus apoiou as mãos na porta dupla e a empurrou, arregalando os olhos com o que vira.
Pequenas chamas cobriam o chão e o teto. Alguns armários estavam derrubados no chão, com bolsas de couro cheias de moedas de ouro escapando delas.
Eu sabia! Esses imbecis da fortaleza costumavam guardar seu dinheiro nos armários.
Além disso, corpos de guardas mortos estavam espalhados por todo o alojamento. Ferimentos de cortes nas gargantas, flancos e peitorais perfurados. Marcus engoliu o seco, apreensivo, e pouco a pouco começou a encher sua bolsa.
Parece que outros idiotas tiveram a minha ideia primeiro. Eles se mataram no processo? Que patético!
— Não devia pegar tantas moedas, um idiota como você mal saberia como gastar tanto dinheiro.
Encarou por cima dos ombros, avistando Aurora no fundo da sala. Seus olhos frios e indiferentes o fitavam.
— Hehe, sua escrava, então é aqui que se escondeu? — Marcus terminou de se virar.
— Quem em sã consciência se esconderia de um covarde como você? — retrucou, um sorriso debochado e a mão apoiada na cintura.
— Parece que a lição da última vez não acabou com esse seu maldito orgulho… — Apontou na direção dela, sorrindo confiante. — Mas não se preocupe, eu vou fazer questão de tirar esse sorrisinho desse seu rosto pálido!
— Vai usar um grupo para me caçar como da última vez?
Marcus andou na direção de uma das camas jogadas pelo escritório. — Aurora, Aurora… Você esqueceu que também sou um maldito pujante!? — Agarrou a cama, erguendo-a com apenas uma mão.
O objeto lançado na direção da garota, que reagiu rápido, se afastando do perigo. A cama impactou contra a parede, logo ao seu lado, sendo destruída em vários pedaços.
Marcus não parou por aí, e jogou outras camas, armários, tudo que era pesado, se divertindo ao ver a garota tendo dificuldades para evitar os ataques. — Isso, vadia, dance para mim!
Com Aurora ofegante, correu em direção a ela, balançando a espada.
A polariana girou o corpo, chutando o pé de Marcus, e consequentemente o derrubando com a barriga para o chão.
Pisou nas costas dele, sacou a adaga e perfurou a coxa esquerda.
Stuck!
A lâmina gélida cravou-se na carne, expulsando o sangue para fora e rasgando os tendões. Aproveitando dos gritos de terror do homem, chutou a espada de sua mão, jogando-a longe.
— Vamos fazer um jogo. Você responde as minhas perguntas, e em troca eu poupo sua vida miserável.
— Acha mesmo que eu me renderia a voc-
Aurora torceu a adaga dentro dos músculos, tornando a ferida maior e mais feia.
— A-argh! T-tudo bem, maldição, eu conto! Eu conto! — agonizou, suplicando em gritos.
— Ouvi conversas sobre a captura de um batedor no primeiro dia em que cheguei aqui. Me conte o que vocês descobriram.
— Desbravadores de uma guilda da Cidadela de Ariasken irão invadir essa fortaleza hoje mesmo! Estão investigando Senhor William há meses por posse e tráfico ilegal de escravos, apenas eu e Edgard sabemos disso…
Por isso a maldita pressa. Vou precisar fazer algum dinheiro, e ter integrantes de uma guilda me devendo um favor não é ruim.
— Muito bem, Marcus, você se saiu bem — respondeu Aurora, dando alguns tapinhas nas costas dele.
— I-isso significa que vai me poupar? — Sua voz parecia esperançosa, se virou para encará-la, um sorriso nervoso em seu rosto.
A face de Aurora se inundou de nojo.
[…]
— Eu não disse que mataria você — disse Hazan, a voz firme, surgindo um sorriso mostrando os dentes sujos de sangue. — Mas sim que te daria uma surra, não lembra?
As palavras de Hazan atingiram Edgard como um golpe, o rosto contorcido pelo amargor que crescia em seu interior. — Você…! — As palavras mal conseguiam encontrar seu caminho para fora da garganta, tão densa era a raiva que o consumia. — Tentei tirar a sua vida! Arranquei algo precioso de você e até feri uma daquelas crianças! Se você tem honra, seja homem e termine com isso!
O sorriso sumiu, o lutador sacudiu a cabeça, negando. — Você já não é mais uma ameaça, recuperei meu cordão de volta e vou salvar aqueles pivetes. — Desviou o olhar do guerreiro, virando de costas e abanando as mãos, despreocupado. — O que quer que aconteça após a morte, espero que se arrependa do que fez.
— As conquistas de toda a minha vida… — Edgard parou, cuspindo sangue — Forjadas com minhas próprias mãos… — Apoiou a mão trêmula no joelho, erguendo-se enquanto a Aura voltava a circular por todo o seu corpo, o pavio de uma vela que queimaria até o fim. — Serão em vão, culpa de uma aberração como você? Não me faça rir!
Hazan se virou, os olhos do pujante faiscando em um azul profundo, sangue escorrendo de seus ferimentos.
— Se eu cair, você cairá comigo!
A surpresa tomou conta do lutador quando Edgard avançou, agarrando-o pelo pescoço e arremessando-o pelo salão. O jovem cambaleou, chocando-se contra a parede, a cabeça estalando contra a superfície dura.
Lutou para se levantar, as mãos encontrando apoio em uma estante de madeira. Encurralado, sentiu o calor do vidro quente percorrer por cima da camisa, a garganta ainda fechada, sequer tinha como respirar o pouco daquele ar contaminado.
O rapaz lutava para se recuperar. Edgard andou em direção à espada no chão, a lâmina brilhando em azul, uma promessa que premeditava a morte.
O momento que se seguiu através de seus olhos foi como um borrão, a adrenalina percorrendo pelas veias. Edgard investiu com fúria, a espada cortando o ar. O ataque era claramente uma estocada.
Apesar de ser um golpe previsível, a agonia constante que punia o rapaz o proibiu de se movimentar adequadamente. Reagiu confiando em seus instintos, se jogando para o lado e agachando, mas não rápido o suficiente para evitar ser atingido. A lâmina cortou fundo em seu ombro, trazendo uma ferida profunda.
O sangue escorrendo do ombro, Hazan deslizou por baixo dos braços de Edgard, surpreendendo-o com um chute no estômago que o fez recuar em direção à janela de vidro.
Hazan cerrou o punho, desferindo um golpe certeiro no rosto do guerreiro, que soltou a espada e impactou contra a janela. O vidro se quebrou, mas Edgard, astuto, agarrou o pulso de Hazan, puxando-o junto consigo.
Os dois homens travaram uma batalha desesperada, uma luta de vontades entre forças opostas. Edgard tentava arrastar Hazan para fora da janela, enquanto o jovem resistia, feroz e determinado.
— Achou mesmo que podia se dar ao luxo de me poupar? Essa ingenuidade vai te matar! Ou você mata, ou você é morto, entalhe isso na cabeça! — Um sorriso sinistro surgiu de orelha a orelha. — Você vai morrer, aqueles pivetes que se sacrificou para proteger vão ser devorados pelo fogo e nada disso vai importar, por conta da sua escolha!
Os dentes de Hazan estavam cerrados com tanta força que a dor parecia prestes a estourar de seus ossos. Seu olhar, agora, brilhava em um alaranjado ainda mais intenso, as veias de seus braços, pescoço e têmporas saltavam como rios furiosos sob uma lua cheia.
— Você… fala… pra caralho! — rugiu, desvencilhando-se do pujante e superando a disputa de força. Cerrou o punho machucado, girando o eixo da cintura, transferindo o peso e a potência do ombro para o punho, desferindo o seu melhor direto.
BAM!
O guerreiro de olhos azuis atravessou a janela, lançando-se em direção às chamas que rugiam iguais bestas famintas. Hazan observou a queda do homem, notando um sorriso em seus lábios. Um sorriso pleno, quase sereno, mesmo diante da iminência da morte. Edgard não cumpriu a própria promessa. Não havia levado Hazan consigo, e fracassara em uma batalha cujo desfecho parecia certo. O sorriso do guerreiro não fazia sentido.
— Eu… eu o matei… — sussurrou para si, a voz abafada pelo eco do fogo rugindo ao redor. — Eu fiz isso…
Golpeou o próprio rosto, trazendo a lucidez em meio ao caos interior.
— Foco, Hazan! As crianças! Preciso encontrá-las e sair daqui!
Ergueu a perna para dar um passo, mas seus músculos cederam e despencou no chão.
Agora não…
O corte em carne viva no ombro não parava de arder, quebrou lugares dentro do próprio corpo que nem era capaz de imaginar, e os músculos gritavam por descanso.
— Eu… me… recuso!
Cada fibra de seu ser clamava para que desistisse, reconhecesse a própria fragilidade e permanecesse no chão. Cada músculo, cada nervo, cada ferida. Mas sua mente se recusava a ceder. Consciente da agonia iminente, decidido a cumprir a promessa feita, arrancou do âmago de seu peito a coragem necessária para persistir, mesmo diante de tanto sofrimento.
Apoiou os cotovelos no chão, depois os joelhos, arqueou a coluna, aos poucos ficando de pé. Se guiou pelas paredes e achou a saída, descendo a escadaria em espiral.
No corredor da onde tinha se prolongado o embate contra Edgard, Hazan juntou o ar dos pulmões e gritou. — Aspen! Lunna! Onde vocês estão!?
Embora a fumaça cerrada quase o sufocava, avançou, ignorando o sofrimento. Inesperadamente, o chão cedeu sob seus pés, rachando-se e desmoronando em direção ao andar inferior.
CRACK! SCRASH!
Aterrorizado, Hazan recuou, os olhos se arregalando ao ver Aspen e Lunna em situações desesperadoras.
Aspen estava cercado pelo fogo, uma viga de madeira prestes a desabar sobre ele. E Lunna segurava na borda de um buraco no chão que ameaçava engoli-la, seus dedos brancos de tanta força.
Correu em direção às escadas, mas um degrau cedeu sob seu peso, prendendo o pé. Hazan apoiou as mãos na madeira quente e se levantou, voltando a correr.
No andar inferior, o cenário era o mesmo: fogo e fumaça sufocante. A torre estava desmoronando aos pedaços. Entre os dois perigos, Hazan precisava escolher.
As madeiras rangiam, as labaredas rugiam, e o tempo estagnou no momento em que precisava tomar uma decisão.
A viga cedeu, prestes a esmagar o meio-elfo. O garoto fechou os olhos, uma expressão sofrida, esperando o fim…
Que não o alcançou. Quando os abriu, viu Hazan, com ferimentos visíveis, sustentando a viga em seu ombro ferido. Um sorriso trêmulo adornava o rosto do rapaz, enquanto ele redirecionava rapidamente a viga na direção de Lunna.
— Lunna, pega isso!
Por um milagre ou pela fé nas palavras de Hazan, Lunna foi capaz de ouvir. Agarrou-se à viga, subindo e apoiando a barriga no suporte, aguentando a dor das queimaduras em seus dedos e estômago.
Hazan a puxou para fora do buraco, aliviado ao vê-la a salvo. Os irmãos entreolharam, lágrimas escorrendo, e abraçaram o rapaz ao mesmo tempo.
— Ei, vão com calma, moleques — murmurou o lutador, aliviado por um instante. — Não temos tempo para isso, vamos dar o fora daqui!
Eles concordaram, e continuaram descendo os andares com a cautela de quem dança sobre lâminas de vidro. Cada passo era uma batalha contra a exaustão que arrastava os músculos de Hazan para a escuridão do sono. Resistia, mantendo as pálpebras abertas, mas a dor, implacável e voraz, se tornava sua única companhia.
Seu foco se aferrava àquela dor, agarrando-se a ela como um náufrago se agarra a um pedaço de madeira à deriva. Era a única âncora que o mantinha na superfície, à mercê das correntezas que ameaçavam arrastá-lo para o abismo do inconsciente.
Finalmente, alcançaram o primeiro andar, onde tudo começou. Um cheiro acre de morte, provindo de cadáveres queimados, envolvia o ar misturados à fumaça que ocultava tudo em um manto de aflição. Camas e armários jaziam em ruínas, amontoados de destroços que obstruíam o caminho até a porta dupla.
Fragmentos do teto desabavam em cascata sobre o alojamento, lágrimas da torre que expressavam a dor de sua destruição. Hazan vasculhou o ambiente em busca de uma rota de fuga alternativa, mas a fumaça turvava a visão, transformando cada tentativa em uma luta contra o tempo.
Entulhos estão bloqueando as laterais da porta, mas continua sendo nossa melhor opção!
— Se afastem, eu cuido disso.
Hazan tomou a frente, seus músculos tensos pelo esforço, agarrando a batente da porta e puxando com todas as suas forças. Inicialmente, não parecia que tantos destroços podiam ser movidos de lugar, contudo, conforme as veias dos braços saltavam, a diferença foi feita. Os entulhos cederam sob a pressão, abrindo uma passagem estreita.
— Passem logo! Estou logo atrás de vocês! — ordenou, a voz rouca representando o esforço que fazia.
Se esgueiraram pela abertura, lançando olhares ansiosos na direção de Hazan, mas já não havia mais forças em seu corpo exaurido. Um sorriso triste curvou seus lábios ao perceber o medo nos olhos dos irmãos, a dura realidade de que partiriam sem ele.
— Sinto muito por não poder cumprir minha parte do acordo… Encontrem Aurora. Ela é maluca, mas vai ajudá-los!
— N-não! Não vamos embora sem você! —Lunna estendeu a mão em um gesto de desespero.
Aspen a agarrou pelo braço, arrastando-a para longe enquanto a porta começava a fechar. Um escudo de metal se curvou em um arco elegante e preciso, encaixando-se perfeitamente na fresta superior da porta, mantendo-a aberta por um instante fugaz.
Com um suspiro de alívio, Hazan escapou pela saída, a porta rangendo ao se fechar atrás dele com um estrondo ensurdecedor. Ele se curvou, mãos apoiadas nos joelhos, ofegante e cansado. Aspen e Lunna, seus semblantes preocupados e indecisos, pareciam querer oferecer apoio, mas hesitavam.
— Não sou maluca — proferiu uma voz familiar. — E você assumiu a responsabilidade por esses dois, e não eu, você entendeu?
Erguendo o olhar, Hazan avistou Aurora, os braços cruzados, encarando-o com firmeza.
— … Valeu pela ajuda.
— Não fiz isso de graça. Temos uma urgência maior para lidar — falou, virando o olhar para o que importava.
Dezenas de homens não foram suficientes para conter a fera maldita. Em meio a um amontoado de corpos, o feral permanecia de pé, implacável, suas escamas negras manchadas de sangue, as presas salientes em um rosnado silencioso. Lanças e flechas cravavam suas costas, as garras segurando o cadáver de um guarda, mas não havia sido em vão.
Embora não foram capazes de derrotá-lo, era evidente que a criatura estava em um estado lastimável, uma flecha cravada em um de seus olhos.
— Conseguimos acabar com ele? — Hazan não tirava os olhos do feral.
— Se servir como isca, sim — respondeu Aurora sem hesitar.
— Isso é uma loucura, ele está ferido! — O protesto de Aspen refletiu a preocupação no olhar.
Hazan bagunçou os cabelos de Aspen em um cafuné e andou até o lado de Aurora. — Beleza… Eu cuido disso.
As intenções de Aurora sempre foram incertas. Confiar nela em uma situação de perigo não parecia sensato, dadas as ameaças anteriores. No entanto, diferente de suas falas agressivas, Aurora salvou a vida de Hazan mais de um vez. Encarando seus olhos frios, Hazan vislumbrou uma centelha de humanidade, algo em que se apegou.
Ela poderia usá-lo como distração e abandonar as crianças para fugir. Mas decidiu acreditar que ela não faria isso.
Hazan esticou os músculos, causando estalos nos tendões, o sangue escorrendo sobre as feridas velhas e novas.
Não sei por quanto tempo vou aguentar acordado. Essa fera é maior e mais forte. Preciso acreditar que está ferida o suficiente para ser imobilizada. Eu consigo, porra, vamos lá!
Respirou fundo, flexionou os joelhos e avançou na direção da criatura, que permanecia de costas para ele.
— Ei, monstro do caralho!
O feral o encarou, um rosnado hostil, as garras afiadas cortando o ar em direção à cabeça de Hazan.
Sentindo o choque muscular que percorria todo o corpo, Hazan agachou e rolou pelo chão, desaparecendo da vista da criatura através de seu ponto cego. O feral, não esperando que aquele mero humano fosse capaz de contorná-lo, foi surpreendido quando o lutador emergiu por trás, prendendo os braços musculosos atrás das costas.
— Aurora! — Hazan estava quase cedendo.
Correndo na direção do feral, os olhos de Aurora brilharam em um azul intenso, um espaço entre seus lábios deixando o ar frio escapar. — Nem precisa pedir.
Saltou num super pulo, e em vários metros acima do chão, o cabo de uma arma surgiu da palma da mão da braçadeira, no centro de um círculo mágico. De lá, retirou uma lâmina totalmente composta de gelo, degolando o pescoço do feral num movimento fluido.
Aurora pousou no chão, e a cabeça do feral rolou para longe de seu corpo, que desabou inerte, causando um estrondo.
Aspen e Lunna observavam apreensivos à distância. Hazan virou-se para elas, um sorriso vitorioso estampado no rosto, erguendo o polegar em sinal de triunfo, apenas para cair logo em seguida.
É isso… Cheguei ao meu limite. Não consigo mais… porra… Se ao menos tivesse acabado com aquela luta mais cedo…
A visão embaçava e focava, tudo o que via eram os rostos preocupados dos irmãos e o olhar indiferente da garota de cabelos brancos.
As dores finalmente começaram a desaparecer, substituídas por uma sensação de alívio que se infiltrava em seus membros exaustos.
Não posso desmaiar… Foco na dor… Foco… na…
Dor. O combustível que o manteve de pé até aquele momento não existia mais, sobrando um relaxamento muscular que se provou prazeroso. A estrutura da torre desabava ao seu redor, trazendo sons abafados juntos ao estalar das madeiras e o crepitar das chamas.
Em míseros segundos, Hazan não sentiu mais nada.
[…]
O corredor se estendia à frente, um túnel sem fim, familiar e estranho ao mesmo tempo. As portas que normalmente ficavam nas laterais foram substituídas por um espelho que se estendia sem parar. As luzes vermelhas, fracas e oscilantes, pareciam maliciar sombras que dançavam ao ritmo de sua respiração agitada.
Hazan, com o coração martelando em seu peito, concentrava sua determinação em uma corrida desesperada em direção ao que vislumbrava ao longe. A porta dupla de madeira, com suas maçanetas reluzentes, exibia em letras rubras o aviso de “emergência”.
Rogava em silêncio enquanto seus passos ecoavam no corredor vazio.
Estou chegando, aguente firme, por favor!
Uma onda de náusea revirava seu estômago, oprimindo-o com sua crueldade, sua mente parecia estar aprisionada sob um peso insuportável. Avançar significava aumentar a intensidade daqueles sintomas.
As mãos estendidas quase tocaram as maçanetas da porta quando o corredor pareceu se esticar, alongando a distância, de forma cruel, a distância entre eles. Um grito frustrado escapou dos lábios, mas ele redobrou seus esforços, mantendo seu percurso mesmo diante da adversidade.
O estalo que ressoou pelo corredor revelou-se um presságio sinistro. Os espelhos das laterais do corredor começaram a trincar, liberando uma um sangue rubro, quase como vinho, que serpenteava pelas fissuras, pressionando os limites da realidade até que finalmente cedessem.
O estrondo da quebra foi ensurdecedor.
Uma maré de corpos, tingidos de vermelho, irrompeu dos espelhos, uma massa repugnante de carne e ossos distorcidos que clamava por justiça com vozes amalgamadas em um coro dissonante.
— Culpa sua! Assassino! Monstro! Você acabou com as nossas vidas! Nos tornamos escravos por sua culpa! — os espectros acusavam, seus olhos vazios ardendo em um ódio ancestral.
Cerrando os dentes, ignorou as palavras acusatórias, forçando seu corpo a continuar. Um ato de resistência contra o dilúvio de condenações que o envolvia, até que finalmente alcançou a porta, suas esperanças renovadas.
Com um chute impetuoso, ele forçou a porta à sua frente, apenas para descobrir que não existia mais nenhuma “sala de emergência”, e sim um abismo de escuridão infinita.
Assim, desabou.
Avistou a porta da emergência aberta, e a maré vermelha que o perseguia em atravessou a entrada, mãos negras que buscavam alcançá-lo. Entre os rostos deformados, Hazan reconheceu todas as faces, faces do passado que o assombravam.
— Calem a boca! Vocês escolheram o mesmo caminho que eu, não podem me culpar por isso! A culpa é de vocês por serem tão fracos! Me ouviram!?
Os espectros avançaram, envolvendo Hazan, rasgando seu corpo, gritando ao ponto em que sua mente se tornou puro caos.
Tudo parou.
Hazan se viu diante de uma porta estranhamente grande. Já não era o rapaz atormentado, mas sim um garoto de feições simples e olhos cheios de inocência. Esticando-se ao máximo, ele alcançou a maçaneta e adentrou a sala além.
O quarto estava mergulhado em luzes aconchegantes do fim da tarde, as paredes brancas eram tão limpas que elas fizeram com excelência o seu papel de tornar aquele quarto agradável. Diante dele, deitada na cama, uma mulher, seu rosto marcado por traços borrados, repousava em uma cama frágil, sustentada apenas pelo singelo laço de um soro intravenoso.
Ao lado da cama, um retrato chamou sua atenção. Era Hazan, em sua juventude, abraçado à mulher de traços distorcidos, ambos sorrindo sob os raios dourados do sol de um verão na praia. O azul do mar e o amarelo da areia complementaram o misto de emoções que sentiu eo encarar aquela foto.
— Hazinho? — Sua voz estava tão encantadora e amorosa quanto se lembrava.
Engoliu em seco e se aproximou da cama. — Mãe… eu sinto muito. Eu fui um idiota, eu… eu não devia ter…
— Shh, está tudo bem, meu amor — murmurou, estendendo a mão para ele. — Não se preocupe com isso.
Encarou a mão estendida e sentiu a cabeça ferver ao cogitar a ideia de segurá-la. Cerrou os punhos e desviou o olhar. — Isso… Isso não é real…
— Você é meu bem mais precioso… Vai crescer e se tornar um homem muito gentil — A voz era soprosa, convicta e serena.
Hazan começou a encarar o chão.
Um silêncio pairou no ar. Conforme o quarto começava a se deteriorar, o retrato em cima da mesa começou a rachar e perder cor, o mar se agitou em ondas violentas, engolindo as duas figuras da foto.
Estava repetindo os mesmos erros. Tomado por um impulso inexplicável, se apressou e segurou na mão dela. Seu toque era acolhedor, quente e macio.
— Nunca é cedo para ser gentil. — A voz deformou numa mistura de grave e agudos. — Porque nunca se sabe quando poderá ser tarde demais, não é?
A pele daquela mulher estava pálida, áspera e gélida.
Hazan se afastou, caindo de costas no chão, encarando o rosto distorcido enquanto tentava lembrar do rosto de sua mãe. Aquele fantasma se desfez em cinzas, contorcendo e se transformando em imagens distorcidas de seu próprio rosto infantil, cada um olhando para ele com olhos acusadores.
Se arrastou até bater as costas contra a parede. Assustado e ofegante, olhou ao redor, notando o seu cordão jogado no chão.
Estendeu a mão trêmula para alcançá-lo, mas antes que pudesse tocá-lo, o objeto se contorceu e se transformou em uma serpente negra e sinuosa, cujos olhos brilhavam com uma malícia sombria.
Calafrio percorreu o pescoço de Hazan quando a serpente se aproximou dele, deslizando pelo chão de mármore frio com uma graça mortal. Ele tentou levantar, mas seu corpo estava totalmente paralisado.
A serpente enrolou em torno de seu corpo, apertando cada vez mais forte, cortando a respiração e sufocando-o sem demonstrar pressa para acabar com seu sofrimento.
Lutava para respirar e tirá-la de seu pescoço enquanto os olhos lacrimejavam e as unhas ficavam machucadas conforme mais ele se esforçava.
Eu mereço isso…
Diante dessa conclusão, aceitou o que o destino lhe reservou. Os braços caíram e a vista fechou, mas seu pescoço continuou a ser esmagado.
Crack!
[…]
Despertou em sobressalto, cambaleando para o lado e encontrando seu rosto em contato brusco com o piso de madeira.
A última lembrança antes de cair desacordado era uma agonia excruciante que perfurava seu corpo. Estendeu as mãos pelo chão de madeira, tentando se erguer, e não foi surpreendido ao sentir ondas de dores voltando.
Esfregou o pescoço e observou ao redor. A luz do sol filtrava-se pela janela adornada com uma cortina branca, movendo-se suavemente com a brisa. Um quarto simples, de madeira, com poucos móveis: uma mesa decorada com um espelho e um jarro de flores, junto a uma cama logo atrás. Aquele espaço podia ser pequeno, mas trazia uma sensação de conforto.
Então, voltou-se para si, os antebraços envoltos em grossas bandagens. Passou a mão pela testa, tentando enxugar o suor, apenas para perceber um pano envolvendo sua cabeça. Desfez o nó, examinando o pano que, em teoria, deveria ser branco, agora manchado com várias tonalidades de sangue. Ao olhar para o chão, notou um balde de madeira ao seu lado. Jogou o pano sujo no balde e sentou na ponta da cama.
Apertou o punho envolta do cordão. O coração, antes pulsando forte, se acalmou em batidas regulares.
Ainda bem que você tá de volta.
Puxando a camisa de seda marrom para cima, viu as faixas ensanguentadas adornando o torso. Girou o ombro onde Edgard o havia cortado, observando as camadas de proteção que o envolviam.
Se não tô enganado, isso aqui estava bem feio.
Negou com a cabeça e jogou o corpo para trás, aconchegando-se no colchão macio. As lembranças da fortaleza vieram à tona, especialmente sua luta emocionante contra Edgard. Um sorriso involuntário surgiu em seus lábios e, percebendo isso, levantou-se da cama, indignado.
Estou sorrindo…? Eu o matei. Ele está morto, pelas minhas mãos.
Ficou de pé e adotou uma postura ofensiva, punhos próximos ao rosto, pernas firmes. Entrou em um estado de concentração, flexionou os joelhos, cotovelos apontando para baixo, músculos contraídos.
Não era isso que eu queria fazer. Não planejei como resolver a situação, apenas… reagi. Naquele momento, fazer aquilo pareceu a solução mais natural.
As palavras de Edgard antes de morrer reverberaram em sua mente.
Se eu não fosse tão fraco, nada disso teria acontecido. Preciso ficar mais forte.
Lançou o primeiro golpe, seu corpo protestando em resposta. A fraqueza retornou, a tontura obscureceu sua visão, os músculos queimavam. Mas ele não parou.
Forte o suficiente pra sobreviver nessa porcaria de mundo e recuperar minhas memórias. Esse deve ser o meu objetivo.
Adaptou suas sequências de golpes, alternou entre esquivas e defesas, até lançar seu último ataque, acompanhado por gotas de suor que salpicavam o ar. Mal percebeu o sangue escorrendo de seu nariz, manchando o chão, nem o tempo que passou.
O esforço fez seu corpo se aquecer. Ofegante, olhos arregalados, ele se afastou da postura, dirigindo-se à janela.
Abriu as cortinas e, ainda ofuscado pela luz, soltou seu comentário mais sincero:
— Que desgraça de lugar é esse!? — A voz ecoou pelas ruas, algumas pessoas o encarando lá de baixo.
Uma rua ladrilhada de paralelepípedos, casas feitas de madeira e pedra, estruturas mais complexas, estavam espalhadas pelas ruas, suas fachadas adornadas por bandeiras pretas com o símbolo da fagulha de uma chama.
O aroma sedutor de flores frescas e pães assados pairava no ar, entrelaçando-se com o perfume de ervas e especiarias exóticas que emanavam das barracas dos mercadores. Hazan enxergou várias pessoas caminhando pelas ruas, algumas vestidas muito bem, e outras usando vestimentas mais simples.
Aquela rua parecia se estender sem ter fim, onde ao longe, ele podia ver o semblante de um enorme prédio.
De repente, o rangido da porta se abrindo capturou a atenção do jovem. Se virou para observar, deparando-se com um homem vestindo um jaleco branco, pontuado por detalhes azuis. Seu cabelo castanho estava amarrado em um rabo de cavalo que caía sobre o ombro, enquanto seus olhos, azuis como os detalhes em seu jaleco, exibiam visíveis olheiras.
Atrás dele, estavam duas figuras que Hazan conhecia muito bem, olhando-o perplexas e em silêncio.
Aspen estava vestindo uma camisa branca de mangas compridas e calças simples de tecido. Lunna compartilhava a mesma calça, mas sua parte superior era adornada por uma blusa distinta, presa por um largo cinto de couro, com mangas brancas ornadas por detalhes verdes, que combinavam com seus chifres e olhos.
— HAZAAAAN! — Lunna correu na direção dele, sendo a primeira a chegar.
Pressentindo o perigo, um arrepio percorreu o corpo de lutador, e ele recuou, evitando o abraço desesperado da dragoniana, o que culminou num encontro patético com o chão.
Com um olhar desconfiado e, ao mesmo tempo, intimidador, Hazan dirigiu-se a Aspen, como se dissesse: “Não se aproxime!”.
Aspen franziu as sobrancelhas, cruzou os braços e desviou o olhar. — Não espere que eu seja meloso assim!
— Seu… bobão…! — Lunna se ergueu do chão, a testa avermelhada, cerrando o punho e desferindo um soco desajeitado no meio das costas do rapaz. — Eu só tava preocupada!
Hazan caiu como uma marionete desmontada, e Lunna cobriu a boca, surpresa com a própria força. — S-senhor Agnis!
Observando Hazan caído, Agnis deu de ombros e dirigiu-se à cama, colocando uma bolsa de couro em cima desta. — Ele vai ficar bem, já passou por coisa pior. — Encarou Hazan, que estava sentado no chão. — Sente-se aqui e tire a camisa.
Hazan fez uma careta, erguendo uma das sobrancelhas enquanto se levantava do chão.
Uma veia pulsou na bochecha do curandeiro, enquanto ele retrucava: — Vou trocar seus curativos.
Com a ajuda de Lunna, Hazan dirigiu-se até a cama e tirou a camisa, expondo um corpo coberto por ataduras manchadas de sangue. Agnis cortou todas as faixas com uma tesoura, jogando-as em um balde próximo.
Os irmãos obsevavam a cena com curiosidade e surpresa.
— Quanto tempo fiquei apagado?
— Dois dias, e isso é pouco, considerando o estado em que você se encontrava. — Passou os dedos por cada ferimento, examinando o seu estado. — Vamos ver… quatro fraturas espalhadas pelas costas, três fraturas nos antebraços, duas costelas com fraturas graves, diversas escoriações e hematomas…
Ao examinar melhor, Agnis percebeu algo estranho. A grande ferida que antes decorava o ombro de Hazan, queimada até a carne viva, agora era apenas uma queimadura de primeiro grau. Não só isso, o estado geral do rapaz parecia bem melhor em comparação com quando o encontrou pela primeira vez, desacordado ao lado do cadáver de um feral.
Após alguns minutos trocando os curativos, Agnis segurou o pulso de Hazan, com o polegar pressionando uma veia. Seu polegar emitiu um brilho azulado, e segundos depois, o rosto do curandeiro empalideceu. Ele ergueu o olhar para Hazan. — Precisamos conversar. — Voltou-se para as duas crianças com uma expressão séria. — E a sós.