O Desejo Depois Da Morte - Capítulo 4
Hazan estava sentado em um conjunto de várias cadeiras acolchoadas, no penúltimo andar do hospital: a ala destinada aos pacientes em coma ou em estado crítico.
Massageou as próprias mãos, tentando acalmar todos os pensamentos negativos que passavam pela cabeça. A quietude do ambiente pesava no ar, enchendo o espaço com um silêncio quase tangível.
Antônio, um velho doutor de cabelos brancos que o jovem conhecia, saiu da última porta do corredor, e o rapaz o encarou, seus olhos se encontrando. Assim que o médico se aproximou, levantou da cadeira, cerrando os punhos.
— O que aconteceu? — A preocupação estava estampada no rosto. — Foram sete ligações em um dia. Como ela está!?
O médico sorriu e colocou uma mão no ombro de Hazan, expressando satisfação em sua voz. — Ela se recuperou do coma, rapaz.
Assim como Hazan, Antônio também era brasileiro e tinha simpatia pela difícil situação do jovem.
— Ela… acordou…? — A voz saiu rouca e desacreditada, a mente mergulhando em vários pensamentos.
Por um instante, sentiu seu corpo flutuar, a mesma sensação de estar sonhando.
Era familiar, semelhante àquela que experimentara meio ano atrás, quando suas escolhas precipitadas resultaram na tragédia que assombrava seus pensamentos.
Nessa época, estava afundando em um pesadelo interminável, o mundo jogando as consequências de suas ações sob seus ombros como responsabilidades que pesavam toneladas.
— Eu verifiquei o estado dela e, no momento, ela está bem. Vamos falar sobre a fisioterapia após a sua visita — Antônio começou a dizer, mas antes de terminar, Hazan já estava correndo pelo corredor do hospital em direção à porta.
Ela acordou, ela realmente se recuperou! Porra, eu sabia!
Chegou à extremidade do corredor, parando diante de uma porta de madeira maciça. Ofegante, engoliu em seco e encarou a maçaneta com os olhos brilhando. Levou a mão até a maçaneta, mas hesitou, mordendo o lábio inferior.
— Isso é real mesmo? — murmurou para si mesmo, uma risada nervosa escapando de sua boca.
Segurou a maçaneta e a girou, empurrando a porta para dentro. O cheiro clínico de desinfetante encheu o nariz, a luz brilhante e fria do teto iluminava sua face preocupada.
Um monitor cardíaco estava montado ao lado da cama, sua pulsação sendo marcada por intervalos agudos de som.
Deitada na cama, estava uma mulher na faixa dos 30 anos, os dedos entrelaçados sobre seu peito. Seus cabelos negros, outrora curtos, agora cascavam sobre seus ombros em uma cascata desgrenhada.
Apesar da palidez que marcava sua pele e da fragilidade que a envolvia, os traços de seu rosto traziam uma beleza delicada. A etiqueta pendurada em suas vestes de paciente trazia o seu primeiro nome: Rafaela.
O jovem a observou por um momento, sentindo um aperto forte no peito. Tirou o casaco e o pendurou no cabide perto da porta.
Chegou à beira da cama, segurando a mão da mulher, tomando cuidado para não apertar forte demais.
— Tanta coisa mudou na sua ausência. Eu tentei, juro que tentei. As coisas não param de dar errado, mas eu me mantive forte, como disse que faria — sussurrou, suas palavras naquele momento eram preces destinada apenas aos ouvidos dela. — Sinto tanto a sua falta. Eu… eu cometi tantos erros… — Mudou a expressão de repente, tornando-se determinado. — Mas por você eu faria tudo de novo.
O silêncio da sala parecia ecoar com suas palavras não ditas, com as emoções que transbordavam em cada canto. O rapaz ficou de joelhos, acariciando a mão de sua tia com o polegar enquanto descansava o rosto na beirada da cama.
— Está atrasado — sussurrou uma voz fraca.
No instante em que aquela voz rígida ecoou no ar, Hazan ergueu a cabeça, fitando Rafaela sentada na cama. Foi atingido por um choque, dissipando qualquer sombra de dúvida: aquilo não era um sonho.
Um misto de emoções intensas o inundou, uma enxurrada de sentimentos que não conseguiu conter.
Sem pensar duas vezes, se lançou em um abraço forte e profundo. Rafaela arregalou os olhos.
Aquela demonstração de afeto não era um traço comum em seu sobrinho, e por um breve instante, ficou sem saber como responder.
A perplexidade em seu rosto logo cedeu espaço a um sorriso caloroso e acolhedor, e apesar de relutante, retribuiu o abraço com igual intensidade.
Ali permaneceram, perdidos no tempo, Hazan buscando absorver cada pedacinho daquele abraço, cada fragmento da sensação acolhedora que há tanto tempo estava ausente de sua vida.
Após o que pareceram ser minutos eternos, Hazan finalmente se afastou um pouco, embora desajeitado, um rubor suave pintando suas bochechas. Coçou a bochecha e desviou o olhar. — Foi mal, eu… Só estava com saudade.
— Você está fedendo a suor… E a sopa? — observou Rafaela, franzindo as sobrancelhas. — Sua estimada tia acorda de um coma e sequer toma um banho antes de visitá-la?
— Espera, é sério? — respondeu, cheirando as axilas. — Ugh…
— Bom, não se preocupe tanto. — Um sorriso provocador surgiu de canto. — A menos que vá sair com uma garota hoje.
Hazan negou com a cabeça. — De onde tirou isso?
— Intuição feminina. — Retrucou ainda sorrindo, apontando para o rosto de seu sobrinho. — E as marcas de batom pelo seu pescoço e bochecha.
— Espera, merda, isso não é o que parece! — respondeu enquanto limpava as manchas com urgência.
Rafaela cerrou o punho e o atingiu com um cascudo.
— Ei, sua velha! Tomei de graça? — reclamou, colocando uma das mãos na cabeça.
— Idiota, isso não é um problema!
— O que está dizendo do nada, sua lunática!? Isso é a síndrome da meia-idade ou o quê?
Outro cascudo o atingiu.
— Estou dizendo que é bom aproveitar sua vida enquanto é jovem. Não tenha uma vida cheia de arrependimentos como eu.
Arrependimento. A sensação de querer voltar no tempo para corrigir os próprios erros. Isso era algo que perturbava os pensamentos do rapaz desde que sua tia entrou em coma.
— Hã? Pft, isso é definitivamente síndrome da meia-idade… — Um sorriso irônico brincava nos lábios do rapaz.
O sorriso sutil de Rafaela cresceu. Arrumou uma mecha de cabelo atrás da orelha e então direcionou seu olhar para a janela, que agora refletia a noite estrelada lá fora. As luzes coloridas do tráfego dançavam na escuridão.
— Deixe-me vê-lo de perto. — Se acomodou na cama, indicando para que ele se sentasse ao seu lado. Ele obedeceu, embora estivesse tenso. — Você mudou bastante, por um momento achei que um estranho estava me abraçando. — Rafaela passou os dedos pelos cabelos de Hazan, arrumando os fios bagunçados. — Você sabe, nunca que aquele meu sobrinho gentil e delgado se pareceria com o homem que está na minha frente agora.
Como reação, uma risada curta escapou de Hazan, e Rafaela manteve o semblante sereno.
— E como foi a luta contra o campeão?
— Eu perdi. Eu realmente tentei, mas ele era incrivelmente forte. — Hazan encolheu os ombros cabisbaixo, lembrando de sua derrota avassaladora.
— Eu imaginei. Ele era experiente e estava mais em forma do que você.
— Quê? Então por que me deixou lutar se sabia que eu não estava pronto? — Encarou a sua tia, sua face confusa e curiosa.
— Porque algumas lutas não esperam até estarmos prontos. Às vezes, elas aparecem sem aviso, e você precisa dar o seu melhor, como se a derrota não fosse uma opção.
— E foi isso o que eu fiz.
— Isso é tudo o que importa — Rafaela respondeu com um sorriso, dando alguns tapas nas costas de seu sobrinho. — Continuou lutando?
— Não, anunciei uma pausa temporária para mídia, pelo menos até você se recuperar. Além disso, eu não me sinto confiante em treinar sozinho.
— Hunf, se realmente deseja aquele cinturão, deveria ter continuado sem mim — retrucou, cruzando os braços. — Onde está a disciplina que eu ensinei?
— Sei lá, eu… Não ia conseguir treinar sem pensar em você.
Rafaela, que até então parecia irritada, suavizou suas expressões de maneira sutil.— Hum, ao menos reconheceu os seus limites.
— Eaí, tá com fome?
— Não, estou bem.
— Nem sede?
— Não, não estou. — Ela negou com a cabeça.
— Uau, tá exigente hoje. — Ele ergueu as sobrancelhas.
— Estou bem, Hazan. O campeão não para de treinar. Ele está ficando mais forte a cada dia. E tem outros competidores tentando superá-lo também. Você acha que vai conseguir alcançá-los depois de tanto tempo parado?
Um sorriso desenhou os lábios do jovem. — Com a melhor mestra do mundo ao meu lado? Com certeza!
O olhar observador de Rafaela percorreu seu sobrinho, como se quisesse decifrar cada mudança em sua essência. — Você mudou mesmo.
Com um gesto cuidadoso da mão, ela interrompeu qualquer tentativa de resposta por parte dele.
— Durante muito tempo, eu vivi com o medo de que você estivesse sacrificando a parte fundamental da sua vida por puro arrependimento. — Ela segurou a mão dele. — Sem amigos, sem infância, sem uma vida escolar… Você treinava, treinava e treinava. Entenda, como sua tia, minha intenção era apoiar seu sonho da melhor maneira que podia, mas, em diversos momentos, eu me questionava se aquilo era o certo a ser feito.
— Tia, eu…
Mais uma vez, Rafaela o impediu com um gesto sutil da mão.
— O passado é o passado. Os anos se foram, e você se tornou algo além do que eu imaginava, mesmo que a princípio não fosse dotado de um talento extraordinário. Aprendeu outras artes marciais por conta própria, e quando percebi, você estava surpreendendo o mundo com suas habilidades.
Os olhos dela encontraram os de Hazan, Rafaela sorria de maneira nostálgica. — Fiquei genuinamente feliz, mas… Era tarde demais pra eu notar a verdade. — O sorriso sumiu. — Você ficou excessivamente obcecado com essa busca, e em algum ponto, se perdeu.
Rafaela nunca foi o tipo de pessoa que demonstrava sinceridade e afeto com palavras. Geralmente, isso acontecia através de pequenos gestos que podiam passar despercebidos, e Hazan entendia isso. Por esse motivo, ver sua tia sendo tão sincera o deixou aflito, e ao mesmo tempo, pensativo.
— Por isso, não se culpe pelo fato de eu estar nessas condições. Você fez o que tinha que ser feito, e a responsabilidade sempre foi minha em primeiro lugar. — Rafaela apertou a mão de Hazan com a pouca força que tinha, o encarando com um semblante orgulhoso. — Agora, sinto que essa obsessão que dominava seus olhos se dissipou. Não sei o que você enfrentou durante minha ausência, querido, mas quero aproveitar essa oportunidade para que me prometa uma coisa.
Hazan abaixou a cabeça, encarando o chão por um breve momento. No passado, teria discutido com as afirmações de sua tia. Mas… Não fazia sentido discordar de fatos, não agora que tinha amadurecido. Ele encarou Rafaela de volta. — Qualquer coisa que quiser.
— Se vou continuar te apoiando nesse objetivo, ao menos quero que seja sincero consigo mesmo. Quer o título de campeão mundial por causa de sua mãe, ou porque é algo que você realmente deseja?
Hazan permaneceu em silêncio.
— Vamos, Hazan!
— Isso não depende de mim, droga! Você é a única família que me restou, e eu cometi o mesmo erro! — Sua voz reverberou pela sala, e agarrou os ombros de sua tia.
Ela pôde sentir as mãos trêmulas de seu sobrinho.
— Acha que não sei o que estou fazendo? Escuta, isso tudo nunca foi por mim, nunca! Eu nem gosto de lutar. Só que toda vez em que eu penso em desistir disso, de viver por mim mesmo, sinto uma falta de ar, meu coração aperta, e eu… — Antes que suas emoções se explodissem de uma vez, fechou os olhos e respirou fundo, sentindo a mente ficando dormente. — Não importa. Eu fui o pior filho do mundo no momento em que ela mais precisava de mim. Se existe algo que eu posso fazer pra me redimir, é isso. E eu não vou parar. Com ou sem você, isso é algo que eu preciso fazer.
— … Se é isso o que quer fazer, meu querido sobrinho, eu faço com você. Assim que eu me recuperar, vamos voltar aos treinos. — Rafaela segurou as mãos de Hazan e gentilmente o puxou para um abraço. — Tenho tanto orgulho de você.
Hazan retribuiu o abraço, os olhos tremendo e fechando com força. — Não vamos treinar até eu ter certeza de que você está bem. Sua saúde vale mais do que qualquer título.
— Tudo bem, Hazan. Eu já entendi.
Ele ainda está mentindo… Talvez eu deva contá-lo a verdade. Que não sou a tia incrível e a pessoa impecável de que ele se orgulha tanto. Quem sabe isso não o encoraje a fazer o mesmo.
Toc! Toc!
A porta da sala se abriu, com Antônio entrando na sala.
— Com licença, boa noite! Opa, parece que interrompi algo importante — disse o médico, contente com a cena à frente de seus olhos. — O horário da visita acabou, Hazan. — O doutor encarou Rafaela, caminhando em sua direção. — Senhora Rafaela? Está na hora do seu check-up.
Certo… Sempre haverá uma próxima vez. Vou me certificar de que ele saiba o verdadeiro motivo de ter não ter se tornado um campeão.
[…]
No banheiro do hospital, o reflexo de si mesmo transmitia uma face de pura tormenta. Hazan se apoiou na pia, sentindo o frio mármore sob suas mãos, uma sensação que parecia se estender até o fundo de sua alma.
Um suspiro carregado de desespero escapou de seus lábios, uma rendição dolorosa à turbulência que o invadia.
Seus olhos eram agora poços sombrios de auto julgamento. A conversa com sua tia ainda ecoavam em sua mente.
O estômago embrulhou, uma resposta fisiológica do próprio corpo em relação ao nojo que sentia por si mesmo.
Uma careta de aversão se formou em seu rosto, e não pôde evitar um som involuntário de repugnância.
Courgh!
Ofegante, girou a torneira, deixando a água fresca limpar o vômito da pia. Juntou um pouco de água com as mãos trêmulas e limpou o rosto. Uma pífia tentativa de tentar lavar a culpa que o corroía por dentro. Mas isso não era possível.
Novamente, se encontrou encarando o espelho. Estava apático, um aspecto cansado e o brilho de seus olhos totalmente apagado.
— Seu mentiroso do caralho… — murmurou, palavras cheias de desgosto e autocondenação. A voz baixa ecoava pelo banheiro, os próprios azulejos pareciam absorver a intensidade de suas emoções. — Ela queria sinceridade, e o que você fez? Mentiu! Seu maldito hipócrita! — O grito reverberou nas paredes. — Ganhar o título? Depois de todos os crimes que cometeu, todos os sonhos que arrancou, acha que tem direito de desejar alguma coisa!?
Hazan mordeu o lábio com força, deixando o sangue quente escorrer pelo canto da boca.
Com um movimento brusco, abriu sua mochila, mostrando uma pasta meticulosamente embrulhada. Seus dedos trêmulos desembrulharam o conteúdo. Era um documento com cerca de 20 páginas de pura informação.
Tudo que eu sei do túmulo está aqui. Não tenho provas, mas acho que os detalhes das informações devem ser o suficiente pra motivar uma investigação.
Enrugou a testa enquanto encarava a pasta.
Eu não posso me entregar agora, pensou com as sobrancelhas franzidas. Minha tia ainda precisa de mim. Era uma justificativa para adiar o inevitável.
Com os olhos embaçados, fechou a pasta e a guardou novamente na mochila. Mas depois… prometeu a si mesmo, Depois, enfrentarei as consequências de minhas escolhas. A autopunição era uma constante, uma sombra que não poderia evitar.
Respirou fundo, tentando encontrar algum tipo de clareza no meio do caos emocional que o consumia.
Por agora, entregarei essas provas à polícia. O último ato de redenção antes do confronto inevitável com o próprio passado.
[…]
As estrelas desenhavam suas danças no céu, resplandecendo em uma exibição cintilante que enfeitava aquela noite.
Após conseguir entregar o documento para a polícia de maneira discreta, decidiu ir para casa e descansar. Agora que tinha perdido o emprego na parte da tarde, precisava procurar por outro trabalho que o ajudasse a pagar suas dívidas.
Ao dobrar a esquina, Hazan finalmente chegou na rua que chamava de lar. Nos recantos mais remotos dos subúrbios de Bangkok, no fim de um beco sem saída, estava uma garagem protegida por uma porta de enrolar.
Ambos os lados daquela rua estavam tomados por prédios de condomínios extremamente baratos, claro que era por conta do tamanho dos quartos, reduzidos a cubículos no qual apenas os mais pobres se sujeitariam a morar.
O edifício exibia a aparência discreta de uma modesta moradia de dois andares, construída com madeira escura.
Uma placa de madeira pendia acima da entrada, gravada com a inscrição “Muay Thai School”, as letras robustas e brancas contrastando com o fundo.
— Ei, ô Hazan! — Uma voz rouca o chamou.
Hazan olhou rapidamente para os lados, mas ninguém estava visível. Só quando ele direcionou seu olhar para o alto, percebeu seu vizinho do terceiro andar acenando entusiasmado. — E aí, rapaz! Como vai você e sua tia?
Era um homem quase idoso, com a pele marcada pela idade, cabelos grisalhos e uma barba rala. Em sua mão, uma lata de cerveja brilhava sob a luz da lua.
Hazan levantou o queixo em resposta e acenou de volta. — Estamos indo bem, senhor Narong. — Um sorriso adornou o rosto do rapaz. — Minha tia acordou do coma!
— Que notícia espetacular! — Ele virou-se com um grito exuberante em direção à sua esposa. — Kanya, vem cá! Rafaela acordou do coma! Pode acreditar nisso?
— Chai yo! Diga ao Hazan para aparecer aqui amanhã de manhã. Eu vou preparar um buquê de orquídeas para ele levar para ela!
Narong voltou sua atenção para Hazan, seu rosto irradiando alegria. — Você ouviu, não ouviu?
Hazan concordou. — Claro, com certeza passarei aí.
— Ah, a propósito, rapaz, como vai o conserto do meu rádio? Você disse que levaria menos de dois dias, hein? — Narong provocou, com um brilho travesso nos olhos. — Não está tentando me enrolar, está?
Hazan esfregou o queixo, fingindo perplexidade. — Rádio? Não faço ideia do que está falando… — Ele riu, coçando a cabeça com um sorriso arrependido. — Devo entregá-lo amanhã, me desculpe pela demora. Eu tenho estado bastante atarefado ultimamente…
— Haha, é melhor que seja verdade, senão vou chamar a polícia! — Narong brincou.
Hazan virou-se com um aceno, balançando as mãos em um gesto de despedida. — Isso seria um desastre!
Tirou um molho de chaves do bolso e destrancou um robusto cadeado que prendia a porta de enrolar em um gancho no chão. Com um guincho de engrenagens, o cadeado destrancou. Ergueu a porta até o topo, revelando uma porta dupla de madeira.
Tentou destrancar a porta, mas para sua surpresa, já estava aberta.
Eu esqueci de trancar antes de sair?
Encarou a fresta da porta entreaberta por alguns segundos, pensativo. Deu de ombros e a abriu de uma vez, apenas para se arrepender.
Foi imediatamente recebido por uma cortina de poeira. Uma tosse involuntária e descontrolada escapou de seus pulmões.
— Cof! Cof! Porcaria, esse lugar precisa de uma limpeza! — praguejou, sacudindo a mão para afastar o pó.
Estava de volta à academia, seu santuário pessoal e sua casa. O primeiro andar abrigava os ringues de treinamento, e o segundo era reservado para os cômodos da moradia.
Ligou o interruptor que estava ao lado da porta, acendendo as luzes do lugar.
Embora fosse uma academia de Muay Thai, a última vez em que viu uma grande movimentação de alunos foi quando ainda era uma criança. Com o tempo, os alunos foram sumindo, restando apenas ele e sua tia.
No coração da academia, um pequeno corredor se formava, ladeado por dois ringues paralelos.
Virando à esquerda, seus olhos se fixaram em um grande armário com uma placa de vidro. O vidro empoeirado não conseguia esconder a grandeza que residia ali dentro: uma coleção reluzente de troféus e medalhas de ouro e prata.
Aquilo era a representação das conquistas de sua tia, Rafaela, no mundo do Muay Thai. Aquelas peças reluzentes contavam a história de uma mulher que se tornou uma lenda no esporte feminino. A quantidade de prêmios era tão avassaladora que pareciam quase não caber no armário.
Hazan se aproximou do vidro, observando cada troféu com um olhar nostálgico. Traçou os dedos pela superfície empoeirada, seus olhos se detendo em um retrato no canto do armário.
Abriu o armário e pegou o retrato, limpando a poeira e olhando a foto.
A foto capturava um momento antigo: Rafaela em uma fase jovem e de cabelos curtos, dentro do ringue, com o cinturão de campeã erguido para cima em um gesto de vitória.
Observando os detalhes da foto, um suspiro escapou dos lábios de Hazan. — Eu queria ser tão bom quanto você — sussurrou, uma mistura de frustração e respeito.
Recolocou cuidadosamente o retrato em seu lugar no armário. Passou pelos ringues, adentrando uma varanda que tinha se transformado em um espaço de treinamento.
O chão estava coberto por um tatame azul gasto, e sacos de pancadas pesados balançavam em todos os cantos. Entre eles, um se destacava por sua aparência surrada e velha. Camadas e mais camadas de fita adesiva marcavam os inúmeros consertos que foram feitos ao longo dos anos, sempre que o couro era dilacerado.
Era o mesmo saco de pancadas que Hazan usava desde a infância, quando era apenas uma criança inexperiente e atormentada.
A cada passo na direção do saco, podia praticamente ver o seu eu mais novo socando o objeto de forma desajeitada, ansioso para provar seu próprio valor.
Como se buscasse uma afirmação para seu crescimento, se aproximou daquele objeto familiar. Abriu um espaço diagonal entre as pernas, com a perna direita à frente.
Elevou os punhos até a altura do rosto, flexionou as pernas, tensionou os músculos abdominais e girou a cintura, transferindo todo o peso para o ombro que, por fim, se esticou em um direto poderoso.
Bam!
O soco atingiu o saco de pancadas com tanta força que foi catapultado em direção ao teto da varanda. Hazan observou o resultado, e satisfeito, acenou levemente com a cabeça antes de se virar, seguindo em direção a uma escadaria no centro da varanda.
Subiu os degraus com paredes estreitas e escuras.
Vou preparar algo para comer e treinar um pouco antes de dormir.
Ao completar a subida, deparou-se com outro corredor. À direita, a cozinha, uma copa aberta que fazia fronteira com o quarto de sua tia. À esquerda, o banheiro e seu próprio quarto, localizado no final do corredor.
Ao abrir a porta do quarto, lançou um olhar atento ao seu redor. Tudo estava exatamente como havia deixado quando partiu.
A cama estava meticulosamente arrumada junto à janela, uma escrivaninha carregada de livros de artes marciais empilhados dominava uma parte do cômodo. Um desses livros estava aberto, com trechos sublinhados em amarelo destacando tópicos essenciais.
No canto da escrivainha, estava uma antiga tv, com entrada para fitas VHS. Ela estava ligada, pausada num momento histórico da história do boxe.
Hazan apertou o botão, assistindo o final do vídeo.
Em 1964, Muhammad Ali enfrentou Sonny Liston pelo título mundial dos pesos pesados. Ali surpreendeu a todos com sua agilidade e movimento no ringue, esquivando-se de 23 socos consecutivos de Liston. Ele acabou vencendo a luta por nocaute técnico no sétimo round, tornando-se campeão mundial pela primeira vez e solidificando seu status como uma lenda do boxe.
Nunca me canso de assistir isso. Ali, você definitivamente foi o melhor.
Halteres de 50 kg descansavam ordenadamente ao lado da escrivaninha. No canto oposto, uma barra fixa com suportes aguardava seu uso. No centro do quarto, um rádio antigo permanecia aberto, esperando reparos, um canivete ao seu lado.
Melhor eu fazer isso logo, qualquer dinheiro é bem-vindo agora.
Pegou o canivete e o guardou no bolso de trás da calça.
Atrás da porta do quarto, um suporte com vários cabides de madeira estava fixado. Com um gesto automático, pendurou sua mochila e casaco ali, como se aquele pequeno ato trouxesse uma sensação de paz e pertencimento.
Crack!
Um barulho de vidro estilhaçando ecoou pela cozinha. Hazan olhou na direção do corredor, franzindo as sobrancelhas.
Esqueci de fechar a janela? Se for outro maldito macaco, eu juro que…
Aquele bairro ficava próximo de um parque que tinha uma floresta imensa, e por conta disso, era normal alguns macacos aparecerem de vez em quando buscando comida. Isso acontecia por conta do hábito de alguns moradores em alimentar esses animais.
Andou até a cozinha, se deparando com um prato de vidro quebrado no chão, e a janela aberta. Mas sem sinal de nenhum animal.
Colocou a mão no pescoço e soltou um suspiro cansado. Um homem usando terno, com um pedaço de madeira em mãos apareceu atrás de Hazan sorrateiramente, o atingindo com brutalidade.
Bam!
O rapaz desabou, um baque surdo ecoando pelo piso de madeira.
O quê…?
— Esse garoto é pesado, parece que bati em uma parede! — grunhiu o mafioso enquanto erguia o jovem, suportando seu peso nos ombros.
— Não aguento mais um minuto nesse buraco de miseráveis — resmungou outro comparsa. — Vamos levá-lo até a limusine! Felizmente, a rua está deserta.