O Despertar Cósmico - Capítulo 38
O apartamento em que Elena ficava estava localizado em uma das regiões mais simples da cidade — dando vista para a favela do jacarezinho ao longe — e as paredes do prédio de dez andares precisavam ser pintadas novamente pois a tinta estava começando a ficar desbotada
A recepção possuía quatro luzes de teto para iluminar a entrada, mas apenas duas delas funcionavam, e o elevador estava interditado desde o primeiro dia.
Um velhinho de cabelos grisalhos estava sentada em uma poltrona do outro lado balcão de recepção fumando um cigarro e os observou quando entraram.
A fumaça do seu cigarro subia em círculos até o teto, impregnando a recepção com o cheiro.
Zen franziu as sobrancelhas enquanto olhava em volta.
Tinha mantido uma equipe de Anjos nas proximidades do apartamento para manter a segurança da Elena, mas ele mesmo não tinha visto o prédio ainda.
Era revoltante pensar que ela estava morando ali agora. Tinha quase certeza que se seu olho esquerdo não estivesse sobrecarregado ele poderia sentir a presença dos ratos caminhando por ali.
— Shadow. — A voz do Zen ecoou pelas paredes da sala de recepção mal mobiliada. A sombra embaixo dele oscilou por um momento. — Vasculhe o prédio.
A sombra oscilou novamente, dessa vez por um longo tempo.
A escuridão embaixo do Zen se assemelhava com águas negras e turbulentas, e delas emergiram dois braços que apoiaram as mãos no chão e começaram a erguer o restante do corpo como se estivesse saindo de uma piscina.
O homem também usava o manto negro e a máscara de metal característica do grupo de vilões, e quando saiu das sombras abaixo do Zen saiu caminhando em direção as escadas sem dizer uma palavra.
Mikey estava cansado e machucado, então decidiu que não esperaria de pé, caminhou até o balcão de atendimento e puxou um dos banquinhos velhos para se sentar.
O herói falou algo com o velhinho da recepção e os dois riram, o herói concordou com algo dito pelo senhor e acendeu o cigarro que ganhou do velhinho.
— Bom…eu vou deixar vocês… — Alex parou de falar e olhou para o Zen e para a Elena.
Não saberia dizer qual deles estava com o pior humor.
A garota cruzou os braços e olhava emburrada para qualquer lugar que não fosse o rosto do Zen, que por sua vez permanecia inexpressivo como sempre, mas parecia carregar uma aura sombria ao seu redor.
— Sozinhos… Vou pro cantinho dos fumantes…
Alex caminhou até a recepção e puxou um banquinho para se sentar ao lado de Mikey.
O velhinho estava conversando com Mikey sobre os inquilinos do prédio, e o herói observava e concordava com uma atenção que incentivava o velhinho a falar.
— …e aquele do quarto seis é o pior de todos. O pai quase nunca para em casa e quando aparece, tá bêbado e sempre com uma mulher diferente. O filho faz aqueles vídeos dançando pra internet e, só a Deusa da Realidade sabe como, ele faz muito dinheiro com isso. Mas coitado, o pai não deixa ele nem sentir o cheiro do dinheiro direito e já tá gastando com qualquer vagabunda que vê por aí…
— Posso pegar um? — Alex acenou para o maço de cigarro.
O velhinho lançou um olhar carrancudo para Alex e refletiu por um momento, como se ele estivesse perguntando se podia beijar a filha mais nova do homem.
Após um momento ele assentiu e empurrou o maço sobre o balcão. Alex pegou um cigarro do maço e o isqueiro enquanto o homem pigarreava e voltava a falar.
— Enfim, num vou te aborrecer com as reclamações de um velho.
— Que nada, isso não é problema algum. — Mikey gesticulou com a mão de forma despreocupada, fazendo a fumaça que saía do seu cigarro se contorcer. — Além disso, eu sou bom ouvinte.
O homem sorriu de forma satisfeita e pigarreou mais uma vez.
— O sinhô tá procurando um quarto? Esqueci de perguntar
Ele desviou o olhar na direção do Zen e da Elena, que finalmente resolveram conversar, apesar de ser uma conversa unilateral onde Elena falava e o Zen ouvia em silêncio.
Voltou a olhar para Mikey e, depois de tragar uma última vez seu cigarro e amassa-lo no cinzeiro, ele perguntou:
— O sinhô deve ser o irmão mais velho. Não temo muito luxo aqui, como pode ver, mas temo bastante vaga. Uma salinha pequena junto da cozinha, um banheiro e dois quartos, pode ser?
— Hummm…. — Mikey murmurou como se estivesse indeciso. — Acho que é o suficiente. Mas antes de falarmos sobre o preço, aqui entre nós…
Ele reclinou sobre o balcão e sussurrou:
— Cê não teria uma bebida para a gente dar uma esquentada?
O velhinho abriu um enorme sorriso no rosto.
— Claro, claro. Uma boa companhia pede uma boa bebida.
— E depois vamos negociar um bom preço. — Mikey sorriu.
O velhinho sorriu de volta e saiu caminhando, passando por uma porta atrás do balcão e sumindo para dentro do outro cômodo.
— Cara… — Alex soltou uma lufada de fumaça e olhou para Mikey. — É impressionante sua capacidade de fazer amizade com qualquer um.
— O velhinho estava com uma cara de tédio tão grande que eu achei que se não tivesse uma conversa o mais rápido possível ele morreria na posição em que estava. — Mikey riu, mas automaticamente pensou que era errado fazer aquele tipo de piada.
O homem aparentava ter quase um século e estava para morrer a qualquer momento. Mas pensar nisso só fez ele rir mais ainda.
Alex sorriu e colocou o braço apoiado no ombro do amigo enquanto observava o interior do cômodo onde o velhinho entrou, de onde era possível ouvir os sons dele revirando as coisas à procura da bebida.
— Bora fazer uma aposta. — Ele lançou um olhar animado para o Mickey. — Aposto vintão que ele vai sair lá de dentro com aquela pinga cor de mijo.
— Ele falou que traria uma bebida boa.
Alex sorriu e concordou com a cabeça. Os sons do cômodo cessaram e a luz do seu interior apagou.
— Vintão. O que cê me diz? — ele perguntou com urgência.
— Fechou — Mikey concordou e se virou para a porta do cômodo esperançoso.
Demorou alguns segundos para o velhinho sair de dentro do cômodo e em suas mãos ele carregava um barril de madeira.
Mikey comemorou e riu, Alex pegou uma nota de vinte reais no bolso e, a contragosto, entregou para o amigo.
— Aqui, vou servir ocês — O velhinho disse, pegando dois copos de alumínio e colocando sobre o balcão.
Quando o velhinho abriu a válvula do barril de madeira e despejou a bebida nos copos, Mikey praguejou enquanto Alex comemorava.
A bebida tinha um cheiro forte de álcool e possuía a cor amarelada.
Mikey enfiou a mão no bolso e retirou uma nota de vinte que ele juntou com a que havia acabado de ganhar e entregou para o Alex.
— Filha da puta sortudo do caralho.
Os dois riram e Alex empurrou Mikey, quase o derrubando do banco, que em resposta apenas riu e bebeu a bebida em seu copo.
Zen estava os observando, distraído, enquanto Elena falava, e suspirou desanimado. Olhou para a garota e viu a expressão de raiva em seu rosto.
— E então? — Ela cruzou os braços e o encarou.
— O que eu quero com seu pai, não é? — Zen repetiu a pergunta e lançou um olhar para as escadas do prédio, torcendo para que Shadow voltasse e ele não precisasse responder.
Isso não aconteceu, então ele voltou a olhar para a Elena.
— Ele me fez prometer que contaria tudo o que eu descobrisse sobre a sua mãe. Tenho informações novas para dar a ele.
Elena ficou muda por um momento. As vozes do Alex e do Mikey conversando ecoavam pela recepção, mas para ela soavam abafadas e indecifráveis.
Sentiu um misto de sentimentos surgindo em seu peito.
“Ele tem informações sobre a minha mãe?! Porque?! O que está acontecendo?! Isso tem a ver com o motivo do meu pai quase não ficar em casa desde aquele dia?”, ela pensou, sem saber a resposta para nenhuma dessas perguntas.
Mas na sua frente estava a pessoa que sabia.
Shadow se aproximou do Zen abruptamente e se ajoelhou no chão.
Elena não conseguiu ver de onde ele tinha surgido, mas quando olhou ao redor, para o cômodo repleto de sombras e escuridão — e se lembrou dos poderes dele — soube que ele poderia ter saído de qualquer lugar.
— O prédio está seguro, Senhor. Há um total de treze pessoas nele nesse momento, alguns dormindo e outros fazendo suas atividades noturnas, posso ser mais detalhado se quiser — o homem falou com a cabeça baixa.
A voz estava soando robótica devido a máscara mas ele possuía um sotaque tão forte que nem isso podia disfarça-lo
— Ótimo. Como está o quarto vinte e três? — Zen pergunta, e Elena sentiu um calafrio ao perceber que esse é o número do seu apartamento.
— Vazio, Senhor. Não há sinais de briga ou de algo do tipo, embora alguém pareça ter saído dali a algumas horas atrás — Shadow respondeu, ainda com a cabeça abaixada.
Zen assentiu de forma pensativa e olhou ao redor, prestando atenção mais uma vez nas paredes mal acabadas do prédio, na iluminação precária e na sujeira do cômodo.
Se virou para a Elena com seriedade quando falou:
— Avise para o seu pai que eu volto aqui em dois dias, mas se ele precisar falar comigo sabe como entrar em contato. Eu vou procurar um lugar melhor para vocês ficarem. Esse lugar está caindo aos pedaços.
O garoto se virou e chamou por Mikey e Alex, que a essa altura já estavam bebendo e rindo com o velhinho enquanto conversavam como se fossem amigos há longa data.
Mas quando o Zen os chamou, tanto Mikey quanto Alex se levantaram, despediram-se do velhinho e saíram andando em direção a porta do prédio.
Elena estava tão perdida em pensamentos naquele momento, que quando cogitou chamar Zen e exigir que ele lhe explicasse tudo o que ele estava falando, o garoto já estava saindo do prédio.
A garota pensou em correr atrás dele, mas o cansaço a atingiu abruptamente e de uma hora para a outra percebeu o quão exausta estava.
Sentia seus movimentos lentos, assim como seu raciocínio, e suas pálpebras pareciam pesadas. Percebeu que estava lutando contra o sono.
Passou a mão pelo tórax, sentindo uma dor fraca proveniente das costelas quebradas que ainda estavam se curando. Suspirou e se virou para subir as escadas.
Não queria explicações agora, queria apenas dormir e fingir que tudo não passava de um sono.
∆
As faixas em volta do seu corpo estavam grudadas com sangue seco e doeu para tirá-las, mas descobriu, durante o banho, que não possuía mais nenhum ferimento visível apesar do corpo inteiro gritar de dor a cada movimento.
Ela apoiou com as mãos na parede do banheiro e abaixou o rosto — deixando a água quente cair sobre a sua cabeça — e suspirou, fazendo gotículas d’água voarem de seus lábios.
Sentia-se exausta agora que toda a adrenalina abandonava o seu corpo.
Elena passou a mão pelo cabelo e a água se tornou um misto de sangue e sujeira no piso branco do banheiro.
Um calafrio percorreu seu corpo, e por instinto ela buscou abrigo debaixo da água quente do chuveiro.
Não queria pensar nas coisas que aconteceram e, acima de tudo, não queria pensar nele agora.
Por sorte o cansaço físico e emocional que sentia naquele momento era uma desculpa perfeita para ignorar seus pensamentos.
Desligou o chuveiro e foi se vestir.
Quando terminou de colocar o seu pijama e se olhou no espelho, percebeu que poderia muito bem fingir que nada tinha acontecido e seu pai provavelmente acreditaria.
“Ele não tem a telepatia da minha mãe para descobrir que eu vou estar mentindo”, ela pensou, e instantaneamente as lágrimas brotaram em seus olhos, uma pontada de culpa desabrochando em seu peito.
Respirou fundo e usou a camisa que estava vestindo para secar suas lágrimas, pegou um secador em uma bolsa sobre a pia no lavatório e começou a secar o cabelo.
Aproveitou esse tempo para relaxar com o vento quente do secador, e quando acabou foi para o quarto e se jogou na cama.
Ficou olhando para o teto e sentindo a maciez e conforto de sua cama. A tinta no teto estava descolando, a luz estava fraca e às vezes piscava.
Ela nunca tinha reparado naquilo até o Zen falar, mas o prédio realmente estava velho e caindo aos pedaços. Não tinha prestado muita atenção no apartamento desde que se mudou para ele quando a floricultura foi destruída.
Na verdade, o prédio poderia ser um apartamento de luxo, cinco estrelas, que não se compararia a sua casa.
Sentiu um aperto no coração e achou que estava prestes a chorar. Deixou escapar um longo suspiro e percebeu que tinha perdido completamente o sono.
Maria Helena amava as flores da loja, e dizia que nunca mais conseguiria morar em uma casa que não estivesse aromatizada pelo perfume delas.
Elena também se sentia assim, embora só tenha percebido isso agora… Agora que a floricultura — a sua casa e a sua vida — tinha sido destruída.
Uma lembrança aleatória veio a sua mente do nada.
Sua mãe estava atendendo uma cliente regular da loja que sempre fazia pedidos exorbitantes enquanto Elena e Zen estavam na entrada da loja conversando sobre um filme que Elena tinha mandado o garoto assistir.
Lembrou-se do garoto dizendo o quanto o filme era chato e irreal. Lembrava de rir dos comentários dele sobre cada cena.
Naquele dia foi a primeira vez que Elena viu um cliente sair insatisfeito da loja.
A mulher praguejou quando passou pelos dois garotos na porta e recebeu um olhar frio do Zen em resposta, o que a fez pedir desculpas na mesma hora e rendeu uma boa gargalhada para a Elena.
Quando a garota entrou na loja para perguntar à mãe o que havia acontecido, encontrou ela andando de um lado para outro furiosa enquanto organizava as flores e mudava elas de lugares o tempo todo, sempre insatisfeita com o resultado.
Quando a garota perguntou para a mãe o que tinha acontecido, ela disse, furiosa, que a Senhora Cardigã, a mulher que havia acabado de sair da loja, tinha feito uma oferta para comprar a loja.
Elena abriu um sorriso no rosto ao se lembrar do jeito que a mãe agia, como se aquela fosse uma proposta completamente insensata e ridícula. Nunca poderia se desfazer da sua floricultura.
Lembra da sua mãe ter contado o preço oferecido pela mulher, e ela rir e dizer que poderiam comprar uma floricultura ainda maior do que a deles e ainda poderiam ter uma casa separada da loja.
A mãe lhe explicou com veemência que a loja era seu legado e que não importava se ela era pequena ou não, ela nunca a venderia.
Maria tinha usado o dinheiro que juntou da época que era heroína para comprar a floricultura e reformá-la, e na época ela tinha feito aquilo como uma forma de escapar do sufocante mundo dos heróis.
Elena nunca tinha entendido o porquê da sua mãe gostar tanto da floricultura, até aquele momento.
Agora a garota sentia uma saudade imensurável da floricultura, como se apenas lá — e naquela época — ela pudesse respirar livremente e com tranquilidade.
A garota lembrou do sorriso no rosto da mãe quando disse que um dia aquela floricultura seria passada para ela, e que seria responsabilidade dela manter o legado da família vivo e bem regado.
Zen riu daquilo e da metáfora usada pela Maria, e disse que queria estar presente quando Elena tivesse que carregar adubo pela loja só para ver o estrago que a telecinese pode causar ao ser usada em merda seca.
Mãe e filha riram juntas e o chamaram de idiota quase ao mesmo tempo.
Agora Elena se revirava no colchão e abraçava o travesseiro, sentindo um nó se formar na garganta. As lágrimas fluíam de seus olhos molhando o travesseiro.
Estava frio e ela estava sozinha. Nunca tinha se sentido tão sozinha assim.
Abraçou o travesseiro com mais força e, em meio a soluços e lágrimas, ela não teve que se preocupar com quem a ouviria.
Estava sozinha agora, e ninguém podia ouvir ela chorando.