O Despertar Cósmico - Capítulo 46
Os segundos se tornaram horas e o passado se tornou o presente.
As primeiras memórias a surgir na mente do Zen foram os dias que passou sozinho, no primeiro ano depois que o Iluminus foi preso.
Sentiu o frio e a solidão daqueles dias. O medo e a incerteza de viver nas ruas, dormindo em becos e vielas ou em locais acessíveis apenas voando.
Caçava todos os vilões de que ouvia falar. Deixava um rastro de corpos e sangue por onde passava. Sempre tinha uma parcela do seu sangue, mas os vilões sangravam mais. E só uma vez.
Sentiu as cicatrizes ganhadas naquela época coçando em seu corpo.
Quando foi levado para o reformatório a sensação de solidão apenas aumentou. As crianças o temiam e, no melhor dos casos, se afastavam dele.
Até mesmo os adultos o temiam, mas desses ele recebia um tratamento mais violento, e nunca existia o melhor dos casos.
Mas aquilo só durou dois meses até que o Zen decidiu que não precisava aceitar aquilo. Era forte e bem treinado, podia fazer o que quisesse.
Depois disso ele nunca mais abaixaria a cabeça para ninguém.
As próximas memórias foram de quando conheceu a Jesse, e essas foram uma das piores memórias que reviveu.
As fugas do Zen eram imprudentes e desorganizadas. Ele era arrogante, confiava demais no seu treinamento e isso sempre havia bastado.
E com a Jesse as coisas sempre foram… intensas.
Ela era inocente… do seu jeito louco, mas inocente. E quando viu o Zen agindo logo ficou admirada, criando uma confiança inabalável nele e, por consequência, em si mesma.
Tinha prometido a si mesmo nunca mais usar o o poder do olho esquerdo, mas na terceira vez que levou a Jesse com ele foi preciso abandonar o orgulho e recorrer à herança que ele considerava uma maldição.
Enfrentando um vilão de Classe Alta conhecido como Fermentador, a Jesse ficou encurralada por um dos seus ataques e o Zen se viu obrigado a ativar seu olho.
Pensando de forma clara agora ao reviver aquela memória, ele poderia ter simplesmente trocado de lugar com a garota e talvez os dois tivessem saído ileso, mas no calor do momento tudo o que pensou foi em voar até ela.
A cicatriz em suas costas parecia queimar enquanto revia o momento em que era atingido pelo ataque, mas foi ver o ferimento no braço de Jesse, que mais tarde se tornaria uma cicatriz, que mais causou angustia no Zen.
As memórias do dia em que Sandman — o vilão de Classe Superior procurado em quatro países diferentes — foi recrutado ainda era uma das maiores batalhas que o Zen já travou, e ele soube disso ao revive-la novamente.
Ele tinha apenas quinze, enquanto o Alex tinha dezessete anos e um temperamento extremamente explosivo. Era claro que ele não aceitaria receber ordens de alguém mais novo que ele. Uma criança.
Mas Zen havia deixado claro para o Mikey e para a Jesse que eles estavam lá para recruta-lo, e não aceitaria que ele fosse morto.
Por causa dessas ordens eles lutaram durante uma semana inteira, sempre ficando ambos muito feridos ao final de cada encontro, a ponto do grupo do Zen não conseguir nem mesmo persegui-lo quando ele fugia.
Mas o Zen sempre acabava o rastreando, cedo ou tarde, e a luta que parecia interminável recomeçava.
Muitas pessoas morreram vítimas da destruição causada pela luta, e revivendo aqueles dias agora, essas mortes ainda eram seu maior fracasso, mas no fim de uma longa semana o Alex aceitou entrar para a Justice Angels e, a partir daquele momento, passou a ser chamado C4.
O dia em que enfrentou o Gama pela primeira vez também surgiu nos flashbacks. Dois Alphas morreram naquele dia. Dois amigos.
Danilo foi morto para eles poderem fugir após serem emboscados pela A Mão, mas Gama conseguiu os alcançar e acabou matando Saymon também.
Quando o Zen e Mikey o enfrentaram, eles nunca haviam encontrado alguém que conseguisse lutar contra a dupla que eles formavam. E Gama fez mais do que lutar, ele os humilhou, os esmagou completamente.
Eles ainda eram inexperientes se comparado ao ex-herói de Classe Superior. Foi sorte Jesse ou C4 não estarem lá, se não teriam sido mortos também.
Reviver o momento em que ele teve que implorar para que Gama não matasse o Mikey foi a pior das lembranças que reviveu.
Gama aceitou o pedido dele, mas deixou claro que aquilo nunca se repetiria novamente, que ele nunca mais pouparia nenhum amigo dele.
Zen viu a si mesmo se levantar todo machucado do chão, enxugar as lagrimas e prometer, tanto ao vilão quanto a si mesmo, de que nunca mais precisaria passar por aquilo novamente.
Quando as memórias se esvaíram e o Zen foi arrastado de volta para a realidade, percebeu que suas mãos se fechavam com tanta força na almofada do sofá que os nódulos dos seus dedos estavam brancos.
Ele respirou fundo para se acalmar, mas sentiu sua respiração oscilar, e precisou de todo o seu treinamento para domar seus sentimentos e impedir as lágrimas que ameaçavam escorrer de seus olhos.
Quando sentiu as mãos da Elena tocando seu rosto ele se sobressaltou, mas não recuou quando ela começou erguer seu rosto para ela.
Assim que seus olhos se encontraram, Zen prendeu a respiração, surpreso por ver as lágrimas que escorriam pelo rosto da garota.
Os lábios da Elena tremeram quando ela abriu a boca para dizer algo, mas, parecendo não encontrar o que dizer, ela voltou a fechar a boca e ficou em silêncio, fitando o Zen com angústia.
— Você viu? — a voz do Zen era quase um sussurro, e ele não precisava de uma resposta, a expressão no rosto da Elena já revelava o suficiente, mas mesmo assim ele aguardou ansiosamente por uma.
Elena apenas meneou positivamente com a cabeça e se ajoelhou na frente dele, retirando as mãos do seu rosto para segurar as dele.
Zen hesitou por um momento, mas quando Elena apoiou os braços nos joelhos dele, e gentilmente segurou as suas mãos, ele se permitiu aceitar aquele toque caloroso e segurou as mãos dela com firmeza.
— Eu não fazia ideia de que cê tinha passado por tanta coisa… — Elena começou a falar, mas parou quando viu o Zen discordando com a cabeça.
— Não faça isso, Elena. Não tenha pena de mim.
Ele olhava para ela com súplica, como se ao invés de pedir ele implorasse para que ela não fizesse aquilo.
— Você me odiar me destruiria, mas sua pena… com isso eu ainda sei lidar…
Ele desviou o olhar para as mãos unidas deles e respirou fundo antes de falar:
— Eu sou a porra de um psicopata. Não mereço sua pena.
— Não fala assim. Cê foi uma criança que passou por muitas coisas ruim, só isso.
— Talvez, mas isso não muda o que eu fiz. Não muda o que eu sou.
— Nada vai mudar o que você é. Mas agora eu entendo. Te criaram para ser assim.
Ela apertou as mãos dele com mais força, como se para dar ênfase no que estava dizendo.
— Quando eu estava aprendendo a voar, caí de uma altura de quase quinze metros e quebrei uma perna, depois disso sempre que fico em algum lugar mais alto do que doze metros eu travo de medo.
Zen abriu um sorriso fraco e pequeno no rosto, se lembrando do dia que Maria contou essa história para ele, mas não disse nada, dando espaço para ela continuar.
— É uma comparação boba, mas são duas coisas que nós aprendemos inconscientemente e não conseguimos ir contra. Faz parte do que somos…
Ela fez uma pausa para limpar as lágrimas. Percebeu que não tinha ideia do que falar, de como expressar o que estava sentindo. Mas sabia que a forma como Zen foi criado não definia que ele era.
— Não são as nossas vitórias que definem quem nós somos, são as nossas derrotas, pois essas são as que mais nos marcam, e cê já perdeu mais do que eu consigo imaginar, Zen — ela praticamente sussurrou cada palavra, enquanto se virava para o Zen
— Acho que eu sou uma péssima influência, você já está começando a falar igual a um livro de autoajuda. — Ele sorriu de forma brincalhona.
— Concordo que você é uma influência. Mas se vai ser má ou boa isso depende do que eu escolher aprender com você.
— Acho que você tá vendo as coisas pelo lado mais otimista.
— Fazer o que, né? Eu sou assim. — Ela deu de ombros despreocupadamente, o que arrancou uma risada do Zen.
— É, tem razão. Você sempre foi muito otimista quando está falando dos problemas dos outros… Mas eu achei que isso mudaria depois que você viu as minhas memórias.
— Eu não vi nada demais lá. Tudo que eu vi foi como você se esforçou para fazer do seu sonho realidade mesmo com os ensinamentos do seu pai e como cê tinha uma mãe que te amava muito.
O Zen conseguia ver o brilho no olhar da Elena enquanto ela falava, e sabia que ela estava sendo sincera. Sabia que ela tinha visto alguma memória que tinha realmente mexido com ela.
Mas nenhuma das memórias que ele viu teria deixado ela assim, e foi por isso que ele olhou para ela desconfiado e questionou:
— Do que você tá falando? Eu já disse que eu nunca vi a minha mãe antes. Não tenho memórias com ela para você ver dela.
— Não… Não foi isso que eu quis dizer. Estava falando daquela memória de você bebê que eu te contei no terraço… — Elena tentou passar o máximo de confiança, mas hesitou por um segundo e quando fez isso desviou o olhar para as próprias mãos.
Cada palavra dita depois disso era acompanhada por um pouco de insegurança e hesitação, além de batidas aceleradas de coração que somente o Zen escutava.
O garoto parou de ouvir o que ela dizia e começou a observa-la. Ela estava tensa, seus olhos estavam inquietos e ela tentava se forçar a encarar ele, como se quisesse convencer ele de que não estava mentindo.
Mas ela estava.
“Que irônico”, ele pensou, quase deixando transparecer um sorriso. “Eu, que sempre contei mentiras para ela, não estava preparado para lidar quando ela mentisse para mim.”