O Druida Lendário - Capítulo 15
Contemplar o horizonte metropolitano de São Paulo era, para Júlia, um lembrete diário do quanto sua vida tinha mudado desde o fim da Dark Age.
Ela tirou os olhos das nuvens e voltou sua atenção para a mesa do refeitório onde almoçava com seus alunos da Crows Academy, o programa de treinamento da organização Red Crows.
O grupo discutia os acontecimentos do treino da manhã e, vez ou outra, alguém puxava um assunto diferente. Uma garota de cabelo curto e óculos retangulares esticou o pescoço para perguntar à Júlia:
— Instrutora, como foi participar do mundial no ano passado?
— Foi incrível, e… muito frustrante também — Júlia respondeu.
— E como foi lutar contra a Seven Heavens? — perguntou um rapaz no canto da mesa.
A garota de óculos deu uma cotovelada nele, e o repreendeu:
— Quieto. Isso é pergunta de se fazer?
— Está tudo bem — Júlia tranquilizou. — O duelo contra White Snow foi um choque pra mim e o resto da equipe.
— Classes lendárias precisam ser proibidas. — A garota de óculos se revoltou: — Não é justo uma pessoa possuir uma classe exclusiva. Como é que vocês iriam saber o que um duelista pode fazer, vocês não tinham como praticar contra ele antes da semifinal.
Todos na mesa concordaram.
Júlia relembrou daquela fatídica luta. No final restava ela e Dante contra o duelista tido como o melhor do mundo. Eram as semifinais do campeonato, Brasil contra Coréia do Sul. Foi a primeira vez que o país chegou tão perto do título.
Mas tudo foi por água abaixo. White Snow era um monstro em movimentação, leitura de jogo e força bruta. Além da classe exclusiva, ele possuía uma das poucas armas da raridade “relíquia”, um item presenteado apenas aos vencedores do campeonato mundial, uma obra-prima superior a qualquer item lendário dentro do jogo.
Mesmo assim a Dark Age tinha se preparado à exaustão estudando as partidas anteriores da Seven Heavens.
Apesar das incontáveis horas de preparação, o sonho do título ruiu quando White Show matou Júlia e finalizou Dante em um 1v1. A frustração da derrota ainda pesava, a dor de ter decepcionado seu time era grande, e ainda machucava.
A lembrança do fracasso a deixou triste, e quando a garota dos óculos percebeu, tentou reconfortar:
— Instrutora. A culpa não foi sua, ele trapaceou.
Outra garota acrescentou:
— A gente te ama, você é nossa inspiração.
Os comentários de suas alunas eram tão bobos e fofos, mas tão sinceros, que Júlia não conseguiu conter o sorriso se formando em seus lábios, então ela agradeceu dizendo em tom de brincadeira:
— Amanda, Nathália, vocês só estão puxando meu saco para eu passar vocês duas no teste de hoje, não é mesmo?
A face das duas meninas enrubesceu, mas elas entraram na brincadeira e riram de si mesmas. Foi nesse clima bem humorado que o almoço prosseguiu até todos na mesa ficarem de barriga cheia.
Os garotos se reuniram e decidiram ir à sala de guerra, assim era chamado o lugar onde os times se reuniam para estudar táticas e estratégias de combate. Já as garotas foram à sala de treinamento para afiar suas técnicas de luta.
Júlia trouxe a caixinha de suco para perto da boca e sugou o restante da bebida pelo canudo, depois correu os olhos para as outras mesas do refeitório, já estavam quase todas vazias, então espiou o Cantinho da Soneca, uma área especial com puffs, tablets e uma estante de livros físicos para os integrantes da equipe relaxarem enquanto a comida desce.
Largado no puff azul estava o capitão do time principal, Cristiano Barbosa, folheando um livro de papel. Era o único da organização a se recusar a ler obras literárias em dispositivos eletrônicos, “É antinatural”, ele sempre dizia.
Júlia se levantou, caminhou até o Cantinho da Soneca, se largou em um puff castanho e cumprimentou Cristiano enquanto seu corpo era absorvido para dentro do puff.
— Boa-tarde, capitão.
Ele tirou os olhos da página do livro para encará-la, em seguida, soprou os longos fios de cabelo que cobriam seu olho esquerdo.
— Júlia… boa tarde? — Ele estranhou. — Não seria bom dia?
— Já passou do meio dia.
— É verdade. — Ele soprou os fios de cabelo mais uma vez.
Júlia tirou do bolso da calça-jeans um amarrador de cabelo, e falou antes de arremessar:
— Pega.
Mas o amarrador quicou na mão de Cris e voou para longe de seu alcance, o fazendo lamentar:
— Por que você faz isso comigo, Deus?
Logo se levantou e foi buscar o amarrador. Assim que retornou ao seu puff, falou:
— Então … tudo bem com você? Está conseguindo se adaptar a sua nova casa?
— Estou sim, obrigada por perguntar.
— E como estão nossos alunos da Academy? Já encontrou um White Snow em potencial entre eles?
Ela coçou o cabelo antes de responder com certa hesitação:
— Comparados às turmas anteriores, eles estariam um pouco atrás, mas vejo progresso em alguns deles.
— O contrato deles termina em algumas semanas, nós precisamos de jogadores reservas que possam se igualar aos titulares dos times secundários…
O que ele queria saber era claro, Júlia olhou para a mesa onde almoçou com seus alunos e relembrou da conversa que tivera com eles. Foi com muito peso no coração, que disse:
— Infelizmente, não. Todos ainda precisam de meses de treinamento.
— Eu sei como é difícil fazer o que você está fazendo, mas não tem jeito. Só podemos aceitar quem realmente tem potencial, seria desperdício de tempo e dinheiro investir tantos recursos em um jogador mediano, e se esse fosse o nosso objetivo, seria mais barato comprar um profissional em decadência ou que nunca se destacou.
— Eu sei disso.
Instaurou-se um silêncio desconfortável entre os dois.
— Lembra que a gente comprou o avatar do seu ex-namorado em um leilão?
— É claro, você me disse que o Gustavo iria usá-lo a partir de agora.
— Nós mudamos de ideia quando decidimos contratar você. Eu percebi o quão desrespeitoso seria ter um jogador usando o antigo avatar de Daniel perto de você. Então, para evitar complicações, a gente transferiu os equipamentos de Dante para a conta do Gustavo, depois, nós excluímos a conta.
Júlia ficou em choque, pois o avatar de alguém que fez história ao seu lado foi apagado do dia para a noite. Agora, a única memória de Dante seria o Martelo de Ametista empunhado por alguém que não o merecia, que o recebeu de mãos beijadas porque foi comprado por uma fortuna.
Ela se levantou, cerrou o punho, e se impôs:
— Como você permitiu uma coisa dessas?
Cristiano arregalou os olhos e estreitou os lábios antes de se justificar:
— A gente fez isso por você…
— Vocês não precisavam ter excluído a porcaria da conta. Vocês destruíram anos de história, como ousa dizer que fez isso por mim? — O tom de voz dela chamou a atenção dos funcionários limpando o refeitório.
— Aaa… — Cristiano balbuciou, tentando se levantar do puff.
Mas Júlia saiu furiosa do refeitório.
***
Estava para anoitecer. O treinamento da tarde chegou ao fim. Júlia saiu da cápsula de imersão e despediu-se de seus alunos. Foi preciso de muita força de vontade para não descontar neles a raiva que sentia de Cristiano.
Ainda estava inconformada por ele ter feito uma coisa daquelas. A última coisa que precisava naquele momento era ouvir as desculpas dele, por conta disso, caminhou pelo prédio da Red Crows tomando cuidado para não o encontrar no caminho.
Quando chegou em seu quarto, comemorou jogando-se na cama. O conjunto de roupas que vestiria naquela noite pendia em um cabide encaixado na porta do armário, mas por enquanto ela iria ignorá-lo, pois estava louca para ver o novo episódio da série Crônicas de Avalon, a série favorita de qualquer jogador ou entusiasta de Nova Avalon Online.
Como diz o nome, a série se passava no mundo do jogo, o enredo girava em torno das guerras entre os reinos. O título do episódio de hoje era “A Legião dos Mortos”. Júlia ficou animada só de ler o título.
Mas a campainha do quarto tocou durante a abertura da série. Irritada por ser perturba, foi até a porta e a abriu num puxão. Do lado de fora estava um homem de 1,96 metros de altura, com cabelo longo e escuro, preso por um amarrador roxo.
— Posso entrar? Ou, se preferir, a gente pode conversar em outro lugar… — ele falou, sua voz era naturalmente grave.
— Cris? — Ela ficou sem palavras. — Pode, pode entrar. — Então deu espaço para ele passar.
Ela fechou a porta. O nervosismo começou a aflorar. Por mais que não estivesse disposta a conversar com Cristiano, ele era seu superior.
— Eu vim me desculpar. Eu sei que foi desonesto da minha parte tentar fazer você acreditar que excluímos o avatar de Daniel para te agradar.
— Eu ainda estou zangada com vocês — ela falou, olhando no olho dele.
— Certo, você quer ouvir a verdade?
Júlia acenou com a cabeça.
— Eu juro, em nome da nossa amizade, que eu não tive nada a ver com a conta ser deletada, isso veio de alguém de cima — ele falou apontando para os andares superiores.
— Você está de brincadeira comigo…
Cris desamarrou o cabelo e devolveu o amarrador emprestado por ela.
— Eu juro, mas sabe o que realmente me incomoda? Eu fiquei sabendo que essa ordem veio de seu antigo chefe, o famigerado Ronaldo Emerich. Parece que agora ele faz parte da Virtual Realms.
— Impossível. — Júlia tapou metade da boca com a mão direita.
Cris virou-se para trás, na direção do televisor do quarto. Ao ver o que estava passando, sobressaltou.
— Merda, eu esqueci que hoje é dia de CdA. — Ele se levantou da cama em um pulo, e se despediu: — Júlia. Eu espero não ter estragado nossa amizade, eu admiro seu talento desde os nossos dias na Dark Age. Mal posso esperar para lutar com você ao meu lado mais uma vez.
Ele correu até a porta, esticou o braço e, quando estava para abrir a porta, Júlia falou:
— Certo, eu vou deixar essa passar batido.
— Obrigado, você não irá se arrepender, prometo. Agora preciso correr para não perder o episódio.
Júlia apontou para seu televisor, sugerindo:
— Ou você pode ficar e assistir.
— Maravilha.
— Mas você tem que ir buscar algo pra gente beber, e rápido, ainda está na recapitulação do último episódio.
Cris apontou para ela, querendo saber:
— Whiskey?
— Na mosca — Júlia respondeu com uma piscadela.
***
Passaram-se trinta minutos desde o início do episódio. As bochechas tanto de Cristiano quanto de Júlia estavam rosadas. Cada um segurava um copo meio-cheio do whiskey irlandês escolhido pelo capitão do time, a garrafa agora repousava sobre a cabeceira da cama.
Cris estava sentado numa poltrona, com os pés apoiados sobre uma bola de yoga. Júlia, que estava sentada em sua cama, virou o rosto corado na direção dele, para perguntar:
— Eu sempre quis saber de uma coisa…
— Já sei! — Cris falou em voz alta, erguendo o copo, quase fazendo a bebida vazar. — Você quer saber se os boatos de minha saída são verdadeiros.
— Nossa, Cris, você é muito inteligente — ela disse com um sorriso idiota no rosto.
— É TUDO verdade! — Cris balbuciou. — Eu saí porque não aguentava mais aquele Richard de Carvalho, capitãozinho de merda, que cara nojento, NO-JEN-TO DE-MA-IS. — Pontuou cada sílaba com força.
Júlia se arrastou até a beirada da cama, e fez outra pergunta:
— Você realmente chorava depois dos treinos?
A face de Cristiano enrubesceu para uma tonalidade mais forte. Ele hesitou por um momento, mas respondeu com uma seriedade destoante de seu nível alcoólico:
— Algumas vezes. Richard queria me transformar em uma máquina de combate. Só que, por mais que ele me forçasse a treinar 16 horas por dia, eu não conseguia atender as expectativas.
— Então aquela vez que você foi pro hospital…
— Consequências do excesso de treino. Naquela época era comum eu vomitar de estresse e cansaço.
— Eu lembro… — Em um estalar de dedos Júlia voltou para si, ela levou às mãos à boca, e suplicou: — Meu deus Cris, me desculpe.
Cris balançou o copo em sua mão, agora quase vazio, e respondeu despreocupado:
— Passado é passado, o importante é que os três prodígios superaram o mestre.
Júlia ergueu seu copo, e eles brindaram. Desde então, ambos pararam de beber para prestar atenção no episódio de Crônicas de Avalon. A tela exibia uma multidão de soldados mortos-vivos, ressuscitados por necromancia, eles marchavam sobre uma estrada de chão batido.
— Cara, me deu até um frio na barriga — Cris falou quando apareceu na tela um sujeito em vestes escuras e suntuosas, mas esfarrapas, sua face cadavérica sorria na direção dos telespectadores.
— Credo, que coisa horrorosa — Júlia resmungou.
A câmera se afastou da face da criatura e pairou sobre uma cidade conhecida, de muros altos e escuros.
— Eu conheço esse lugar — Júlia sussurrou baixinho. — É a cidade de Salem.
— É mesmo.
Cristiano voltou-se para ela, e ordenou com um sorriso confiante no rosto:
— Eu quero você reúna sua turma para um longo treinamento naquela cidade. — Terminou apontando para a tela.
***
O professor se levantou da mesa, recolheu seu material da mesa, e anunciou à classe:
— Aula encerrada, pessoal. Não esqueçam do seminário na semana que vem. Boa semana a todos.
A turma do quarto semestre de arquitetura comemorou o fim de mais uma manhã de aulas. Nicole guardou suas coisas na bolsa e dirigiu-se para fora da sala de aula.
O sono a fez bocejar, o cansaço era resultado das horas treinando golpes com sua assassina em Nova Avalon Online, mas ela não se sentia arrependida, pelo contrário, contava os minutos para chegar em casa e terminar os deveres de casa para entrar no mundo virtual o mais cedo possível.
Ao descer a longa escadaria ela avistou uma figura conhecida sentada em um dos bancos de madeira no jardim da universidade. Ela acelerou o passo e sentou ao lado do rapaz de cabelo castanho cacheado, imerso no próprio mundo, usando um fone de ouvido sem fio e com olhos vidrados na tela do celular em sua mão direita.
— O que você está assistindo? — ela perguntou, espichando o pescoço para tentar ver a tela do aparelho.
O garoto tremeu de susto ao ser puxado de volta ao mundo real. Ele retirou o fone do ouvido esquerdo, se aproximou dela, virou a tela do celular para ambos poderem ver, e então disse:
— Dá só uma olhada nesse cara, ele era o melhor cavaleiro do mundo.
Nicole espiou o título do vídeo: “Dante – Melhores Momentos – Um Tributo ao Melhor do País“. Ela esticou o braço e tomou o fone de ouvido esquerdo das mãos dele.
— Niki! — ele resmungou.
— Artur, deixa de ser fresco.
Ela se aproximou até seus braços encostarem.
— Aaah, eu conheço esse cara. — Nicole se exaltou. — Ele vivia aparecendo em tudo que era lugar. Parece que ele brigou feio com todo mundo da equipe, e até agrediu fisicamente um jogador do time. Esse Dante não passa de um babaca megalomaníaco que se achava o fodão porque era considerado o melhor do país.
Artur continuou quieto, seus olhos refletiam o brilho da tela do celular, parecia triste por algum motivo. Nicole questionou:
— Aconteceu alguma coisa?
— Minha inscrição na Crows Academy foi negada, disseram que minha idade é incompatível com o programa de treinamento.
Niki pousou a mão direita no ombro dele e tentou reconfortá-lo:
— Mas você tem 22 anos.
— Para eles eu sou velho demais. — A voz de Artur era carregada com o desprezo entalado dentro de si.
— Mas há milhares de profissionais acima dos trinta jogando em campeonatos.
— Eu sei. É isso que me deixa frustrado.
— Não fique assim. Logo a gente vai ficar forte para competir em torneios amadores. Vai dar tudo certo. Quando você menos esperar a gente vai estar chutando as bundas desses babacas da Red Crows.
— É fácil pra você dizer isso. Você logo vai se formar nessa droga de universidade, enquanto eu… eu vou reprovar até largar o curso de vez.
— Eu posso te ajudar se você tiver dificuldades em alguma matéria de cálculo.
— Obrigado…
A expressão abatida na face de Artur foi se desfazendo até surgir um otimismo radiante. Nicole esboçou um sorriso que o contagiou.
— Vamos jogar hoje? — ela perguntou.
— Claro, a gente precisa alcançar o nível 20 antes daquele druida.
— Ele é uma figura, né?
— Eu acho que ele é um daqueles gênios malucos. — Artur respondeu. — O cara é muito bom, mas pra compensar, joga de druida.
— Não é? Ele deve ser um sadomasoquista — Nicole ria enquanto falava.
— Vai ser ótimo ver aquela soberba toda se tornar nosso curandeiro particular.
— É verdade. Está cada vez mais difícil achar um curandeiro pra jogar com a gente.
— E se… ele ganhar? — A expressão de Artur ficou séria.
— Não quero nem pensar nisso — Nicole respondeu, fazendo o sinal da cruz.
Artur se levantou do banco, ajeitou a mochila nas costas, e falou:
— Meu ônibus deve chegar a qualquer momento…
— Eu te acompanho até o ponto, eu moro perto daqui.
Ele aceitou a proposta, e, juntos, caminharam até o ponto de ônibus. O lugar estava abarrotado de outros estudantes, a maioria reunia-se em grupos que, além de discutir sobre as aulas e as festas vindouras, também conversavam sobre Nova Avalon Online. Artur se manifestou:
— Meu ônibus está chegando.
Ele se dirigiu até a beira da calçada. Nicole o puxou pela manga.
— O que foi? Eu tenho que ir pra casa… — Artur protestou.
Mas se espantou com o olhar determinado da amiga, que falou:
— Vai dar tudo certo, não desanime.
Por algum motivo aquelas palavras lhe trouxeram um pouco de paz.
— Obrigado, de verdade, mas agora eu realmente preciso ir.
E ela se despediu:
— Mande uma mensagem dizendo quando puder estudar cálculo.
Ele fez um sinal de positivo antes de subir no ônibus, que logo arrancou rumo à próxima parada. Nicole permaneceu com os pés sobre o meio fio da calçada, olhando o ônibus sumir no horizonte.
— Vai dar tudo certo, camarada — disse entre suspiros.
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