O Druida Lendário - Capítulo 4
Escondido atrás do tronco de uma árvore, Ragnar espiava as cinco criaturinhas em frente à entrada do covil. Eram goblins, cada um medindo um metro de altura. Todos empunhavam armas pequenas e afiadas.
O druida avançou sem fazer barulho quando as criaturas verdes se distraíram com o soltar de um peido. Eles riram, se empurraram e apontaram o dedo para o outro em busca de um culpado.
Ragnar ficou a vinte metros da entrada, mas os goblins se separaram, cada um foi para um canto diferente. Um fedor conhecido invadiu seu olfato, provocando um pensamento:
Merda de desenvolvedores desocupados, aposto que recriaram o cheiro de peido só para me sacanear.
O mal cheiro não apenas continuou a atormentá-lo, mas ficou mais forte. Ele ouviu passos, seguidos de um resmungar proferido na língua dos goblins.
— Desgraçado! — praguejou ao saltar sobre o goblin peidão.
A criaturinha verde cambaleou para trás. O susto o paralisou, fazendo dele um alvo fácil para a flecha disparada por Skiff, oculto em uma moita não muito longe dali.
O goblin mais próximo correu na direção do druida. Ragnar apontou a lança, conjurou um Raio e viu centenas de fagulhas azuladas convergirem na ponta da arma. A energia acumulada estalou em uma descarga elétrica que pulverizou o peitoral do pequeno goblin, matando-o na hora.
Os quatro goblins ainda vivos o cercaram. Alguns ameaçaram avançar gesticulando suas armas.
Ragnar captou a movimentação de um arrastar de pezinhos sobre as folhas da floresta. O goblin sorrateiro veio pela esquerda. O druida girou o corpo e guiou a ponta da lança rente à grama, o golpe cortou as canelas verdes do goblin, que tombou para frente enquanto os demais cúmplices avançaram com feições de ódio no rosto.
Ragnar se preparou, trouxe a lança até o peito e a bateu no chão com a outra ponta. Três raízes brotaram entre as folhas a tempo de se enrolarem nos pescoços dos goblin.
Com três alvos imobilizados, Skiff se concentrou, estabilizou a mira e começou a alvejá-los com disparos de flechas.
Ragnar procurou pelo último goblin com sua visão aprimorada de druida, mas não encontrou rastro algum dele. Não querendo perder tempo, voltou-se para os goblins imobilizados. Dois deles tiveram seus peitos cravejados em flechas. Faltava um para ser executado, mas quando Ragnar foi terminar o serviço, as raízes afrouxaram e se recolheram para dentro do solo.
O goblin sobrevivente o encarou com amargura em seus olhinhos. Em suas mãozinhas ele segurava uma pequena foice enquanto a tanguinha que cobria as partes íntimas balançava no compasso de sua dança debochada.
Ragnar não caiu na provocação, em vez disso, assumiu uma postura defensiva e iniciou a conjuração do Raio. O goblin brandindo a pequena foice continuou dançando.
Há poucos instantes do fim da conjuração, Ragnar, captou um grunhido vindo de trás. Ele deu uma meia-volta, o goblin desaparecido saltou de uma moita empunhando uma faca, mas o druida reagiu a tempo, o atingindo com a coronha da lança. O goblin caiu de costas no chão enquanto o outro aproveitou para avançar.
Ragnar virou-se de novo, a ponta energizada da lança estalou, o raio chispou, atingindo o alvo em cheio. Ele se aproximou daquele que tentou apunhalá-lo por trás e o executou com uma perfuração no coração.
Os cinco goblins estavam mortos, os corpos verdes e ensanguentados agora decoravam a entrada do Covil das Serpentes. Graças ao talento Visão Além do Alcance, Ragnar detectou vestígios de uma batalha anterior a sua.
Pelo montante de terra revirada e pela profundidade das pegadas deixadas, um grupo de três ou quatro pessoas batalharam previamente contra uma guarnição. Era provável que se tratava do grupo de druidas enviado ao covil.
— Ragnar — Skiff o chamou. — Olha só essas flores. — Ele apontava para um canto do bosque repleto de uma espécie de planta de folhas arroxeadas.
O druida agradeceu por já ser iniciado em Herbalismo. Ele se agachou, equipou a faca de coleta comprada no santuário e cortou uma daquelas plantinhas.
Espectro de Orquídea coletado com sucesso
Ele abriu o inventário, selecionou a planta recém-coletada, e analisou sua descrição:
Espectro de Orquídea |
Uma das plantas pertencentes à família das Orchidaceae. Essa rara derivação arroxeada é conhecida por seu alto teor psicotrópico capaz de alterar o senso perceptivo de quem consumi-la. Muito usada na alquimia e em rituais antigos. |
Intrigado pelas características da planta, ele coletou todas as orquídeas nas redondezas. Levou quase meia hora para limpar o local, totalizando 24 unidades de Espectro de Orquídea em seu inventário.
Satisfeito com a coleta, Ragnar e Skiff caminharam até uma fenda em um paredão de rochas esverdeadas.
— Essa é a entrada? — perguntou o caçador.
Ragnar confirmou com a cabeça, e entrou. Skiff entrou logo em seguida.
A abertura era alta, mas estreita, fazendo eles se contorcerem para avançar alguns poucos passos. Mesmo sendo um druida possuidor da Visão Além do Alcance, a ausência de luz o impedia de se ajustar ao formato da passagem com antecedência.
Foi depois de avançar mais de quinze metros que ele se recordou de um feitiço recém-adquirido.
Espremido entre as paredes rochosas, Ragnar estendeu sua lança para frente e conjurou o Fogo Fátuo. A ponta da arma irradiou uma luz esverdeada que clareou a estreititude do caminho antes obscuro.
Agora confiantes, eles avançaram mais de cem metros até vislumbrarem um pontinho de luz longínquo. Ragnar sorriu, o fim da travessia estava próximo.
O túnel desembocou em uma pequena câmara circular sem teto, mas toda a felicidade se esvaiu ao perceberem que mais escuridão os aguardava na passagem subsequente.
Antes de prosseguirem eles pararam para analisar a câmara onde estavam. Skiff captou um rastro sutil de coloração rubra. Ele caminhou até a parede e confirmou suas suspeitas:
— Estranho… parece sangue.
Ragnar analisou o local em busca de mais pistas, mas não havia nada além do chão e das paredes esverdeadas. Ele se concentrou e varreu cada centímetro com seus olhos.
— Bingo! — O druida comemorou ao encontrar um pequeno túnel camuflado na altura do chão. Ele se abaixou e apontou a lança brilhando contra a entrada, mas a luz do Fogo Fátuo não clareou o suficiente para ver o que havia nas profundezas da pequena passagem.
— Mas que perda de tempo — Ragnar resmungou, decepcionado.
Ele se levantou, pronto para seguir covil adentro, mas antes que pudesse sair da câmara, um ressoar de chocalhos congelou sua espinha.
Ao olhar para trás, dez cobras vermelhas e pretas desceram pela abertura no teto, enquanto uma serpente alaranjada surgiu do pequeno túnel que havia descoberto.
As línguas bifurcadas das cobras sibilaram em ameaça. As caudas chacoalharam, provocando um ruído agudo e irritante, que afligiram os aventureiros com um efeito enfraquecedor.
Eles tentaram correr para dentro da caverna, mas as pernas não responderam aos estímulos cerebrais como deveria. As serpentes rastejaram até se aproximarem.
Não havia escapatória para os dois, por um instante, Ragnar sentiu que a única saída seria lutar, mesmo que seu subconsciente gritasse que estava acabado. Não havia chance de vencer tantas cobras. Ele guardou a lança e fechou olhos, esperando por um milagre.
O chiado dos chocalhos cessou. O sibilar das línguas parou. E, com toda a incerteza e insegurança do mundo, o druida abriu os olhos e deparou-se com a cobra de escamas alaranjadas. Ela era longa, metade de seu corpo encostava no chão enquanto a outra mantinha-se erguida, para encará-lo.
Ragnar respirou fundo, tentou pensar em como se safar dessa situação, mas ele avistou algo fora do comum, havia um terceiro integrante na janela do grupo. Além de si mesmo e Skiff, tinha uma cobra, representada pelo nome de sua espécie: Rastejante Imperial.
— Abençoado seja o talento Amigo da Selva! — Ragnar agradeceu erguendo os braços para cima.
— O que houve? Por que ela não atacou a gente? — Skiff perguntou.
— É um talento da minha classe. Ele faz com que animais lutem ao meu lado como integrantes grupo, mas eu não entendo exatamente como isso funciona.
Eles se acalmaram. A serpente amiga veio rastejando para o lado do druida enquanto as menores voltaram para a câmara, o que provocou o seguinte pensamento em Ragnar:
Não é por nada que a classe mais subestimada desse jogo tenha jogadores tão apaixonados.
Ele empunhou sua lança, conjurou o Fogo Fátuo e virou-se para o amigo rastejante.
— Está na hora de descermos ao covil da sua espécie.
A cobra ergueu a cabeça e sibilou a língua.
Durante a caminhada, Ragnar leu a descrição detalhada da cobra que o acompanhava. O motivo por trás do nome Rastejante Imperial vinha do fato de elas liderarem um conjunto de cobras menores, o que justificava a subordinação das outras serpentes a ela, mas isso o deixou indignado, porque todas as Cobras-Reais não seguiram sua líder depois dela entrar em seu grupo.
— Seria muito foda andar por aí com onze serpentes me protegendo. — Sonhou em voz alta, percebendo o quão roubado isso seria.
Após dez minutos vagando, um estalo longínquo reverberou pela caverna. Ragnar estremeceu e apontou a lança reluzente para frente. Skiff se aprontou para um disparo. A cobra se enrolou em preparação para um bote.
Outro estalo foi ouvido, seguido por um rugido bestial.
— Vamos nessa, senhor Plissken! — ele incitou seu companheiro de caça cujo nome acabara de bolar.
Eles avançaram pelo covil. A cada passo os estalos e rugidos ficavam mais fortes e discerníveis. Depois de fazerem uma virada abrupta, a luz do sol projetou-se de uma esquina a pouco mais de doze metros.
Ragnar girou a lança, desconjurou o Fogo Fátuo para poupar sua mana e prosseguiu até a saída junto de seu grupo.
A luz do sol ofuscou a visão dele e de Skiff. Senhor Plissken, a cobra amiga, estava ao seu lado, chacoalhando a cauda e mostrando a língua para aqueles que batalhavam em uma arena circular logo à frente.
— Garotos, me ajudem! — gritou um cavaleiro em armadura de placas.
Ragnar ergueu a lança e preparou a conjuração da Brisa Curativa. Ao ver que seu companheiro rastejante estava parado, ordenou:
— Senhor Plissken, ataque! — A cobra avançou, cravando suas presas na perna do gigante que lutava contra um cavaleiro.
— Miiiinhooooca maaalvaaada… — lamentou o gigante de feições cadavéricas.
A conjuração de Ragnar ficou pronta, ele mirou o feitiço curativo no cavaleiro. A brisa invocada emanou de sua mão e atravessou o campo de batalha, atingindo o alvo e curando-o 8% dos seus pontos de vida.
O cavaleiro protestou:
— Só isso? Que cura tosca é essa?
Ragnar bateu com a lança no chão e o encarou com uma expressão cansada. Cinco segundo depois, a cura restaurou mais 5% de vida do cavaleiro, que disse:
— Cura intermitente… Entendi. Foi mal.
A conversa terminou quando o gigante de pele cinzenta e decomposta recobrou seus sentidos e rugiu furioso:
— Inimigos de Mergraff, morram!
— Quê? O que vocês fizeram? — Ragnar perguntou enquanto o cavaleiro desviava do golpe de tacape desferido pelo gigante.
— Não está vendo que estamos lutando? Que tal ajudar?
— Primeiro me adicione no grupo, depois eu ajudo. — Ragnar assoviou para seu amigo escamoso. — Senhor Plissken, volte para cá.
A cobra serpenteou pelo chão até retornar ao seu mestre.
— Merda de druida mercenário! — resmungou o cavaleiro enquanto recuava.
Uma mensagem chegou para Ragnar.
Artic o convidou para se juntar ao grupo
— Obrigado. — Mas ao aceitar o convite, viu que havia outra pessoa naquele grupo.
— Niki, faça alguma coisa! — Artic gritou quando o gigante veio em sua direção.
Ragnar girou a lança e iniciou a conjuração de um Raio, mas antes que o feitiço ficasse pronto, um vulto escalou os três metros do inimigo e cravou uma adaga na lateral do pescoço desprotegido. O gigante cambaleou para frente e para trás, tentando tapar o buraco recém-aberto por onde jorrava sangue.
— Senhor Plissken, ataque — Ragnar ordenou. A cobra avançou, e cravou suas presas na coxa da criatura depois de um raio atingir o oponente. — Vão para cima dele! — disse tanto para os estranhos quanto a Skiff, que permanecia parado, olhando.
Artic, o cavaleiro, desferiu seu mangual repetidamente contra o rosto do gigante tombado no chão. A assassina o escalou mais uma vez, ajoelhou-se sobre as costas dele e o apunhalou.
Ragnar saltou para frente, transformando-se em urso, e utilizando-se da força animal para dilacerar o flanco do gigante com patadas poderosas.
A vida do inimigo chegou aos 20% antes de se erguer e entrar em frenesi, golpeando enfurecidamente tudo que estivesse próximo.
Nikki, a assassina pendurada no pescoço do gigante, foi lançada para trás, caindo de costas e tomando uma grande quantidade de dano que a deixou com 15% de vida. Artic, entretanto, conseguiu recuar, sofrendo apenas um safanão vindo da mão desarmada do oponente.
— Cavaleiro, você precisa se curar — Ragnar sugeriu, irritado por estar com pouca mana.
— Eu não posso, não tenho mais poções — ele retrucou erguendo o escudo para bloquear um golpe.
O choque produziu um estrondo. O bloqueio reduziu os pontos de energia do cavaleiro para 10% do total. Enquanto isso, a assassina não conseguia se aproximar por conta da movimentação imprevisível do gigante zumbi, que balançava seu tacape às cegas.
Era arriscado se aproximar. O único integrante do grupo com uma arma de longo alcance era Skiff, mas as mãos dele tremiam, fazendo-o errar metade dos disparos contra um inimigo enorme.
— Skiff, você precisa se acalmar — Ragnar disse em voz alta. — Respire fundo e dispare quando ele terminar um de seus golpes.
Mas o caçador não lhe deu ouvidos e continuou desperdiçando flechas.
Ragnar poderia ficar conjurando raios de uma distância segura, mas isso drenaria sua mana por completo, o impedindo de exercer o papel de curandeiro. Ao ver que seu amigo escamoso estava perdido no campo de batalha, ele teve uma ideia.
— Senhor Plissken, venha até mim.
A cobra rastejou até ele.
— Ei, seu sem noção! — A assassina o repreendeu. — Agora não é hora de… — E emudeceu ao ver Ragnar enrolar a cobra até ela parecer uma bola de basquete. — Quê? — Foi tudo que saiu dos lábios dela.
— Seja lá o que for fazer, faça logo! — o cavaleiro implorou ao desviar de um ataque do gigante zumbi, que chorava e urrava enfurecido.
O druida respirou fundo, e falou:
— Senhor Plissken… estou contando com você. Por favor, se prenda àquele gigante e mostre a ele quem manda. — Então segurou a cobra com as duas mãos, recuou para trás e a arremessou com toda sua força.
Os aventureiros acompanharam a trajetória da bola-feita-de-cobra. Ela se chocou contra a lombar do gigante, caindo no chão, mas já se enroscando na perna direita dele. Ao se prender, a serpente mostrou suas presas e abocanhou a nádega direita dele.
— Aaaiii… isso dói… — choramingou o gigante zumbi.
Os três não conseguiram conter a risada ao ver que o plano do druida dera certo. A fúria do gigante foi quebrada. Ragnar se aproveitou e invocou mais um raio, as faíscas convergiram na ponta da lança e ele a arremessou antes da conjuração terminar. Então se transformou em urso e avançou em disparada.
Enquanto isso, a lança arremessada foi de encontro à barriga do gigante, perfurando-o no momento exato que a conjuração do raio chegou ao fim, estourando o interior do inimigo e lançando centenas de faíscas no local da perfuração, atordoando-o na hora que Ragnar chegou para dilacerá-lo com suas patas de urso.
Niki e Artic partiram para cima.
A vida do gigante morto-vivo zerou, uma mensagem surgiu para os quatro jogadores:
Gigante Zumbi derrotado
— Trinta rubros… nada mal — disse Artic.
— A experiência também foi boa — completou Niki.
Os dois encaram o druida, seus olhos denotavam suspeitas.
— Você joga bem demais para alguém no nível 5. Essa conta sua é secundária? — Artic quis saber.
Ragnar se agachou, assoviou para a serpente e aguardou ela retornar ao seu lado antes de responder à pergunta:
— Não. Essa não é uma conta secundária. Sou apenas um veterano de VRMMORPG.
Niki bufou antes de falar:
— A gente também é.
Ragnar retrucou:
— Mas eu não saio acusando os outros de jogarem numa conta secundária!
— Ei! — Artic interveio. — Se a gente achou que essa conta sua era secundária, foi por causa do combo: Raio + Arremesso de Lança + Transformação Animal.
— Foi mais criatividade do que habilidade — Niki sugeriu.
— Obrigado — Ragnar agradeceu escondendo o rancor do desmerecimento.
Ele se virou para Skiff:
— Aconteceu alguma coisa?
— Eu meio que… surtei. — O caçador desviou o olhar.
Ragnar estranhou a resposta.
— Mas você lutou bem contra o taverneiro e aqueles goblins na entrada.
— Eu sei, mas é que… — Skiff coçou o antebraço. — Isso não vai acontecer de novo, prometo.