O Druida Lendário - Capítulo 9
A primeira semana no escritório de contabilidade chegou ao fim. Daniel ficou abismado de como o expediente lá era corrido, todo mundo vivia apressado e parecia estar prestes a descontar o estresse reprimido no primeiro infeliz que lhes dirigisse a palavra.
A exceção foi Samara, sua mentora dentro do escritório. Ela o ensinou a mexer nas ferramentas com a paciência digna de uma santa.
Mas Daniel sentia-se frustrado com a dificuldade que teve ao aprender tudo que deveria fazer. Foi necessário que Samara repetisse cada novo procedimento até entrar em sua cabeça. Por isso, sentia que nunca iria se adequar àquele ambiente.
Como era esperado, o trabalho o fez ter pouquíssimo tempo livre durante a semana para gastar em Nova Avalon Online. Ele passava parte do expediente pensando no jogo, bolando maneiras para subir e obter itens melhores.
Foram essas ponderações que o fizeram perceber o quão difícil seria vencer a aposta firmada com Artic e Niki. Não haviam dúvidas de que eles tinham mais tempo livre para subir até o nível 20.
Mesmo com tantas preocupações martelando em sua cabeça, Daniel sentia-se aliviado por ser noite de sexta-feira. Agora teria tempo de pôr em prática algumas das ideias que bolou durante o expediente.
Porém, havia algo mais importante a ser feito no fim de semana: encontrar-se com o contato misterioso nas coordenadas X:1500 Y:300 Z:700. Daniel foi até sua cápsula de imersão, se acomodou, e entrou no jogo.
***
Ragnar estava em uma estrada próxima ao lugar onde ele e Julie se viram da última vez. De onde estava era possível discernir a muralha da cidade de Bremer, mas conforme indicava as coordenadas no mapa, aquela não era a direção que precisava ir.
Antes de Partir em viagem, ele alterou seu status na lista de amigos para invisível, dessa maneira, Skiff, que estava online no momento, não entraria em contato caso o visse online. O problema era que realmente gostaria de convidar o amigo para participar da aventura, mas essa era uma jornada que deveria trilhar sozinho.
Pela longa estrada de terra Ragnar caminhou na direção sul. Em seu caminho surgiram aventureiros, guerreiros e comitivas comerciais. Mas quando caminhou sobre uma longa ponte de madeira, ele sentiu uma fortíssima pontada nas costas.
O impacto foi repentino e forte ao ponto de quase derrubá-lo no chão. A adrenalina aflorou em seu corpo. O druida empunhou sua nova lança, a Perdição da Víbora, e assoviou para invocar Lady Plissken, a serpente companheira.
— Pega! — ordenou apontando para o arqueiro.
Ele observou as extremidades da ponte e tentou captar algum ruído além dos gritos do caçador. Baques de algo se chocando contra madeira ressoaram baixinho, cada batida era mais alta e clara que a anterior.
Ele precisava agir, e rápido, então preparou um feitiço na mão esquerda e, com a direita, estocou a lança para frente, perfurando apenas o vento, depois desferiu um golpe com a palma da mão visando o flanco esquerdo.
No momento exato que a mão tocou algo invisível, raízes brotaram de baixo da ponte e agarraram o assassino que tentou se aproximar utilizando sua invisibilidade.
Ragnar hesitou um momento, pois viu que Lady Plissken estava quase morrendo, a barra de vida estava abaixo de 10% do total. Um plano surgiu em sua cabeça, ele assoviou para tirar a serpente da batalha.
Agora o arqueiro estava livre para fazer o que quisesse, ele puxou uma flecha da aljava e a encaixou no arco. Enquanto isso, Ragnar transformou-se em serpente para enrolar-se no assassino ainda preso em suas raízes.
Com seus olhos de serpente ele encarou sua presa. O nome da guilda Pata Negra ficou visível ao inspecioná-lo. Ragnar aplicou toda sua força para esmagá-lo. Ouviu-se apenas um grunhido agoniado antes do corpo ir ao chão.
O druida voltou a sua forma humana, mas ao se virar, o arqueiro estava longe demais para cogitar uma perseguição, ele corria como uma galinha.
Ragnar respirou fundo e tirou um minuto para descansar sobre a ponte. Como Lady Plissken estava muito ferida, iria levar algumas horas até se recuperar e voltar à ativa.
Ele consultou o mapa mais uma vez e comemorou ao ver que estava próximo do ponto de encontro. Com um sorriso no rosto ele deixou a ponte e caminhou por uma trilha estreita em direção à montanha.
Haviam rochas por todo lugar, no começo foi necessário se equilibrar entre uma e outra, até lembrar que havia um jeito mais fácil de atravessar esse tipo de terreno.
Mais uma vez, ele transformou-se em serpente. Nessa forma conseguiria se esgueirar entre as pedras mais pontiagudas, porém, agora não teria mais a visão de um ponto de vista elevado.
Em pouco tempo ficou claro que as vantagens superavam as desvantagens, pois em questão de minutos chegou numa plataforma lisa de pedras cinzentas.
Por algum motivo as coordenadas indicavam que ele deveria estar dentro da montanha, e não sobre uma rocha. Ragnar tentou recordar as mensagens recebidas pelo ser misterioso, uma delas mencionava que deveria aprender a habilidade Fogo Fátuo.
De certa forma o Fogo Fátuo o ajudou na incursão ao Covil das Serpentes, mas não havia motivos para usá-la agora, sob a luz do sol.
A noite, essa era a resposta da charada. Ragnar, se pudesse, apostaria todo seu rubro que, ao iluminar este local usando Fogo Fátuo na escuridão da noite, alguma passagem secreta ou coisa do tipo seria revelada.
Mas iria demorar para anoitecer. Era apenas meio-dia em Nova Avalon. Decido a não ficar apenas parado sobre a plataforma, Ragnar ergueu a lança estilo Moisés abrindo o mar vermelho, ele conjurou Fogo Fátuo e gritou de frente ao paredão rochoso:
— Abra, desgraça!
E a plataforma abriu como um alçapão, engolindo-o para dentro da montanha. Após gritos e protestos ele se deu conta de que estava deslizando sobre uma superfície lisa.
A escuridão era total e não havia como saber onde estava e para aonde ia. Foram dois minutos descendo para dentro da montanha. A viagem terminou quando um clarão borrou sua visão e um colchão gosmento aparou sua descida.
Ele levantou tentando se livrar da gosma verde que o cobria da cabeça aos pés. A luz outrora ofuscante vinha de uma lamparina encostada à parede. O lugar resumia-se a um pequeno espaço claustrofóbico com um corredor escuro indo sabe-se lá para onde.
A passagem era escura, então conjurou o Fogo Fátuo na ponta da lança e prosseguiu pelo corredor. Houve um momento onde o caminho estreitou ao tamanho de um pneu de carro, Ragnar metamorfoseou-se em serpente, e seguiu adiante.
Ao todo ele ficou uma hora no escuro até encontrar uma vasta gruta decorada por flores vermelhas, musgos verdejantes e borboletas de asas azuis brilhantes. O local era cortado por um rio de água pura que desembocava em uma queda cachoeira.
— Bem-vindo ao nosso refúgio — anunciou um homem parado sobre o rio, seus pés descalços estavam submersos na água. — Nós sabemos da verdade. Sabemos de tudo por trás do fim da Dark Age.
Ragnar estacou com olhos arregalados. Haviam mil perguntas a serem feitas, mas ao tentar verbalizá-las, nada saiu. Ele respirou fundo, e falou com calma:
— Quem é você?
— Sou um funcionário da Virtual Realms, um desenvolvedor deste jogo, mas também um integrante de um grupo ativista que surgiu dentro da empresa. Quanto ao motivo por trás desse encontro, é para dizer que a falência do seu time foi planejada. — Ele caminhou para fora do rio, e sentou-se sobre uma rocha.
— O que você quis dizer com falência planejada? — Ragnar se aproximou com muita cautela, por algum motivo sentia que poderia confiar nele.
— Ronaldo Emerich, foi o responsável por arquitetar o fim da empresa.
— Isso não faz o menor sentido, ele foi condenado — Ragnar respondeu, categórico.
— Será mesmo? — disse o homem estranho em tom provocativo. Em seguida abriu uma janela do sistema, uma página foi renderizada na frente de Ragnar. Era uma reportagem dizendo que Emerich foi inocentado por ausência de provas.
— Impossível! — esbravejou o druida.
— Ele é somente uma peça em um grandíssimo tabuleiro.
Ao ver a face irritada do druida, o homem de cabelo comprido emendou:
— Ele foi contratado pela Virtual Realms. Se as informações de meus contatos estão certas, Emerich, em breve, será anunciado como o novo Chefe da Divisão de E-Sports Sul-Americana de Nova Avalon Online.
Ragnar soltou uma risada nervosa.
— Eu não consigo entender isso. Por que a empresa por trás de um jogo tão bem sucedido iria querer o fim da minha equipe?
— Emerich era um capacho da Virtual Realms dentro da Dark Age, mas a diretoria da equipe, nunca aceitou as propostas obscuras da empresa por trás do jogo. Entre elas estava entregar as partidas do último Campeonato Mundial que vocês participaram.
— Você só pode estar de brincadeira. — Ragnar pausou ao sentir uma irritação se aflorando dentro de si. Depois de parar e pensar um momento, perguntou: — Existe alguma prova de que isso realmente aconteceu?
Mais uma vez o homem estranho abriu uma janela do sistema, mas dessa vez, um áudio ecoou pela gruta, uma voz estranha dizia:
“Então, meu querido, como ficou nossa situação para o jogo de amanhã?”, houve um ruído antes da segunda voz entrar, a voz de Emerich: “Ah, eu conversei com o pessoal hoje de manhã… eles não aceitaram…”
Fez-se uma pausa antes da outra voz se manifestar:
“É sério? Que merda…, mas quer saber? Que se foda! Vai dar tudo certo, amanhã seus meninos serão massacrados pelo White Snow. Não tem como o terceiro melhor do mundo vencer o número um, existe um Grand Canyon entre os dois.”
A voz de Emerich voltou, porém mais séria e com um tom preocupado:
“Tomara… Mas ainda é cedo para comemorar. Cada ano a equipe principal evolui, se não os pararmos agora, chegará um momento que eles conseguirão atravessar esse Grand Canyon.”
A voz estranha respondeu:
“Você por acaso tem acesso aos registros de treinos da equipe?”
Emerich falou:
“É claro que sim, vou enviá-las a você ainda hoje”.
“Ótimo, ótimo. Tenho certeza que será de grande ajuda”.
A gravação chegou ao fim. Ragnar levou as mãos à cabeça e falou sem expressar emoção alguma:
— Foi tudo um jogo de cartas marcadas? A Seven Heavens estava destinada a vencer o mundial antes mesmo de entramos na arena?
O homem de pele escura desceu da pedra e foi até o druida. Ele reproduziu mais uma gravação, mas Ragnar não entendeu o que era dito porque estava em coreano.
— Desculpa — disse o homem. — Deixa eu ativar a tradução.
A gravação começou a tocar, a voz era a mesma, mas agora em português:
“White Snow, você irá agora mesmo àquela sala, e irá sim assistir aos treinos da Dark Age!”.
Uma segunda voz respondeu:
“Você está achando que eu sou desse tipo? Por acaso eu pareço alguém que precisa trapacear para ganhar de um time irrelevante do terceiro mundo? Mesmo se eu precisasse, mesmo se esse Dante fosse um deus na Terra, eu nunca, jamais, me rebaixaria a esse nível”.
Ragnar ergueu a cabeça.
— Então a única esperança de vencer o mundial seria jogando em uma equipe criada por mim? — perguntou-se baixinho.
O homem concordou acenando a cabeça e, com sua ajuda, Ragnar se ergueu em pé. Ele apanhou a lança largada no chão, e agradeceu:
— Obrigado por me contar a verdade. Sou eternamente grato a você e sua equipe.
— Tem mais uma coisa que você precisa saber. Agora que seus antigos desafetos da Red Crows alcançaram o topo do ranking brasileiro, eles fecharam um acordo com a Virtual Realms. Em troca da participação no Campeonato Mundial desse ano, como substitutos de sua equipe, eles entregarão o jogo caso se classifiquem na fase de grupo.
Ragnar fechou os olhos, a imagem de Júlia veio em sua mente.
— Vocês deveriam revelar isso à imprensa.
— Nós já tentamos, várias e várias vezes, mas eles sempre conseguem abafar a situação. A Virtual Realms é grande demais para falir. E é por isso que fundamos um grupo de resistência dentro da corporação. Nós queremos mudar as coisas por dentro, mas vamos precisar de ajuda de fora.
O homem fez um sinal para segui-lo. Juntos eles atravessaram o pequeno rio e se dirigiram até o outro lado da gruta.
— Por que você pediu para eu criar um avatar druida? — Ragnar perguntou.
— Porque eu sei onde encontrar uma missão de evolução dessa classe — o estranho falou. — Você coincidentemente cumpriu a primeira parte dela. Agora falta encontrar o lar daquele que criou a Perdição das Víboras, a lança que você tem em mãos. Ele vivia no Refúgio dos Ursos de Ferro.
Os olhos de Ragnar brilharam. Ele lembrou da missão estranha que recebeu ao tomar para si a nova lança, na sessão das recompensas daquela missão constava apenas um “???”.
— Onde fica esse Refúgio dos Ursos de Ferro? — Ragnar perguntou.
— Na direção nordeste da cidade de Bremer, você terá de se embrenhar em uma mata fechada, não há estradas ou trilhas para lá. Deixe que eu marco em seu mapa.
Um toque breve e agudo de sineta soou. Ragnar abriu seu mapa e verificou um “x” vermelho marcado em uma área não explorada em seu mapa.
— Eu não faço a mínima ideia de como agradecer a você e ao seu grupo por tudo isso. Estarei eternamente endividado com vocês. Então… Eu poderia saber o nome de quem está me ajudando?
O homem estranho juntou as mãos e soltou um longo suspiro antes de responder:
— Quanto menos você souber a nosso respeito, melhor. Nós estamos ajudando porque dói muito saber que as nossas equipes são injustiçadas por grandes figurões da indústria. Nova Avalon deveria ser um mundo onde qualquer um deveria se aventurar sem se preocupar com os problemas e as politicagens do mundo real. Este era para ser um mundo que valorizasse o talento, o esforço, o companheirismo e a rivalidade entre jogadores.
Ragnar compartilhava da mesma visão, mas ele sabia que Nova Avalon Online era um dos produtos que mais movimentavam dinheiro pelo mundo. Era óbvio que haveria corrupção, manipulação e gente má intencionada por trás dos cargos mais influentes da Virtual Realms.
Mas o que eu devo fazer? Ficar parado e ver o mundo que amo ruir diante dos meus olhos? Pelo menos agora eu sei que há pessoas bem intencionadas dentro daquela empresa, Ragnar refletiu.
O homem o encarava de forma solene.
— Quem sabe uma classe lendária não deixe você em pé de igualdade com o Duelista lendário de White Snow?
Ragnar soltou uma risada.
— Você sabe como me motivar, admito.