O Herói das Chamas - Capítulo 1
Estava tudo escuro, mas tão… claro… Meu coração palpitava cada vez mais e mais rápido, tanto que nem consiguia acompanhar.
Decidi finalmente abrir os olhos. Com isso, fui atingido pela luz do sol quente, bem na minha cara. Levou um tempo para me acostumar, mas minha visão voltou ao normal, já consiguia ver um pouco.
Eu estava numa cadeira, sentado. Na minha frente tem uma… multidão? Calma, calma, devo estar vendo coisas.
Esfreguei os olhos e pisquei algumas vezes para ter certeza que não fiquei maluco. É, aparentemente não. Tinha muitas pessoas logo à minha frente. Talvez umas duzentas? Via elas de cima, porque a cadeira era posicionada em um palanque de madeira.
Aquelas pessoas gritavam e festejavam sem parar. Havia uns instrumentos esquisitos do meu lado, junto de uns caras ainda mais esquisitos, com roupas esquisi… Espera, espera. Meu foco está no lugar errado.
Como foi que eu cheguei aqui? Quem é essa gente e QUE LUGAR É ESSE? Meu Deus, já estou ficando ansioso…
Decidi falar com alguém ali.
— A-alguém pode me dizer onde estou…?
— Viva ao Herói das Chamas! Viva ao Herói das Chamas! Viva ao Herói das Chamas! — É, acho que eles me ignoraram totalmente.
Mas quem é esse Herói das Chamas? Isso aqui é uma seita? Eu fui sequestrado? Ai, minha nossa, vou morrer. Eu vou morrer. Eu vou morrer!
Após entrar em desespero por alguns segundos, finalmente algo aconteceu que me acalmou um pouco. Um velho gordo, baixinho e barbudo subiu no palanque através das escadas laterais. Ele usava uma roupa bem justinha, além de uma capa vermelha que se estendia até o chão.
Ele chegou lentamente até mim, colocou a mão no meu ombro e perguntou com um rosto sério: — Está tudo bem? Você parece pálido.
Quê? É você meu salvador? Finalmente alguém sã? Finalmente! Me ajuda!
— N-não, na verdade….
— Claro que está, não é? — Ele deu um tapão nas minhas costas enquanto gargalhava. — Você é o grande Herói lendário, não é? — Ao terminar de quase me matar com aquele tapa, ele saiu lentamente até a parte da frente.
Não, por favor, não vai. Eu não sei quem é esse herói… Eu só quero sair daqui… por favor.
Ele se distanciava aos poucos, enquanto me mantive boquiaberto e ainda assustado. Minhas mãos trêmulas até tentaram alcançar sua túnica, mas o braço foi segurado por um homem bem alto e careca, que estava atrás de mim.
Ele negou com a cabeça e só assim larga meu braço. Não tive escolha a não ser continuar aqui, sentado, no meu canto. Aproveitei para ficar em posição fetal e abraçar minhas próprias pernas.
Assim que o velho chegou quase na ponta, a euforia da multidão triplicou. Se eles estavam felizes com a presença do herói — que aparentemente sou eu — eles ficaram ainda mais.
— Viva ao rei Julius! Viva ao rei Julius! Viva ao rei Julius! — A multidão gritava.
Ele é um rei? Bem, a coroa que eu não tinha notado antes evidencia bem isso. De qualquer forma, por que um rei? A monarquia não acabou há uns cem anos? Ou foi cinquenta? Enfim, todo mundo aqui fala a minha língua, então não estamos em outro país. Que droga, que lugar é esse? O que é isso?
O rei abriu os braços e olhou para os céus. Ele parece estar adorando tudo isso.
— Agradeço tudo isso, mas não estão aqui por mim… — Em uma rápida virada, ele apontou seu tronco e olha para mim. — Vocês estão aqui por ele!
Apenas observava, incrédulo. Não conseguia ver meu próprio rosto, mas tive certeza que meus olhos estavam esbugalhados e suava igual a um leitão nesse momento.
Droga, nem tem como eu ser esse cara. Até há pouco tempo eu estava… eu estava… Merda! Eu nem consigo lembrar onde eu estava. Minhas últimas memórias são apenas de uma festa.
Ele continuava falando suas asneiras, mas não conseguia ouvir. Quer dizer, não queria. Não quero escutar, não quero ver, não quero sentir, não quero estar aqui. Só quero sumir…
— Tem algo a dizer, Herói? — Quando percebi, ele já estava bem perto de mim. Parecia esperar algo, assim como as pessoas.
É agora, é agora que eu tenho a chance de falar o que eu quero, a atenção de todo mundo está voltada a mim. Bom, o que eu devo falar ou perguntar?
Eu pergunto o que está acontecendo? Quem são eles? Quem sou eu? Pergunto que dia é hoje? Droga! Pergunta qualquer porcaria, só para de tremer e fala algo!
Apoiei minhas mãos na cadeira e aos poucos fui subindo. Por fim, me levantei e encarei aquela multidão novamente.
Devo escolher bem minhas palavras agora, então…
— Quem é esse Herói das Chamas?
Eles não estavam respondendo. Pareciam incrédulos, assim como eu. Será que falei alguma coisa errada? Eu deveria ter falado outra coisa? Será que…
Senti uma mão pousar sobre meu ombro. Não era a do rei, mas sim do careca altão. Ele estava segurando forte. Porcaria, tá doendo.
O rei olhou para mim, ele parecia estressado. Com seus olhos ele fez algum sinal, e, quase ao mesmo tempo, o careca me puxou para o lado.
Quase instantaneamente a plateia começou a vaiar e jogar algumas coisas no palco, de frutas a objetos cortantes. Se isso pega no olho…
Estava sendo levado para longe. Descemos do palanque e aos poucos via a multidão se distanciando. Para onde esse cara está tentando me levar?
VI por pouco o rei tentando acalmar os ânimos, mas aparentemente parecia não ter sucesso. Acho que acabei fazendo besteira…
***
Estou num quarto bem chique. Posso dizer isso pelos móveis, que são bem entalhados, até. Como eu entendo de marcenaria? Simples, eu não entendo. Mas acho que para alguém ter móveis de madeira atualmente só sendo rico, né?
Falando nisso, eles têm um rei. Que lugar no Brasil tem um rei? Será que em Minas Gerais? Talvez no Sul? Bom, não que eu saiba. Isso faz eu me questionar bastante. Eles falam minha língua, mas é só isso. De resto, nada é igual.
Dou uma olhada em todo o lugar. Tem uma cama de casal bem grande, com um mosquiteiro em cima — ou ao menos se parece um. Ao lado, uma penteadeira.
Além disso, tem uma janela. As paredes e o chão são feitos de pedra bruta, então é tudo bem torto. No entanto, acho que se forçar…
Cheguei mais perto para analisar o local. Deveria começar pela perna ou pela cabeça? Quer dizer, começando pela cabeça tenho mais chance de cair, né? Hum… Mas de qualquer forma tive que ver do quão alto iria pular.
Ao colocar minha cabeça pela janela, percebi o quanto estou ferrado. A distância até o chão é bem alta, como se fosse um prédio de uns três andares. Nunca entrei em um, mas saberia dizer se tivesse entrado.
Acho que se eu pular daqui vou acabar quebrando as pernas ou pior, então não faz sentido eu me jogar. Mesmo que não me machucasse tanto, acho que perceberiam um moleque magrelo caindo de um lugar alto.
O que eu deveria fazer agora? Pensa, Theo, pensa!
Ouvi passos. Não tenho tempo para pensar. É agora ou nunca!
A porta se abriu. Alguém estava lá, com uma pose mega formal, encarando o quarto.
Acho que nem deu para ele ver muito o que estava acontecendo. Imagino que sua atenção estava voltada para um maluco pendurado na janela.
Ah, esse maluco sou eu.
Lentamente vou tirando a perna, e me ajeitando. Apoei minhas costas na parede e fiz a maior cara de inocência que pude. Talvez ele ignore algo que aconteceu há três segundos.
— Senhor Herói… — o senhorzinho de bigode disse — tenho que levá-lo para um jantar agora. Está pronto?
Jantar? Depois de me trazerem à força pra cá querem fazer um jantar? Pensando bem, se for uma comida chamativa, vai ser fácil de me envenenar, né? Droga, eu vou morrer…
Não importa o que aconteça. Não posso comer coisa alguma daqui.
Confirmei e nós fomos em direção ao tal jantar. Fiquei de olho em tudo, até nas paredes. Vai que surgia uns ninjas pulando no meu pescoço. Não dava pra vacilar.
Finalmente, depois de passarmos por muitos corredores, chegamos em um salão enorme, iluminado por várias tochas pelas paredes.
Nessas mesmas paredes pude ver várias pinturas épicas, de batalhas e tal. Tudo indicava que tinha acabado de acordar em um ano antigo.
Só vi agora, mas essa mesa que tem no meio do salão é algo de outro mundo. Nunca vi tanta comida na minha vida quanto agora. É filé, frango, salada… Okay, é bem repetitivo, mas a quantidade é absurda.
O doce aroma chegou até mim, e minha barriga logo soltou um baita ronco. Não era pra isso acontecer! Não posso sentir fome, não agora!
Mas essa comida parece tão gostosa… Droga, o que eu faço?!
— Não sinta vergonha, Bartolomeu — o rei, na extrema ponta da mesa falou. — Esse banquete foi feito apenas para você. E para mim também, claro! Ahaha.
Ah… que fome… Ei, calma. “Bartolomeu” não é o meu nome. Quem é esse? Eu fui confundido?
Eu achava que já era ruim uma espécie de seita me achar, sequestrar e me idolatrar, mas agora fazerem isso sem saberem que eu sou outra pessoa completamente diferente é bem pior.
— O que aconteceu? — Ele parecia ter notado minha preocupação estampada na cara. — Está incomodado com algo? Pode falar qualquer coisa.
Fiquei em silêncio. Não sei nem o que eu devia falar agora. Até tentei arranhar alguma frase, mas aparentemente saiu incompreensível.
O rei também parecia preocupado. — Foi porque eu te chamei tão casualmente? Peço perdão, senhor, é que achamos você e o salvamos, então achei que poderia ser mais informal. Quer dizer, não salvamos, porque o senhor não precisa de ajuda de ninguém, não é? Afinal é o maior guerreiro da história desse mundo! Então… é… Perdão… — Deu pra ver o suor escorrendo do seu rosto.
Sabe, não me parece tão ruim aproveitar disso tudo, né? Eles aparentemente me respeitam bastante, tem um banquete me esperando hoje e provavelmente nos outros dias. Diferente de onde eu estava, aqui parece ser bem digno.
Mas, não sei… Se esse cara, o Bartolomeu, for tão incrível ao ponto de merecer tudo isso, então eu não conseguiria me manter assim, eu acho.
Ele falou em “guerreiro”, e eu só fiz uma aula de boxe de teste grátis há uns três anos…
Eu não posso viver uma vida que não é minha, é algo antiético, mesmo que seja tão boa assim… Me dói dizer isso, mas…
— Desculpa, mas esse aí não é o meu nome. — Aaaah! Que vontade de chorar!
O rei e todos que estavam na mesa hesitaram. Acho que não esperavam por isso. Bom, agora que descobri a existência desse pessoal, que parece ser algo escondido, já que nem sabia deles, talvez meu corpo seja desovado em alguma floresta por aí.
— Oh, isso é… Uau… Uma bela curiosidade, acho eu… — Ele pega um pano na mesa e começa a enxugar a testa. — Então, qual é o seu nome? Só para que nós saibamos.
— Meu nome é Theo. E, sabe, eu tenho só 16 anos. Acho que não sou aquele que estavam esperando…
Todos ficaram em silêncio.
— Bom, disso eu não duvido. Peço perdão por errar seu nome, Theo. Aliás, 16 anos? Mas já faz quinhentos anos que você sumiu… Enfim, não tenho qualquer base para questionar sua magia.
Oi? Magia? Eles acreditam em magia? Minha nossa, não sei o que é pior, ele não ter entendido o que eu falei ou eles serem tão esquisitos ao ponto de acreditarem nisso.
— Não, é que…
— Espere! — Ele estendeu sua mão aberta até mim e desviou o olhar para o lado, fazendo uma pose bem esquisita. — Antes de tudo, pode parecer abusado da minha parte, mas poderia me fazer um favor? É pelo bem da comunidade!
Que merda esse cara tá falando? Eu mal apareci e já vão me pedir favor? Que porcaria… Eu não quero fazer isso, não…
O rei deu uma olhada de canto e viu que fazia uma cara de desgosto nesse momento. Com isso, ele levantou de uma só vez e veio até perto de mim.
Antes que eu pudesse notar, ele se ajoelhou e ficou cara a cara com meus pés.
— Por favor! Estou sofrendo uma rejeição geral! E ter o maior Herói da história ajudando meu reino com um trabalho simples me ajudaria bastante!
Não! Não vou aceitar isso!
***
No fim, acabei aceitando.
Quando ele falou “trabalho simples”, não imaginava que seria algo desse nível. Tudo bem que a existência de um Herói, como ele falou, causa um alvoroço e tal, mas era preciso mesmo me colocar pra juntar merda de cavalo?
Enquanto junto o último lote de estrume com a pá, xingo aquele rei de todos os xingamentos que consigo pensar agora.
Nem tinha mais paciência para lavar a pá, apenas joguei ela na lama e espero que outro otário vá juntar e tirar os restos.
Durante meu tempo no estábulo, que fica atrás do castelo, várias pessoas passaram para ficarem murmurando sobre mim. E elas continuaram fazendo isso mesmo depois que já saí.
Ao andar cabisbaixo pela rua, vi uma criança andando ao lado da mãe.
Ela apontou pra mim. — Olha, mamis! O Herói das Xamas naum é legal. Tá todo xujo de cocô.
A mãe, ouvindo isso, pegou a criança no colo e a repreendeu: — Filha! Não fale assim dele! Não sabe o que os Heróis fazem quando são ofendidos?! — Ela olhou pra mim. — Perdão, senhor!
Apenas sorri de leve e acabei perdoando. Não é como se eu fosse alguém importante mesmo. Não consegui nem resistir a um pouco de pressão e acabei nessa situação de agora.
Acho que não sou digno de um título desses. Será que o Herói que tanto falam teria aceitado? Quer dizer, acho que ele nem estaria nessa situação para começo de conversa.
Tudo estava muito monótono, tanto que até era estranho. Normalmente, eu, como uma celebridade, deveria estar cercado, né?
Alguns murmúrios vinham dos lados, mas eles também pararam do nada. O silêncio tomou conta do local totalmente.
Isso não está certo.
Virei de repente para verificar e…
KABUM!
Uma explosão ocorreu e fui jogado de uma só vez para longe.
Enquanto estava caindo, senti uma dor aguda na cabeça. Vi a escuridão tomando conta da minha visão. Droga, acho que estou desmaiando…