O Herói das Chamas - Capítulo 6
Definitivamente aquilo não estava certo.
Minha última memória era a que eu derrotava a flor carnívora — ou qualquer que fosse seu nome — com uma explosão, então é claro que estranharia acordar deitado em uma cama que nunca tinha visto.
Bom, eu posso não ter contado, mas assim que abri os olhos, me vi em um lugar totalmente diferente do que estava, quase como quando você dorme na sala e acorda no quarto. A única diferença era que antes estava em uma planície, mas acordei em uma região montanhosa.
Nem preciso falar que o lugar estava muito frio, mas também aconteceu outra coisa: eu não estava vestido com a mesma roupa de antes, logo alguém tinha trocado ela, o que significava que tinha visto minha peça.
Só de pensar na possibilidade já dava um frio na barriga, irônico ao observar o lugar em que estava. Falando no lugar, era bem interessante, até, afinal era um cafofo apertado.
A cabana que estava era feita de madeira, pequena e apertada. Um quarto comum tinha chances de ser maior que todo o lugar.
Em um canto estava a cama que eu acordei, no outro, uma lareira. De resto, possuía algumas mobílias bem rústicas. Era como se todo aquele lugar tivesse sido feito às pressas, ou por alguém sem experiência.
Abri a porta da frente e não vi uma alma viva sequer. Dei uma volta pelo local, mas não achei algo interessante, só mato e uns animais aleatórios.
Assim que voltei para a cabana, uma fome desesperadora invadiu meu corpo. Minha barriga não para de roncar de jeito algum, então precisava achar algo para comer.
***
No fim, não achei comida, então eu mesmo preparei.
Achei uma panela e a coloquei no fogão a lenha, só precisava da lenha, então fui atrás de algo inflamável. Felizmente achei umas madeiras convenientemente caídas e fáceis de pegar. Juntei todos os ingredientes que achei e joguei todos na panela.
Creio que não será necessário avisar que a comida ficou péssima, mas comi como se fosse a melhor do mundo, afinal, como dizia a minha avó, o melhor tempero é a fome.
Depois de terminar percebi que estava sem coisas para fazer, então logo lembrei do meu celular, que, mesmo sem bateria, poderia ser útil naqueles momentos.
Bom, considerando que tudo no mundo era um segredo para mim, não tinha sido uma jogada muito boa, vai que ele tivesse um poder mágico enorme? Não tinha como saber. O investimento no uniforme nem valeu a pena, ele foi todo queimado na batalha.
— Bom… — Deitei-me na cama novamente. — Acho que agora é só ficar por aqui mesmo, é um bom lugar para viver. — Já tinha aceitado aquele lugar como minha morada permanente, pois, desde o momento em que acordei, ninguém tinha aparecido.
Foi só eu pensar naquilo que alguém abriu a porta, pareceu até mágica.
— Ah! Você acordou! — falou Sapphire. Sua expressão parecia bem feliz.
— Você mora aqui? — perguntei.
— Sim.
— Então o que estava fazendo fora esse tempo todo?
— Sabe… Vi que você estava dormindo bem, então… — Ela remexeu em sua bolsa e retirou meu uniforme novo em folha. — Eu mandei arrumarem.
Aquilo foi como se acertassem meu coração com um sentimento de amor e culpa, deu até vontade de chorar. Saber que ela se preocupou comigo de alguma forma era reconfortante até certo ponto.
— Deve ter acordado há bastante tempo, até fez comida. Deixa eu experimentar… — Ela pegou a concha e mergulhou na sopa.
— Calma aí!
Não deu tempo de avisar, ela já tinha tomado um golão daquela “coisa” que nem poderia ser chamada de comida. Tive certeza de que ela ficaria estressada com aquilo.
— Nossa… Muito bom…
Mentirosa! Mesmo me sentindo um pouco mal, gostei de saber que ela tinha um pouco de consideração por mim ainda, era… reconfortante saber que não tinha estragado tudo.
Durante toda a batalha só fui um peso morto, no final, só consegui sair vivo por causa de um acidente que eu causei.
Sapphire não estava mais com uma armadura, mas sim com roupas normais, e por não usar manga, pude ver vários machucados pela sua pele. De alguma forma, senti-me culpado por eles.
— Olha… — Abaixei minha cabeça. — Foi mal por ontem… Eu tentei ser útil de alguma forma, mas só atrapalhei.
Assim que minha voz cessou, o silêncio tomou conta do lugar. Eu pedi para ser desculpado, mas, no fundo, queria que ela brigasse comigo, odiava ser tratado como alguém que precisasse ser defendido, mesmo que fosse verdade.
Mas analisando seus comportamentos anteriores, eu pensei que ela seria bondosa de alguma forma, poderia até mesmo pedir desculpas por exigir demais, mas não foi isso que aconteceu.
— Sim, você fez mal. Foi um peso morto, mas o que importa é que você está bem.
Uma resposta neutra, era o que eu precisava mesmo. Se fosse esculachado, talvez ficasse ainda mais triste, ainda bem que ela soube bem usar as palavras.
— Aliás… Você não tem magia, não é? — perguntou Sapphire com
É claro que eu não esperava por isso. Não tinha como adivinhar que ela perguntaria, mas, se ela fez isso, então é porque tinha dúvidas. Sendo assim, ainda tinha chances de enganar ela.
— Claro que tenho! — Dei uma risada forçada. — De onde tirou isso? Eu até queimei aquela planta, não foi? — A última coisa que poderiam saber é que eu era fraco ao ponto de não ter sequer mana.
Ela soltou um longo suspiro. — Não precisava mentir, até porque eu queria ser assim também — falou, sentando-se na cama, bem do meu lado.
— Co-como assim? — Uma garota nunca tinha chegado tão perto, então fiquei vermelho como um tomate. Uma forma de esconder foi olhando para todos os lugares, menos para o rosto dela.
— Eu adoraria ser uma pessoa simples… ao menos uma vez… — Quando percebi, seu olhar estava distante, sua mente parecia viajar.
Eu não sabia como reagir. Era como se alguém que tivesse tudo dissesse que gostaria de voltar a ter nada, escutar aquilo me deixava revoltado, afinal eu era fraco e idiota, tudo o que queria era poder, mas, ao mesmo tempo, fiquei com um pouco de pena.
Levantei-me da cama, sua visão, que antes estava desviada, virou-se para mim. — Mas não tem o que fazer, né? Quem nasceu forte está destinado a fazer algo com a sua habilidade!
— Sim… — Acho que não foi a melhor coisa que eu poderia falar.
Eu definitivamente não sabia o que falar. Não era difícil saber que ela não estava bem, mas o que eu poderia fazer? Não era psicólogo e muito menos sabia o que fazer em uma situação daquelas. Do que adiantaria tentar ajudar?
Desde que me conhecia por gente, quando tentava ajudar alguém, sempre acabava dando errado e eu saía por baixo, então meio que desisti de ajudar. Óbvio que dei mole nas duas vezes que apanhei — uma para um cara aleatório e outra para uma planta —, mas eram as últimas vezes.
Infelizmente, mesmo que quisesse, não dava para ajudar a Sapphire. Minha cota de tentar ser herói havia acabado de vez.
O lugar ficou em silêncio. O único som que poderia ser escutado era o do vento passando. Sentia, de alguma forma, que precisava ir embora, e foi isso que fiz.
— Acho que é melhor eu ir. Acho que nós dois estamos buscando coisas diferentes…
— É… — Ela se levantou lentamente e abriu a porta enquanto eu ainda juntava minhas coisas.
Para me ajudar na caminhada, ela pegou uma bolsa e colocou água e um pouco de comida.
— Aliás… — Sapphire foi até suas coisas e trouxe a espada até mim. — Leve-a.
— Não! Isso é do Herói das Chamas e é bem perigoso, né? Eu não posso aceitar! — falei, abanando as mãos para negar.
— Olha… eu tenho certeza de que você precisa mais que ele. Além do mais, é um agradecimento por ter me protegido naquele dia — disse, esboçando um sorriso.
Eu não esperava por aquilo. Não pude não sorrir ao pegar a espada em mãos, realmente ter alguém te agradecendo era uma sensação ótima. Talvez quisesse sentir ela de novo.
— Lembre-se de cuidar bem dela, o seu nome é Roxium, ninguém consegue usar ela como você. — Ela falou.
Assim que arrumei as coisas, saí do casebre que estava. Já estava saindo, mas me virei para perguntar algo. — Esqueci de perguntar. Por que ninguém consegue usar a Roxium?
— Hm… Porque ela suga a mana do usuário
Aquilo era realmente assustador. O fato de eu não ter mana era a única coisa que me impedia de morrer pela espada, então? Era algo como um azar sortudo.
— Aliás, você sabe onde fica a cidade mais próxima daqui?
— A noroeste, não é tão longe, acho que você chega lá antes de escurecer.
“Ótimo, agora é só saber para onde fica isso.”
Agradeci mais uma vez e segui em direção a nordeste. Não, você não leu errado, eu fui na direção nordeste, porque me perdi. Fui perceber meu erro quando raciocinei um pouco mais que antes.
Assim que ajeitei a direção, já estava anoitecendo, então decidi montar um acampamento naquele lugar nada seguro.
Acendi uma pequena fogueira com uns galhos que achei e me sentei ao lado dela. Enquanto olhava para o céu estrelado, pensava um pouco na vida.
— CROAC CROAC — Um corvo chegou do nada.
Por causa do susto, dei um soco no pássaro, que caiu no chão. Quando percebi a burrada que fiz, pedi desculpas para ele, mas só fui xingado em corvês.
Depois de reclamar bastante, ele me entregou um papel, que se revelou ser uma carta assim que a abri. Fiquei surpreso, até porque não era comum receber uma carta, ainda mais de um animal.
— Certeza que isso é pra mim? — perguntei para ele.
— Croac croac. — Não captei muito bem, mas parecia uma afirmação.
— Entendo, vou ler, então.
Após a primeira linha, estranhei a mensagem. Era de Deus.