O Invocador Sagrado - Capítulo 1
Era outra noite de trabalho.
Os carros não paravam de buzinar no trânsito abaixo, o sol se escondia detrás dos altíssimos prédios, as estrelas iluminaram o céu e os postes de luz foram acendendo um por um.
Pessoas andavam de um lado para o outro, tanto nas ruas quanto nos espaçosos escritórios dos prédios, perseguidos pela infinidade de telefones tocando e pelas pilhas de papéis expostas em cima das mesas.
Dentre esses milhares de assalariados, um era diferente. Ele não tinha seu cubículo para trabalho, não usava um modelo moderno de computador e não tomava café diariamente; trabalhava no armazém de uma empresa, escondido dos outros e só saia de lá para voltar para casa.
Considerava agradável ter uma sala só para si, sem o vozeirão habitual do cotidiano, para se concentrar na tela de um velho Windows 98. O silêncio fazia sua imaginação voar, desenvolvendo um incomum hobby de desenhar de segunda a sexta no tempo livre do expediente.
Esse passatempo abduziu sua noção de tempo, o velho relógio digital em seu pulso acelerava os segundos com a mera cogitação de passar alguns minutos a mais no computador.
Só que, tempo era um recurso limitado, assim como a paciência de outra pessoa.
— Roan, todos já foram embora. — falou uma voz vinda da porta da sala. — A gente tem que ir agora
Não houve resposta imediata, muito menos um movimento da pessoa sentada na cadeira do computador. Pesados passos ecoaram pela sala e uma mão veio de encontro ao cabo da tomada e o puxou.
— Pare de desenhar, seu doido!
A tela desligou. Roan encarou por dois segundos seu próprio reflexo na tela escura e se assustou com a própria aparência; um terno preto e cabelo lambido para trás, junto de um olhar de peixe morto.
Virou o rosto para a pessoa ao seu lado, os cachos dourados na altura dos ombros dela brilhavam com as lâmpadas bambas do teto, as íris esverdeadas eram hipnotizantes de tão deslumbrantes, mas ele sabia que quanto mais brilhantes aqueles olhos eram, mais raivosa era a pessoa que os detinha.
— Ah, foi mal, Cass… — O homem abriu um sorriso envergonhado, não era a primeira vez que isso ocorria. — Não tem relógio aqui, né, como eu iria saber?
As sobrancelhas da mulher franziram e seus olhos verdes se transformaram em chamas. Apertou o pulso dele, levantando-o na altura da boca para mostrá-lo o relógio digital no pulso.
— Aí, aí! Foi erro meu, para! — resmungou Roan, enquanto se soltava. — Tá bem, tá bem, vamos indo. Deixa só eu terminar de arrumar aqui…
Suspirou e se ergueu da cadeira, olhando para a marca avermelhada no lugar do aperto. Apanhou algumas folhas de papéis postas em cima da impressora e as colocou dentro da maleta, um trabalho seria resolvido apenas em casa.
Primeiro, teria que acelerar seu passo por conta do olhar mortífero que recaia em suas costas. Roan, após caminhar um lado para o outro, arrumou as caixas em seus devidos lugares, e ao colocar a última, um baque metálico soou entre as estantes.
— O que foi isso?
— Num sei. Talvez seja uma das tranqueiras velhas que o pessoal guarda e esquece… Vou dar uma checada.
Ela se afastou por alguns momentos e revistou o piso. Após conferir, saiu de um dos corredores com um relógio dourado em uma mão.
— Deve ter caído de uma caixa… O que a gente faz com esse negócio?
— Hm… Eu acho que vou levar. — Aproximou-se e apanhou o relógio das mãos dela para guardá-lo na maleta. — Não deve fazer falta pra alguém e gosto de coisas velhas.
— Até de mulher?
— Você não perde uma, Cass…
Uma leva de risadas depois e ambos já estavam à caminho da saída. Porém, antes de sair, um ruído agudo chamou a atenção de Roan, que prontamente encarou uma estática esquisita na tela do computador. Sem entender, apenas apertou o botão de desligar, logo a estática parou.
“Deve ser algum problema no monitor, já que é velho. Amanhã eu vejo isso.”
Ao se retirarem da sala, atravessaram os amplos escritórios vazios. Roan passou o olhar pelo ambiente, sentia um calafrio na espinha com todos os computadores ligados em meio a escuridão; por algum motivo, o lugar criava uma impressão de estar sendo observado por algo no escuro.
Uma campainha indicou que o elevador tinha chegado. Em questão de segundos, os elevador chegou no térreo, um click metálico abriu as portas de ferro.
O térreo também era a recepção, um piso de mármore liso caracterizada a entrada e vários assentos estavam postos em fileiras contra uma parede, enquanto um balcão ficava instalado na direção oposta aos bancos.
Uma penumbra se espalhava pela sala, limitada por uma luz no teto acima das portas de vidro automáticas.
— Ei — chamou a mulher. —, me espera lá na porta um minutinho. Vou pegar uma coisa aqui.
— Sim, senhora.
— Não me chame de senhora, seu sem-vergonha!
Roan escapou dali para evitar enfrentar a onda de fúria de sua amiga, que o xingava pelas costas. Sentou-se nas escadarias, deixou a maleta ao lado e colocou as mãos no queixo, para então analisar um pouco da cidade.
Grandes arranha-céus cinzentos tocavam as nuvens de algodão, a fumaça do trânsito das ruas era uma interminável chaminé, dezenas de aviões sobrevoavam o céu numa distância que não seria possível ver. Era a clássica sinfonia incomum da cidade grande, cercada de zoada e sujeira.
Seus ouvidos e narinas já estavam acostumados ao cheiro fedorento de gasolina queimada e carbono em excesso. Ainda assim, era lamentável que o preço de manter uma cidade fosse imenso e destrutivo demais.
De repente, em meio devaneios, escutou um barulho incomum, um tique-taque que vinha de dentro da maleta. Tocou cinco vezes, e quando parou, um silêncio sepulcral assombrou o lugar; o mundo havia congelado.
— Traga-o até mim, Sebastian…
Roan deu um salto assim que aquela voz ressoou em seus ouvidos e pôs a mão sobre o coração. Ele olhou ao redor em desespero, com o cabelo arrepiado e uma desconfortante impressão de agulhas perfurarem as costas; a sensação de ser observado.
Para sua salvação, uma loirinha baixinha tinha acabado de sair do prédio atrás dele, com óculos de lente de garrafão no rosto e uma pasta preta debaixo do braço, com passos pesados o suficiente para tirá-lo daqueles devaneios. Desceu as escadarias com um bocejo, até ver a face pálida do amigo.
— Que que deu em ti? Viu um fantasma?
— Eu acho que escutei um… — respondeu em tom meio baixo e com o rosto enrubescido.
— É isso que dá passar tanto tempo lá naquela sala cheia de poeira, tu fica lelé da cuca. — Caminhou na direção dele, puxando-o pelo braço. — Mas simbora, a gente tem que pegar o… Puta que pariu! O metrô, caralho! Corre!
— Ah, o metrô!
Era cerca de 21:07, faltavam 8 minutos para que o metrô chegasse. Sem tempo a perder, ambos correram a uma velocidade assustadora pela calçada, quase se esbarrando nas pessoas que transitavam por ali.
Cassandra tirou o salto-alto para ser mais fácil de se mexer; uma pena que ela era forçada a passar por vários bares abertos. Sua boca salivava de sede pela cervejinha nas mesas dos clientes, contudo a pressa e o medo de não voltar para casa era um sentimento maior do que o desejo pela bebida.
Felizmente, chegaram a tempo de pagarem uma passagem; uma rápida verificada nas horas indicava que eram 25:14 21:14.
Roan teve tempo para respirar, seus pulmões estavam prestes a estourar de tanta correria. Passou a mão no cabelo encharcado de suor e ergueu o queixo, respirando profundamente e aos poucos recuperando o ar no peito. Fitou a estação, estava quase vazia, a única presença era de uma pessoa estranha.
De relance, viu as costas um homem de uniforme azul-escuro que usava luvas brancas e um chapéu de lã. Não conseguiu ver mais que isso, pois uma certa pessoa o puxou pelo braço e o impediu de analisá-lo por mais tempo; o metrô tinha acabado de chegar.
Cassandra entrou primeiro e se jogou contra um dos bancos. Seu corpo se espreguiçou, a dor em seus pés se esvaiu de um momento para o outro.
— Já te contei que odeio salto e lente de contato? — falou, limpando as lentes borradas do óculos.
— Conta todo dia — Ele seguiu o exemplo, deitando-se no banco. — Então, qual é a leva de novas reclamações que a perfeitíssima Cassandra tem para hoje?
— Tu mente tão bem que é capaz de enganar uma galinha. — Ajeitou a coluna, pronta para discursar sobre mais um novo babado. — Se lembra do CEO que foi convidado pelo nosso chefe?
— Lembro, o nome dele era Rodrigo. O que tem ele?
— Esse cara é um babaca completo. — Os lábios se torceram e as sobrancelhas se dobraram em um nojo descomunal. — Ele se fazia todo de bonzinho pra cima de mim, pra só depois xavecar a Fátima lá no setor de contabilidade. Esse homem é mala, é cheio de agá.
— Às vezes, eu penso que você é um robô ou alienígena pra falar assim. — Roan abriu um sorriso, imaginava que falavam em outra língua. — O que diabos é “agá”?
— Ter “agá” significa que é ter umas manhas de mentiroso, que nem tu, amigo de carne. Beep-boop.
Risos descontraídos fizeram a conversa continuar. Cassandra descreveu, entre um ódio desumano e muitos xingamentos, o quão desgraçado era o CEO Rodrigo. Roan não prestou muita atenção, na verdade, um certo tédio o perturbou. Os dias eram iguais, trabalhar até de noite e escutar as infinitas reclamações de sua amiga até que chegasse em casa.
No meio da conversa, ele tirou papéis de dentro da maleta e um lápis, para começar a desenhar. Só que, diferente do comum, a criatividade não vinha, sua mão se manteve parada na folha em branco.
— E esse desgraçado ficou de mimimi comigo e…
— Ei, Cass, posso te perguntar uma coisa?
— Ah, claro, claro. — Ela mexeu o pescoço para o lado, vendo-o encarar um papel em branco. — Algum bicho te mordeu? Tu tá todo estranho hoje.
— Não, não. É só que… não sei… as coisas parecem muito iguais todo dia, né?
— Como assim?
— Bem, a gente nunca faz nada diferente. É sempre do mesmo jeito: acordar, trabalhar, trabalhar mais, voltar pra casa e repetir. Qual foi a última vez que saímos pra sei lá… um parque, ou até um restaurante?
— Hohoho, tá criando culhão agora é, garotão? — Ela abriu um sorriso largo e malicioso, cutucando-o com o cotovelo.
— Não é isso, doida. — As mãos foram de encontro a nuca, e ele levantou o rosto para o alto. — Só parece chato não ter nada a mais pra fazer.
— É, ‘cê tem razão. De vez em quando eu adoraria ter o direito de bater em alguém, mas não é como se isso fosse acontecer, né?
— Deixe seus punhos longes de mim, por favor.
— Fica sossegado, tu é melhor que muito marmanjo por aí.
— Se você diz…
Roan se contentou em acreditar nas palavras dela, mas um pressentimento ruim o apoderou. O pressentimento de ser observado se agravava, agulhas invisíveis penetraram suas costas e um formigamento nos dedos se intensificou.
Averiguava o horário a cada minuto, o tempo andava mais devagar que o comum; e as horas, minutos e segundos no relógio estavam esquisitas. Em dado momento, assustou-se por olhar fixamente os segundos completarem 60 e o valor do minuto não aumentar.
Assim que o tique-taque do relógio dourado voltou, pulou do assento; os barulhos cessaram e as luzes piscaram.
— Tem algo errado…
— Senta aí, Roan — O cansaço a tornava despreocupada até demais. — É só inferên… interfecen… tu entendeu.
— Eu tô falando sério, Cass! — Uma expressão de pavor tomou conta do semblante de Roan. — Tem algo de muito, muito errado nesse lugar
— Pelo amor de Deus, me escu…
Um baque violento interrompeu a discussão, balançando o vagão e os arremessando para o teto. Um giro os jogou para as vidraças, mas mesmo uma pancada forte não foi suficiente para quebrá-las.
Pela janela, Roan teve um rápido vislumbre de um tenebroso olho avermelhado, circulado por aros rosados e uma pupila branca, tão amedrontadora que ele jurou que via sua própria alma. O olho voou em linha reta, e um zunido excruciante de metal arranhado o fez tapar os ouvidos.
Quando a agitação terminou, seu corpo caiu de cabeça contra o piso frio e a consciência se apagou por alguns momentos. Ao recobrar os sentidos, ele apoiou as mãos no chão e direcionou o rosto para o lado, vendo Cassandra sentada e com a cabeça tonta.
— Sejam bem-vindos, passageiros — anunciou o motorista pelo alto-falante. — Agradecemos por ter tido o compromisso de embarcar em nossa empresa EXE, Expresso-Xeno-Extradimensional. Por favor, aguarde ao comissário, ele os receberá em breve para descrever sua próxima parada.
— Que porra… — resmungou Cassandra, ajeitando os óculos com lentes quebradas. — Ei, Roan, a gente não ficou bêbado e entrou numa casa dos horrores por acidente de novo, né?
— Tenho absoluta certeza que não, Cass…
Os tique-taques parou e um tilintar tocou no lugar. O tilintar se transformou em batidas férreas, fazendo-os ficar de pé, até que a porta no extremo oposto de onde estavam se abriu.
Uma pessoa adentrou no vagão, um homem de braços fortes e de peito largo, que usava na cabeça um chapéu de lã e escondia as mãos em finas luvas brancas. O mais estranho, contudo, era a máscara em seu rosto, na qual possuía um desenho de um sorriso triste e olhos fechados pincelados na cor turquesa.
— Desculpem a demora, passageiros… — disse com a voz cansada, enquanto retirava uma prancheta e uma caneta por debaixo do uniforme azul. — Seus nomes são Roan Ferreira de Castro e Cassandra Lima da Silva, não?
— Vo-você! — Roan apontou o dedo para o sujeito. — O homem do metrô!
— Sim, sou um comissário do metrô, me chamo Sebatian. — A cabeça do comissário pendeu para o lado. — Algum problema, senhor?
— Espera aí — interrompeu Cassandra. — Que história é essa? Tu conhece esse homi, Roan?
— E-eu? Claro que não, só o vi na estação do metrô.
— Ca-ham, com licença, eu ainda preciso da confirmação de seus nomes…
— Vai pedir CPF e o número do cartão também? — As sobrancelhas da mulher franziram, em sinal de ameaça. — Me dá uns minutos pra eu falar com ele aqui!
Sebastian se limitou a suspirar e acenou com a mão para dá-los o devido tempo. Cassandra agarrou seu amigo pelo braço e o virou de costas para cochicharem em paz.
— Me conta de maneira rápida quem é esse doido atrás da gente e quando a gente entrou num metrô dos pesadelos!
— Eu já disse que não sei, Cass… só o vi na estação a caminho de cá. Se bem que… o nome dele era Sebastian, né?
— Sim, Sebastian… nome féi.
— Deus, o que a gente vai…
Outro choque os tirou do chão, lançando-os contra as paredes e o teto. O violento movimento fez as lentes do óculos de Cassandra racharem em minúsculos pedaços e a ponta de sua cabeça latejou de dor, seguido por um pequeno filete vermelho que descia entre os fios dourados do cabelo.
Roan colidiu contra uma das barras de apoio, a violência do baque fez o relógio dentro da maleta voar pelo chão e um incomum crack fez a dor lacerante de ter uma parte de si quebrada aumentar. Ele mordeu a língua para não gritar, e quando a turbulência parou, estirou-se reclinado em um banco, piscando os olhos repetidamente para permanecer acordado.
Entretanto, o comissário ficou na mesma posição, estático e com o corpo ereto. Ao ver o relógio, ele repentinamente se moveu e o recolheu, guardando-o dentro do uniforme. Mais uma vez suspirou, tirando do bolso um lenço branco para a mulher caída e um frasco vermelho para o homem.
— Por favor, beba. É um remédio.
Hipnotizado pela agonia de ter a carne e os músculos cortados, Roan agarrou o frasco e o virou garganta abaixo.
O líquido era adocicado e cítrico, criando a impressão de ter várias bolhas estourando pela língua. Porém, com o tempo, o sabor se tornou um ácido azedo que queimava a glote, ao ponto de forçá-lo a fechar os olhos e ranger os dentes. Ao terminar de ingerir, a dor deixou de consumir sua mente.
— O que…? — Ele olhou para a região antes machucada e a tocou. — Não dói?
— É um remédio, senhor, como falei.
Sebastian se ajoelhou para pegar o óculos de Cassandra, os fragmentos voaram de volta às devidas posições e se uniram, reconstruindo as lentes de vidro. Feito isto, devolveu-o para a mulher, que estava numa mescla de fascínio e dúvida.
— Como diabos você fez isso?!
— Lhes explicarei tudo assim que confirmarem seus nomes.
— Certo, certo, somos nós — respondeu Roan, ao ficar de pé.
— Hum… — Ele apertou a caneta e a repassou junto de duas folhas de papel. — Por favor, leiam estes contratos.
“Por meio deste contrato, a empresa EXE deseja contratar dois empregados para testarem o novo sistema NEO POWER, utilizando todas as ferramentas inclusas nele. Uma série de requerimentos são necessários para a conclusão do contrato, sendo elas:
– Atingir o nível 100
– Conseguir, no mínimo, uma habilidade EX.
– Adquirir um título.
– Atender aos pedidos de Yondra.
Após cumprirem os requerimentos, o pagamento será feito diretamente pelo comissário, dando-os em torno de 200.000. Esse valor pode ser aumentado de acordo com suas conquistas no local de trabalho.”
Ambos leram as folhas, sem se preocuparem tanto. O conteúdo era banal, muito semelhante à uma entrevista de emprego necessária para ser ingressado numa empresa. Porém, o melhor de tudo era um valor exorbitante no final, uma quantia de dinheiro que seria considerada um pagamento.
As pupilas de Cassandra dilataram ao verem o quanto seria paga.
— Que sistema é esse? Isso é piada por acaso?
— Esse sistema é o que vocês chamariam de jogo. E não, não é piada, senhora.
— Pois eu tô mais que dentro!
Ela foi a primeira a pegar a caneta e escrever sua assinatura no final da folha, rápida o suficiente para deixar seu amigo muito confuso.
— E quanto ao senhor? — perguntou Sebastian, olhando-o.
— Na verdade, eu gostaria que você me explicasse o que aconteceu, como prometido. Onde diabos estamos? O que tem lá fora? Pra onde esse metrô está indo.
— Eita, eu até esqueci disso — comentou Cassandra, encolhendo-se de vergonha.
— Pois bem… — O comissário abaixou sua boina. — Uma certa pessoa pediu para contratá-los para testar o sistema descrito no contrato. Estamos agora passando por um túnel extradimensional para deixá-los em sua parada. Do lado de fora há… como posso dizer… ah, lobos! Lobos comedores de almas. Eles estão tentando invadir o espaço do metrô para comer as suas almas, já que são os únicos que as possuem aqui dentro.
— Catapimbas — disse a mulher, batucando em todos os lugares do metrô. — O cara que projetou esse roteiro e cenário de vocês deve ser um gênio, tudo parece bem real… Ei, Roan, assina isso aí.
— Cass, tá de sacanagem comigo? — Deu de ombros, achando ridículo tudo o que viu. — Mas é… 200.000 é uma quantia muito boa…
— Aff, tu demora demais. Tu não queria algo diferente? Agora é a chance! — Ela se aproximou do amigo e agarrou a mão dele, para assinar forçadamente.
Roan ficou sem jeito, sendo controlado por uma loirinha baixinha que não o deixava em paz. Uma preocupação sobre o propósito da assinatura o incomodava, e logo essa preocupação foi respondida com o incomum movimento do metrô e a escuridão das janelas sendo preenchida por uma luz ofuscante.
Era impossível não ficar boquiaberto com a paisagem espetacular, um pôr-do-sol envolvido por um aro dourado e um campo de flores multicoloridas que preenchiam planícies pacatas, envolvidas por uma densa floresta de carvalhos altos de folhas redondas.
Aproximaram-se do vidro para apreciar a beleza natural do lugar. Pássaros voavam para os ninhos e abelhas esverdeadas terminavam de polinizar as flores que escondiam suas pétalas da escuridão que emergia do crepúsculo. Então, as portas do metrô se abriram e um leve empurrão os deixou para fora do transporte.
— Senhores, aproveitem o jogo e tenham cuidado nesta terra — avisou Sebastian, apreciando o relógio dourado por um momento. — E muito obrigado por devolver o meu relógio, senhor Roan. Prezo pelo seu sucesso.
— Espera… o relógio…? — No momento em que Roan girou o corpo para trás, o metrô voltou a andar.
A estrutura de metal do transporte se dissipou com o vento, sem sequer machucar as gramíneas e nem causar barulho. Quando se deram conta, já tinha desaparecido.
— Pera aí, a gente tá no meio do mato…? — Cassandra coçou o cabelo, mais confusa que o normal, até que uma estranha cortina cinza a chamou atenção. — Olha ali, tô vendo uma fumaça!
— Então vamos pra lá logo, não quero esperar escurecer pra saber o que tem aqui pela noite. — Roan foi o primeiro a acelerar o passo, achando que tudo ao seu redor era um sonho.
— Real, bora lá!
Por um lado, uma sorridente mulher loira saltitava por aqueles campos esverdeados, enquanto seu acompanhante só conseguia tomar cuidado onde pisava.
Seu cérebro era bombardeado por um receio, tudo à sua volta era irreal para acreditar de maneira tão simples. Por hora, acreditava que era um mero sonho e que logo acordaria. Mal sabia ele que logo logo esse sonho viria à tona em uma fria realidade.