O Invocador Sagrado - Capítulo 2
O sol desapareceu, sua pouca luz espalhou sombras entre as árvores, reduzindo a linha de visão a dois passos de distância.
A maioria dos passarinhos se acomodavam dentro das árvores, e os morcegos começavam a sair das cavernas para caçarem.
Duas pessoas atravessaram o mato e a vegetação densa, fazendo a maioria dos animais se encolherem de medo por pensarem que aquele vulto negro era um predador. Uma pena que não passava de dois assalariados.
Roan ofegava demais, sua testa estava encharcada por água.Tinha feito uma maratona inteira, sem parar para respirar ou beber água, podia até mesmo se gabar que havia superado os concorrentes da prova Ironman.
Jogou-se perto de uma árvore, as mãos pálidas e o pulmão que se retraía com dificuldade não o tirariam tão cedo do chão.
Cassandra, por outro lado, só tinha o cabelo sujo e o blazer esfarrapado, mas também precisava de um descanso.
Depois de respirarem, conferiram a distância da fumaça. Tinha aumentado de tamanho, mas ainda permanecia mais distante do que imaginavam.
Contudo, isso não significava que as coisas estavam bem. Na verdade, iam de mal a pior.
— Bem que minhas suspeitas eram certas — disse Cassandra, limpando o cabelo. — Obrigado, Roan e sua intuição vesga. Você teve a ideia genial de pegar um atalho e agora estamos no meio da mata, sujos, fedidos e com fome!
— É, estamos fodidos. Pelo menos, temos o que co… — Roan perdeu a voz, eles só tinham a maleta e a pasta preta.
Cassandra rangeu os dentes, levantou-se, puxou os cabelos e xingou tanto que até um monge ficaria ofendido.
Veias dilataram no pescoço e na testa, seus músculos tinham espasmos de ódio e seus olhos eram os de uma besta sedenta por sangue.
Ao chutar uma pedrinha no caminho, houve um estrondo gigante. Ela deu um salto para trás e ergueu as sobrancelhas de susto, mas ao averiguar o que era aquele barulho, percebeu um conveniente buraco no tronco de uma árvore, onde estava a exata que havia chutado.
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Glifo de Fúria Desbloqueado.
Rank — Passivo
Enquanto o usuário estiver num estado de raiva, os atributos de velocidade e força serão dobrados até que a barra fúria acabe. O usuário também entrará num estado descontrolado, atacando tudo o que for conveniente.
Este glifo é permanente
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Fúria adicionada aos Status.
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Você subiu de nível!
O atributo força aumentou!
O atributo velocidade aumentou!
O atributo resistência aumentou!
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Cassandra viu a tela e passou o dedo no painel, a mensagem desapareceu. Pôs a mão no queixo, então balançou o dedo na direção oposta, a mensagem voltou.
— Oh… Ohhh! — Suas pupilas brilharam conforme passava o dedo e outras notificações chegavam. — É isso! É como um jogo!
— Um jogo? — Roan estava encolhido atrás de uma árvore, assustado pelo barulho de mais cedo. — Ficou doida, Cass? Nós estamos no meio de uma selva, não num jogo…
— Você é sempre tão lerdo! — Cassandra dava pulinhos de animação, enquanto analisava os painéis amarelos. — É igualzinho àqueles jogos de aventura que jogávamos quando pequenos, onde tinha níveis, atributos e equipamentos.
Primeiro, os atributos eram as estatísticas que aumentavam o físico da pessoa, ou seja, quanto mais pontos de força tivesse, mais forte seriam seus músculos, quanto mais velocidade, mais rápido seria, e assim por diante.
As caixas amarelas eram como notificações. Se a pessoa subisse de nível, aumentasse um atributo ou liberasse um “glifo”, uma notificação surgiria no centro de sua visão.
A classe definia os tipos de glifos e os atributos que ganhava a cada nível. Novamente, arrastou os dedos no ar e uma janela de atributos abriu.
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⠀⠀⠀⠀Nome: Cassandra
⠀⠀⠀⠀Classe: Bárbaro
⠀⠀⠀⠀Nível: 2
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⠀⠀⠀⠀⠀ Força | 16
⠀⠀Resistência | 14
⠀⠀ Velocidade | 12
⠀⠀⠀⠀⠀ Mana | 1
⠀⠀⠀⠀⠀ Fúria = 1%.
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⠀⠀⠀⠀⠀◊
⠀⠀⠀⠀⠀◊
⠀⠀⠀⠀⠀⧫ Glifo de Fúria.
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— É realmente bem simples… — Roan, menos amedrontado, saiu do esconderijo. — Mas como subimos o nível?
— Ora, se levarmos em conta que nos jogos tínhamos que matar alguma coisa para subir de nível, então… — Cheia de curiosidade, ela caminhou até a árvore.
Atrás do tronco, encontraram um cadáver de uma lebre verde, com asas no lugar das patas dianteiras e com orelhas de gato.
Mesmo pela aparência bizarra, Cassandra babava por imaginar o gosto da carne nos lábios, sem demorar para agarrar o corpo do animal.
— Hehehe… deve ser uma carne da boa…
O problema real eram as ferramentas para abrir o animal. Encarou os arredores, apenas pedras e paus, seria obrigada a cozinhar à moda das cavernas; com um graveto e pedra em mãos, passou a raspar a ponta do graveto. Depois de afinar, perfurou a garganta do animal com cuidado.
— Roan, faz um fogo pra gente comer isso que nem churrasco!
Sabia que antes de assar ou cozinhar a carne deveria tirar todo o sangue, por isso fez o máximo de estrago no pescoço para arrancar a cabeça com as mãos.
Em seguida, pendurou-o pelas pernas em uma árvore para que o animal ficasse de ponta cabeça e o sangue escorresse.
Após muitos minutos, Cassandra apanhou o corpo do animal e viu que Roan tinha enfim acendido uma fogueira, mas por algum motivo ele se encolheu durante uma troca de olhares.
Aproximou-se do fogo, sua barriga não parava de roncar e os lábios salivavam. Arrancou uma das pernas da lebre, segurando-a no espeto poucos centímetros acima das chamas.
Ainda assim, o olhar do amigo sobre si incomodava. Com o rosto ensanguentado e a roupa rasgada, talvez o motivo fosse óbvio.
— O que foi? Viu um monstro por acaso? — Cassandra jogou uma pata arrancada para ele. — Come logo, senão vai ficar podre, amigo de carne. Isso deve tá com um gosto tão bom…
— Sim, senhora… — Passou um tempo assando a carne, receoso de comê-la por conta da aparência ruim.
O rosto animado de Cassandra despencou para um totalmente terrificado no momento em que engoliu. Ela cuspiu uma bola de pelos chamuscada, antes de vomitar o restante da carne no chão.
— Concordo plenamente… — Roan jogou o pedaço fora antes de sofrer o mesmo destino.
Farta de comer aquela porcaria, Cassandra olhou para a maleta preta do amigo e com um senso de esperança abriu-a. Revirou o conteúdo dentro, incluindo os papéis, lápis e borracha. No meio da bagunça, encontrou uma gloriosa e sedutora barrinha de cereal.
Segurou-se para não comer tudo, logo partiu em dois pedaços iguais, um para ela e para o amigo. Não era o suficiente para satisfazer a fome, mas ela teria que se contentar com aquilo pelo resto da noite.
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Glifo de Sobrevivência Desbloqueado.
Rank — F
O usuário sofrerá menos efeitos de fome, sede, calor e umidade.
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| Deseja equipar o glifo agora? |
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Um botão vermelho e azul ficaram dispostos na tela, não hesitou em tocar no verde. O ronco na barriga diminuiu, seus músculos não se encolhiam de frio, até o ar ficou leve de respirar.
Cassandra não parava de pensar nas possibilidades e os tipos de glifos que existiam. Internamente, desejava subir os níveis e realizar o máximo de ações possíveis para descobrir os resultados. Aos poucos, ela se viciava em um inocente jogo que a destruiria.
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Os animais seguiam os instintos em busca de sobreviver. Viver na selva não era muito diferente de usufruir desses instintos, já que o ser humano também era um animal como todos os outros.
Depois de dias em um ambiente selvagem, era inevitável que uma pessoa retornasse a um estado primitivo para garantir sua própria sobrevivência, assim ele criaria maneiras de se sustentar num lugar hostil pelo máximo de tempo.
Este era o exato caso de Cassandra, que aos poucos abandonava o senso comum e civilizado para se tornar uma máquina de matar.
Com um espinho afiado nas mãos e uma presa na mira, não hesitava em abater.
Apontou o projétil para o matagal, o farfalhar das folhas causava arrepios nos braços, o som dos passos sobre a terra fazia sua barriga roncar mais.
Um pobre passarinho preto voou e foi imediatamente atingido, empalado contra o chão.
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O Glifo de Arremesso evoluiu.
Rank F → Rank E
A mira e força do usuário serão melhor ajustadas.
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Apanhou o corpo e voltou para a mata, à caminho do “acampamento”, que era definido por uma fogueira.
Os últimos dois dias se resumiam a sair para caçar pela manhã, caminhar uma boa distância e então descansar para repetir o processo no dia seguinte.
Poucos minutos depois, chegou ao lugar que fizeram a parada, era perto de um lago. Lá, Roan segurava um saco acima do fogo, que expelia um maravilhoso cheiro de frango assado.
Às vezes, retirava uma ave para depenar aos poucos e puxar os pedaços crocantes da pele.
— Vai demorar? — Cassandra se sentou perto da fogueira com o “lanche da tarde” nas mãos, enquanto observava cada minucioso movimento.
— Tenha calma, eu não sou profissional nisso, mesmo que o glifo ajude… — Roan passou o dedo para o lado, em seguida uma janela amarela apareceu.
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Glifo de Remoção Animal
O usuário pode facilmente esfolar/depenar animais com ferramentas ou mãos nuas.
Rank – E
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Durante o percurso ao vilarejo, ele descobriu outras utilidades para glifos. Primeiro, existiam dois tipos: permanentes e comuns.
Os permanentes eram habilidades especiais que apareciam se o usuário cumprisse certos requerimentos muito específicos, como o caso de Cassandra, que era “ficar com muita raiva”.
Os comuns surgiam de ações simples, como arremessar um objeto ou aguentar pouco tempo sem comer. Estes possuíam um número limitado de quantos poderiam ser usados simultaneamente e ficavam dispostos abaixo dos números de atributos. Usá-lo por muito tempo, assim como repetir a mesma ação, faria o glifo evoluir para o próximo rank.
Enfim, o café-da-manhã estava pronto. Após degustarem um dourado frango assado, continuaram o caminho.
Roan encarava as árvores e o chão com desconfiança, escutava resmungos estranhos, um “Gye” ou “Gigigi”, e às vezes sentia que alguém o observava pelas costas.
Porém, seu medo real não era desses animais, e sim de Cassandra, que atirava espetos de madeira em qualquer coisa que se mexesse e abria um largo sorriso por cada presa abatida. Logo percebeu que tanto a estatura quanto a aparência dela mudaram de forma drástica.
O cabelo era rebelde e desgrenhado, crescia para todos os lados; os passos, antes graciosos, eram brutos e rápidos.
Até o físico era diferente, o corpo ficou estranhamente robusto, os músculos eram maiores e às vezes ela reproduzia sons animalescos; selvagem e bárbara eram palavras que a definiram muito bem.
Roan, ao contrário da mulher das cavernas, não foi contaminado por aquela loucura e manteve o estilo esguio.
O que o incomodava era a parte dos atributos; desde que os descobriu, não tinha subido um nível, muito menos sabia que tipos de glifos a classe poderia oferecer.
— Tem algo ali… — Cassandra colocou a mão no caminho e apontou para uma pequena fenda no chão.
Um rabinho escapava pela fenda, balançava com o vento e tinha uma cor vermelha. Quando a cabeça de uma pequena cobra saiu dali, arremessou um espinho, mas por centímetros errou o alvo, que escapou para o esconderijo.
— Bicho desgraçado! — resmungou, voltando a caminhar.
“Uma cobra…?” Pensou Roan, que carregava a maleta consigo. “Ah, agora que lembrei, será que ainda tenho aquele desenho?”
Depois de um pouco de procura, encontrou o desenho ao fundo da maleta. Suspirou de alívio, o papel só estava um pouco amassado.
Pôs os olhos na imagem, imaginou como seria se tivesse cores e se pudesse ter detalhado mais. Então, uma janela amarela apareceu.
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| Deseja invocar a criatura? |
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Olhou para um botão verde e vermelho, só que, sua escolha era óbvia, logo ele apertou o botão verde.
O chão brilhou, um círculo foi traçado pela luz, com quatro setas apontadas para os pontos cardeais; na seta norte havia um sol, enquanto na seta sul uma lua.
Por fim, a parte central era preenchida por um círculo menor, com centenas de linhas que cruzavam entre si.
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Glifo de Invocação Desbloqueado.
Rank — F
O usuário pode invocar uma criatura a partir do símbolo de Sonnemond para protegê-lo. A criatura permanecerá no mesmo plano que o Invocador até que seja atingida por um golpe fatal ou suas ordens forem cumpridas. A mana será reduzida em 30% por invocação.
Limite de Invocações: 1
Este glifo é permanente.
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Glifo de Comando Desbloqueado.
Rank — F
O usuário tem a capacidade de recitar ordens para toda criatura submissa a ele. Baseado nessas ordens, o alvo recebe atributos bônus ou efeitos extras. No entanto, a ordem também pode causar efeitos negativos.
Este glifo é permanente.
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Quando o brilho cessou, abriu os olhos e ficou de queixo caído. Uma cobra, de escamas marrons e listras negras, estava logo à sua frente. Ela balançava o chocalho pontudo, com um chifre amarelado no centro da cabeça.
— Te encontrei, cobrinha filha da puta! — Cassandra brandia sua arma e ameaçava disparar a qualquer momento. — Hoje vai ter sopa de cobra pra janta!
Antes que algum desastre acontecesse, Roan agarrou os braços dela, mas perdeu para a força hercúlea da mulher, que o arrastou pelo chão.
Relembrando da segunda habilidade, ordenou: — Fuja!
No momento em que ia empalar sua presa, a cobra correu para a mata e sumiu de vista. Cassandra partiu o espeto de madeira em suas mãos nua por puro ódio.
O homem suspirou aliviado, preferia muito ver a fúria da mulher ser desperdiçada contra uma árvore do que contra a criatura de mais cedo; pelo menos, pôde concluir que Cassandra não era amiga da natureza. Porém, ela levou a cabeça para o lado, aproximando-se devagar da mata.
Roan continuava sem entender, até escutar o ouvir um gemido agudo, que certamente não era da amiga. Levantou-se e correu para ver a cena, havia um odor fedorento, o chorume de um cadáver.
A mulher estava de frente para dois anõezinhos verdes, cuja cabeça era maior que o corpo, os olhos eram largos e avermelhados.
Os dois andavam seminus, cobriam as partes com tangas e seguravam tacos de madeira, em seus pés estava uma cobra avermelhada, de ponta cabeça e com o corpo amassado.
Cassandra estalou os dedos, o crack fez os homenzinhos estremecerem. Uma aura surreal a rodeava, tão densa e mortal os pobres goblins congelarem. Roan engoliu seco, igualmente assustado.
— Foram vocês, não foram…? — Cada passo fazia seus inimigos recuarem em dobro. — Eu nunca fiquei com tanto ódio como agora…
Mesmo que tentasse suspirar para conter a ira, era impossível segurar, os malditos roubaram sua presa.
Avançou como uma besta selvagem, com passos rápidos e fortes contra o chão. O goblin tentou contra-atacar com um corte da adaga, mas o taco se partiu ao tocar a pele da bárbara.
Um punho desceu contra a cabeça do primeiro goblin, empurrando-o contra o chão e gerando uma pequena cratera no lugar. Sangue se espalhou para todos os lados, manchando os fios loiros com um tom carmesim.
Ela agarrou a criaturinha pela perna, jogando-a na direção de uma árvore, onde quebrou os ossos do monstro.
O segundo goblin procurava uma maneira de escapar, suas pernas tremiam diante daquela fera.
Olhando para Roan, ergueu o taco e partiu para cima dele, porém antes de sequer chegar perto, o chão irrompeu e uma cobra marrom abocanhou a boca da criatura, perfurando a garganta e matando-o na hora.
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Você subiu de nível!
O atributo força aumentou!
O atributo velocidade aumentou!
O atributo mana aumentou!
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Pela primeira vez tinha subido de nível, e tudo por causa da invocação. Roan abriu um largo sorriso, abraçou a invocação que retribuiu o gesto ao se enrolar nele. Mas, naquele mesmo dia, viu coisas das quais não queria.
Cassandra realizava atrocidades contra o pobre goblin, tantas que ele desviou o olhar de puro medo. Gravou no próprio coração uma coisa que jamais poderia esquecer: nunca irritar Cassandra.
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O dia amanhecia com um belo sol no horizonte. Um guardinha se sentou numa cadeira perto do arco que dividia a pequena vila do mundo exterior. Com uma armadura apertada e uma lança apoiada ao ombro, observou a paisagem e os pássaros.
— Tão bom assim, pacífico e calmo…
Sorriu, espreguiçou-se na cadeira e fechou os olhos por um momento, quase cochilou por estar confortável no assento. A única coisa que interrompeu seu sono foram passos, forçando-o a acordar.
Encolheu-se no instante seguinte, revirou os olhos de medo e tremeu da cabeça aos pés. Uma mulher encharcada de sangue se aproximava, com os olhos tão abertos que poderiam enxergar sua alma.
O guarda não aguentou, acabou por colapsar no lugar em que estava. Cassandra chegou perto, agachou-se e olhou para o homem.
— Ele morreu?
— Acho que é só um desmaio… — respondeu Roan, ao lado dela.
— Então bora aproveitar e passar logo, ninguém tá vendo!
Ambos passaram pelo arco e receberam inúmeros olhares amedrontados, mas ninguém ousou se aproximar.
A primeira coisa que pensaram foi arranjar roupas novas, já que utilizavam trapos como roupa. Cassandra viu bem de cantinho uma lojinha que tinha algumas peças numa varanda.
— Bora começar aqui! — disse, chutando a porta do estabelecimento.
Horas depois, o guarda apelidado de Toninho recobrou a consciência e voltou ao seu posto. Tinha calafrios toda vez que relembrava da pessoa que assombraria seus pesadelos mais tarde, esperando que fosse uma alucinação sua.