O Invocador Sagrado - Prólogo
Centenas de milhares de monstros assombrosos marchavam no horizonte escuro. Seus olhos eram largos, os chifres pontudos apontados para os corações dos covardes, asas para caçar os que se escondiam, peles mais sombrias que a noite e formatos sobrenaturais que não eram daquele mundo.
Na frente do exército, um gigante esmagava os montes e montanhas com pisoteadas que causavam terremotos no lugar. Ele era o general dos demônios, e demonstrava uma pose de imponente com os chifres curvados e um grandíssimo machado de gume roxo que pendia em suas costas.
Nenhuma pessoa teria a coragem — ou loucura. — suficiente para enfrentar tantas criaturas demoníacas, exceto por um único homem. Ele estava de pé no topo de uma colina, a pesada armadura sobre os ombros reluzia em um brilho cegante, enquanto uma aureola metálica flutuava sobre o capacete.
— Jigral, você não passará! — Sua voz trovoou nos distantes cumes. — E seu exército não marchará em direção às terras de Ganath!
Risadas debochadas ressoaram entre os grupos de demônios numa cacofonia infernal; “Quem ele acha que é para impedir o Rei do Submundo?”, “Não será um simples mortal que parará nosso ímpeto!”. O gigante levantou a mão e calou o vociferar irritante de seus subordinados, então apanhou o machado nas costas e o balançou contra o ar, limpando o céu com ondas de vento poderosas.
— Quanta hipocrisia, Zapion. Olhe para você, ingênuo o suficiente ao ponto de pensar que pode me derrotar. Os mortais que você tanto protege não possuem a mínima noção do que fazem, aquela terra é minha por direito! Pena que você será a primeira vítima, tentando enfrentar o meu exército sozinho.
O homem permaneceu de pé, nem mesmo os tremores ou o medo poderia abalar sua derradeira bravura. O exército de demônios possuía um ar triunfante, festejavam conforme o gigante falava, batiam as próprias lanças umas nas outras em sinal de uma arrogância demonstrada quando o oponente é verdadeiramente vencido.
Porém, essa reação desapareceu no instante que Zapion ergueu o cajado para o alto.
O ar se encheu com partículas douradas, a pesada atmosfera foi preenchida pelo resplendor de dezenas de luzes em meio ao véu roxo do céu. Um poder divino inundou cada partícula da abóbada celeste, tornando-a em um gigantesco lampejo de proporções titânicas.
— Eu não estou sozinho.
O cajado bateu no chão, centenas de penas brancas voaram ao vento, o som de milhares de asas agitadas ecoou e fez os mais maliciosos demônios tremerem. Eles inundaram o outro horizonte, criaram um contraste de uma infinidade de cores cinzentas por vestirem o branco mais puro e serem envolvidos numa aura celestial.
Como se não bastasse, a ponta do cajado de Zapion brilhou, linhas foram traçadas no ar, e estas deram origem a quatro setas, um sol e uma lua. O símbolo girou, chamas cobriram os círculos do sol e da lua e um canto distante de um pássaro trouxe a paz aos distantes espectadores daquele embate.
Uma enorme ave saiu do turbilhão, suas penas coloridas remontavam um arco-íris de chamas e escondiam tudo o que tocavam sem queimá-las, cujo fulgor abraçava as mais perturbadas mentes. Suas asas graciosas lançavam ventanias calorosas, que curavam e reviviam os pobres animais e humanos que foram pegos pelas garras dos carniceiros demônios.
Uma luz se acendeu nas costas de Zapion, asas flamejantes cresceram e geraram um rastro vermelho por onde passavam. Ele alçou voo junto a fênix, ascendeu à uma altura que sua forma se distinguiu em um farol em meio aos grandes exércitos.
— Meu amigo, este será seu último dia de tirania. — As asas se abriram e cresceram, o dourado do céu se alterou para labaredas dançantes. — Queda Celestial.
Dezenas de pilares chamejantes caíram em direção ao solo, o choro desesperado de milhares de demônios incinerados foi aclamado em uma benção. Vozes emergiram da frente dos exércitos, gritos aterrorizados e cheios de adrenalina os contaminaram uns aos outros.
Explosões surgiam pela campo de batalha e levavam consigo muitos combatentes, mas o confronto principal ocorria nas alturas, entre Jigral e Zapion. Os ataques do machado do gigante causavam agitações sísmicas que poderiam partir o planeta em dois, mas eram bloqueados pelo resistente cajado do homem, gerando ondas de choque que repercutiam pelo continente.
A vida naquela região, antes abundante e tranquila, foi varrida em um sopro. Vulcões se elevaram do fundo da terra e despejaram lava em meio a troca de golpes constantes, relâmpagos choviam em conjunto das diversas magias disparadas pelas duas entidades.
Os clamores dos mortais que assistiam eram diminutos se comparados à motivação dos anjos e demônios. Era uma enlouquecedor imaginar que seres celestiais e infernais conseguiam conceber uma chacina tão bonita e macabra.
Obcecado por uma sede de sangue bárbara, Jigral ergueu seu enorme punho em direção a Zapion, acertando-o com um golpe aterrador e o arremessando em direção ao chão. Zapion ergueu o cajado e disparou uma rajada de chamas amarelas, derretendo a pele até os ossos.
Porém, nem por isso parou o general dos demônios interrompeu sua fúria. Suas mãos o agarraram e o arremessaram contra um dos vulcões, espalhando pedras de magma com o impacto e convertendo as outras planícies em uma arena de fogo.
Zapion, antes enterrado no fundo do oceano de magma dos vulcões, acumulou forças para sair daquela prisão e voou na direção do gigante. Sua mão direita fez diversos gestos e o cajado se moveu em ritmo, tornando o vento se tornou seu subordinado e originando furacões devastadores cuja força era tamanha que qualquer coisa que passasse por perto era trucidada por um tornado de lâminas invisíveis.
Jigral, com o abanar da mão, dispersou a ventania. A potência de seu punho foi tamanha ao ponto uma lufada de vento varrer os oceanos distantes e parte do exército angelical.
Ambos ofegavam, o calor insano mesclado ao ambiente cada vez mais escasso de ar tornava insuportável caminhar. Era impossível ver horizonte ou sequer o azul do céu, que era coberto por nuvens negras. Relâmpagos rugiam, a fúria do centro do planeta se manifestava em gêiseres de magma, a terra nem por um momento deixou de tremer.
Mal se sabia o que acontecera aos exércitos em meio ao conflito. Simplesmente desapareceram, levados pelo combate de seus líderes.
O cajado de Zapion virou pó, as asas perderam as forças e viraram nada mais que minúsculas labaredas e a armadura destroçada revelou os fios loiros pela lateral do capacete.
Jigral havia encolhido ao tamanho de uma homem, seus chifres estavam partidos, o cabelo preto chamuscado e as escleras roxas só conseguiam repassar uma adrenalina enlouquecida. Porém, aquele olhar sucumbiu ao cansaço, substituído por um rosto exausto, um rosto que refletia seu próprio limite.
— Zapion. — Ele se pôs de pé e soltou o machado. — Meu amigo, paremos com essa batalha fútil.
O queixo de Zapion caiu, nunca esperava que aquela pessoa falasse de “parar de batalhar”. Contudo, seu estado era pior do que o do inimigo, por isso se permitiu escutar o que ele tinha a dizer escutar.
Jigral estendeu a mão na direção dele, e com uma expressão melancólica disse: — Por que lutar? Poderíamos desde o início fazer isso juntos. Os mortais passariam a viver num eterno paraíso, pense só! Nosso combate nada fará, mas unidos podemos fazer muito mais. Amigo, nós somos imbatíveis e nosso império duraria para sempre! O que me diz?
O homem permaneceu quieto, seu silêncio dava lugar ao barulho da lava e dos trovões. Num ato de boa fé, agarrou a mão de Jigral, que sorriu com o gesto.
Porém, a luz amarela retornou, prendendo os dois numa esfera dourada. Zapion, com um sorriso tristonho, abaixou a cabeça.
— Me desculpe.
— Seu… seu… traidor! — Uma explosão precedeu o urro furioso de Jigral, que por dentro queimou com aquela energia. — Eu irei retornar, maldito! Guarde minhas palavras, eu irei dominar Ganath e devastar esse mundo, não importa quantas vezes você reencarne! Me vingarei, e você verá este plano que tanto ama em chamas!
A energia dourada contaminou todo o corpo de Jigral e o reduziu a cinzas, deixando apenas uma pequena bola negra para trás. Acorrentado por linhas amarelas e fincado no topo daquele monte, Zapion soltou seu último sorriso, antes de desaparecer em poeira levada pelo vento.
O planeta se acalmou, os ventos cessaram, as nuvens pararam de trovejar e os vulcões adormeceram. Os mortais que presenciaram aquele embate criaram uma lenda desde então, um conto épico que retratava as duas figuras.
Após tanto discutirem, o continente foi dividido entre as raças, as artes sombrias se tornaram repugnantes e uma ordem de paladinos se formou, inspirada pelo cavaleiro de armadura dourada. Por milênios, aqueles que proferiam as palavras de Jigral foram caçados e expurgados, ao ponto dos resquícios do velho mundo serem apagados.
O tempo passou, os milênios correram, mas as lendas de uma guerra divina permaneceu, mesmo que os poderosos tentassem eliminá-la da história. Essa lenda estava encravada nas entranhas de Serpentina, um legado de um cavaleiro de conduta santa contra o mal absoluto. A lenda do Invocador Sagrado.