O Legado Negro - Capítulo 1
Passaram-se duas semanas após o incidente. Apesar das constantes investigações do governo brasileiro, nenhum resultado conclusivo foi divulgado. Os restos da nave de Eneauf haviam sido recolhidos. A complexidade do objeto gerou diversas teorias da conspiração. Enquanto uns falavam em poderio americano, outros falavam de alienígenas e um terceiro grupo acreditava em seres submarinos.
A histeria coletiva, junto da pressão da mídia sensacionalista levou o governo brasileiro a tomar uma decisão. Os três poderes aprovaram verba para a uma investigação emergencial. A principal função era fornecer ao presidente e aos ministros informações estratégicas para tomada de decisão. O comando das investigações ficou a cargo do diretor-geral Luís Alves de Lima e Silva.
Este general da reserva veio de uma linhagem de militares. Seu bisavô foi soldado, seu avô sargento e seu pai coronel. Não por acaso, quando ele nasceu, obteve o nome em homenagem ao patrono do exército. Desde que se lembra, Luís foi criado em um regime ferrenho, onde aprendeu a valorizar a “tradição e os bons costumes” sem oprimir minorias. Com o tempo, aprendeu a respeitar os homossexuais. Extremamente rígido e religioso, subiu rapidamente na hierarquia após ter se formado como oficial. Obedecia mais do que questionava. Um homem ideal para a função.
As investigações se intensificaram desde que o general assumiu. Ele trabalhava sem descanso para resolver o mistério. A cada dia que se passava, o velho militar ficava mais próximo de encontrar as únicas testemunhas do incidente.
Enquanto o governo trabalhava para melhorar sua imagem, outras pessoas aproveitavam as férias. Luís, junto de sua família, aguardava ansiosamente a partida do avião. Ele tinha reservado um pacote de cinco dias. Queria que sua filha aproveitasse ao máximo. A pequena era a razão de sua existência. Toda vez que a via, o rapaz sabia que sua vida valia a pena.
O avião decolou. Foi uma viagem rápida e tranquila. Chegaram ao Rio de Janeiro em meio a um dia ensolarado, com o céu limpo e uma temperatura amena. Mal chegaram ao hotel e saíram para almoçar em um restaurante que servia frutos do mar. A filha não se continha de ansiedade, queria muito ver o Cristo.
Após a refeição, a família chamou um táxi que os levou até o trem do Corcovado. Ao sair do carro, Juliana saiu em disparada. Luís correu e a apanhou pela mão. Ao contrário de sua esposa, lançou um olhar reprovador para a filha. Um pouco irado, se conteve, preferindo não dar bronca na menina para não estragar o clima. No hotel, conversaria melhor com ela.
O trem partiu. O sorriso da filha aumentava a cada metro adiante. Alguns minutos passados e eles chegaram aos pés do Cristo. Observaram a suntuosa estátua, bem como a maravilhosa vista lá de cima. Viam a praia, o Pão de Açúcar, boa parte da cidade… Luís chorou ao ver a alegria de sua filha. Não se lembrava da última vez que se emocionou tanto, talvez no nascimento dela. Apesar de reprimir as emoções, tornava-se mais sentimental quando estava em companhia da família. Um dia que será eternamente lembrado.
Em Osasco, Sanderson passeava com Eneauf. Eles entraram em uma loja de roupas e naturalmente, chamaram muita atenção. Foi muito desconcertante para a mulher sentir que era observada daquele jeito. Alguns olhares curiosos enquanto outros eram hostis. Entretanto, é preciso voltar um pouco para prosseguir com a estória.
Eneauf acabou se dando bem com a “Fuefa”, apesar de não se acostumar com o jeito escandaloso dela. Tirando esse incômodo, sentiu-se muito acolhida. Adorava comer e na Terra, experimentou coisas que jamais imaginou. Sanderson tirou proveito disso e a serviu com todo tipo de doces e sobremesas. O que a alienígena mais gostou foi o café e o chocolate. O produto do cacau a levou ao paraíso. Ao provar algo tão saboroso, seu cérebro soltou uma carga descomunal de hormônios prazerosos. Ainda pura, ela ouvia de outras mulheres que ela não tinha provado o melhor da vida. Mas ela havia provado o chocolate! E sabia que dificilmente alguma sensação seria tão gostosa quanto aquela.
Para a surpresa dela, o rapaz se comportou muito melhor do que o esperado. Apesar de uma ou outra cantada inconveniente, ele a tratou com cortesia. Quanto mais a conhecia, mais ela o fascinava. Uma mulher inteligente, meiga, com uma voz melodiosa e uma avantajada bunda arredonda que Sanderson não conseguia deixar de sentir “calor” quando a olhava. Eneauf sabia das intenções dele, mas ela não conseguia retribuir.
Sanderson queria mostrar seu mundo para ela. Sendo lilás, não teria como. Então, após muito pensarem, a dupla chegou a uma conclusão de como resolver o problema. Para tal, chamaram Luís. A ideia era retirar o sistema de camuflagem da armadura e passar para algo neutro, que ela pudesse usar sem despertar suspeitas. O engenheiro sugeriu um relógio e assim foi feito. Ela explicou todo o funcionamento holográfico do sistema e em dois dias obtiveram êxito.
– Usam com frequência? – perguntou Luís curioso.
– Não, – respondeu ela – necessita muita energia. Em baixa luminosidade, não há o que refletir e gera um efeito estranho. Sem contar que em caso de grandes luminosidades repentinas, não se adapta com tanta facilidade. Também não fica natural ao efeito da chuva, já que a distorção do meio aquoso para o aéreo distorce a luminosidade e a camuflagem fica mista, mostrando o que não deveria. Por isso só usamos como defesa e com condições específicas.
– Entendi… E como faz para ocultar sua nave? Não lembro de termos falado sobre isso.
– A nave pode se ocultar por holograma, embaralhando sistema eletrônicos ou simplesmente não ser vista. No caso de sua tecnologia atual, nem captam ela. Muito rudimentar.
Eneauf colocou o relógio em seu pulso esquerdo. Sanderson insistiu na questão afro-brasileira. Em menos de cinco segundos, a pele lilás foi completamente substituída pela pele marrom. Os pelos roxos se transformaram em castanhos escuros e os olhos laranjas tornaram-se verdes.
Luís observou perplexo. Precisava estudar aquela tecnologia alienígena. Pensou com si mesmo que havia muito para se conhecer. Seu amigo pensaria isso, se não estivesse tão encantado com a nova aparência de Eneauf. Olhou-a de cima a baixo e se conteve para não falar o que se passava em sua cabeça.
Quando ela se viu no espelho, estranhou a imagem. Não conseguia se enxergar daquele jeito, mas se conformou. Estava cansada de ficar resguardada.
– Podemos ir agora? – perguntou ela andando em direção à porta.
Quando saíram, Sanderson mostrou os principais pontos de Osasco, que não são muitos. Apresentou a ponte metálica, o museu da cidade e o calçadão. A decepção não foi maior porque a alien conheceu o cachorro-quente. Uma refeição estranha, mas muito saborosa! Ela comeu três de uma vez.
– Isso é feito de cachorros? – perguntou entre as mastigadas.
– Não… Nem sei por que tem esse nome.
Nos dias das folgas do hospital, ela foi apresentada a novos locais. Conheceu o parque Villa-Lobos, Trianon, Masp, Parque Ibirapuera, Avenida Paulista, o bairro da Liberdade e outros pontos turísticos de São Paulo. Foram experiências muito agradáveis. Entretanto, algo a incomodava. O cabelo dela estava descuidado. Mesmo que pudesse disfarçar com a reprodução holográfica, a textura a incomodou. Bastante vaidosa, se queixava do próprio desleixo.
– Olha… Acho que os produtos de cabelos cacheados podem te ajudar. Não deve ser a mesma coisa lá de Zentria, mas pode vir a calhar.
– Eu não tenho dinheiro.
– Você é minha hóspede. Eu quebro essa para você!
– E você vai comigo?
– Tranquilo. Amanhã a gente vai.
No dia seguinte, enquanto Luís viajava com sua família, os amigos saíram para as compras. Depois da excruciante espera na loja de cosméticos, Sanderson sugeriu verem roupas, já que as de sua mãe ficavam largas em Eneauf. Passaram em diversas lojas diferentes. Na maioria dos lugares, as vendedoras demoravam para atendê-los. Por ser um dia cheio, a mulher acreditou se dever a este fato. Porém, entraram em uma loja mais “requintada” e naturalmente chamaram muita atenção. Foi muito desconcertante para a mulher sentir que era observada daquele jeito. Ela estranhou como seguranças e vendedoras fixaram o olhar sobre ela. Incomodada, se sentiu espreitada por inimigos. Alguns olhares curiosos enquanto outros eram hostis. Constantemente vigiada, decidiu não comprar mais nada por causa de alheios estragaram seu humor. Quando estavam prestes a sair, foram abordados por um segurança que perguntou:
– Posso ver a nota fiscal?
– Você pede para todo mundo que compra aqui? – retrucou Sanderson disfarçando a irritação.
– É que eu não vi vocês passando no caixa. – Respondeu o segurança. Outros dois já se aproximavam.
– Então você deveria prestar a atenção no seu trabalho ao invés de constranger os outros! – falou Eneauf lançando um olhar ameaçador. Para evitar que as coisas saíssem de controle, Sanderson apresentou a nota fiscal.
– Então ainda existe disso aqui?! – questionou a alienígena logo depois de terem saído da loja.
– Lembra quando eu disse de você ter traços como os meus? Então… – uma breve pausa – Isso faz de você uma negra. O que desperta o pior das pessoas, sendo elas brancas ou da mesma cor. É normal, já está estruturado. – Disse em um tom desesperançoso, de quem se acostumou com a condição desgraçada.
– Não deveria achar essa idiotice normal!
– Quando criança, eu sempre me imaginei crescendo na vida e me tornando branco, sabia? Afinar o nariz, alisar o cabelo, mudar a cor dos olhos…
– Isso é mais idiota ainda! – disse ela severamente – Lá na loja só vi gente clara nos produtos, assim em como nos programas de televisão. Aceite-se como é e lute pelo seu espaço. Querer parecer com eles só vai ajudar a perpetuar toda essa nojeira!
– Você tem razão, Eneauf! Vou superar a todos! – A irritação acompanhou a veracidade de suas palavras.
– Cuidado para não se tornar o monstro que você despreza…
– Além de linda, você é muito inteligente, sabia?
– Vamos para casa? – perguntou ela para mudar de assunto.
– Vamos!
No Rio de Janeiro, a família retornava para o hotel. O trajeto estava muito lento devido a uma tentativa frustrada de roubo a banco que gerou um enorme engarrafamento. Não muito longe dali todos podiam ouvir os disparos. Assustados, motoristas tentavam fugir de ré. Um tiro acertou a lataria de um dos veículos parados. Muitas pessoas corriam desesperadamente e Luís decidiu fazer o mesmo. Desceu do táxi e ajudou sua esposa a desembarcar. A mulher pegou a filha nos braços. Mais disparos! A família correu por cem metros que pareceram com quilômetros. Disputavam ombro a ombro com outras pessoas que fugiam na mesma direção. Os disparos pareciam cada vez mais próximos. O terror cresceu com o som das sirenes e gritos dos policiais. Os civis se abrigavam onde podiam, mas o temor de balas perdidas deixou muitos à mercê da sorte. Vendedores não queriam abrir suas lojas com medo de serem atingidos. Por sorte, um bar abrigou muitas pessoas. Entre essas, Luís e sua família.
– Obrigado! – Agradeceu Luís arfando. Outra bala perdida. O vidro do bar não resistiu ao calibre do fuzil. Gritos no estabelecimento e sangue escorrendo no chão. O rosto da filha destroçado tombou sobre o corpo agonizante da mãe perfurada na altura do tórax.
– AAAAAAAAAAAAAAAHHHHH! – Berrou Luís ao mesmo tempo em que abraçava sua esposa. As lágrimas desciam dos olhos em meio a respiração descompassada. Os braços trêmulos agarram o corpo moribundo. – Por favor, fiquem comigo! – disse ele chorando copiosamente – ALGUÉM CHAME UMA AMBULÂNCIA! DEUS, SALVE ELA!!! Traga minha filha de volta… Por favor, Deus! – Mas Deus não respondeu as preces. O deixou viúvo e sem sua filha. Quando o socorro chegou, já era tarde demais. Um dia que será eternamente lembrado.
Seu mundo acabou… Em estado de choque, foi levado para o hospital. Despertava aos berros sempre que o calmante perdia seu efeito. Via a mesma imagem ao acordar. O sangue, os corpos esburacados, a própria impotência. Não conseguia falar, não queria comer ou beber nada. A polícia teve de contatar os familiares sobre o ocorrido. Luís não fazia nada. Foi levado de volta a Osasco por sua mãe, que viajou para o Rio logo após saber do incidente.
Ele ficou trancafiado em sua casa, sem receber ninguém. Sanderson insistiu diversas vezes, sem obter sucesso. No dia do velório, Luís recusou-se a entrar na sala onde estavam os caixões. Não queria ver o corpo de sua esposa e o pequeno caixão lacrado de sua filha. Seguiu o cortejo fúnebre até a cremação. Durante todo o caminho, chorou em silêncio. Seu olhar, antes sempre alegre, foi substituído por uma expressão fria e desalmada, como se a humanidade o tivesse abandonado.
Quando viu os caixões entrando na fornalha, teve vontade de gritar e esmurrar tudo e todos ao seu redor. Mas ele se conteve e apertou as próprias mãos com força. A respiração era lenta, porém agressiva. Ao receber as cinzas, respondia os cumprimentos da pessoa por educação. Achavam-nos falsos e desnecessários. Por mais que as palavras estivessem floreadas, não trariam sua família de volta. Viu gente que não o encontrava a muitos anos. Ter de ouvi-los o incomodou, sentia nojo. O pior, é que seu melhor amigo, não disse nada durante aquele dia.
– Esperava mais de você, Sanderson.
– Quando não tenho o que falar, eu simplesmente não falo.
– Sempre soltou uma piadinha desnecessária. Hoje, quando mais precisei, me decepcionou.
– Vou me manter em silêncio.
– Vou ficar na sua casa por um tempo. – falou Luís secamente.
O viúvo permaneceu como hóspede de seu amigo por um mês. Ele perdeu o trabalho e se isolou do mundo. As únicas palavras que saíam de sua boca era para responder as tentativas frustradas de Sanderson em alegrá-lo. Pouco tempo depois, retornou para sua própria casa. Eneauf o visitava quando Sanderson estava no hospital. Faziam companhia um para o outro. Mesmo que não fossem de falar muito, o engenheiro sentia-se bem com a presença dela.
Um dia, após um jantar ela perguntou para Sanderson sobre a situação de Luís. Eis a resposta:
– Ele é um homem extremamente inteligente. Ele deve isso a sua memória fotográfica. Por isso ele se dirigiu para as áreas de exatas e arrebentou nos vestibulares mais concorridos do país. Ficou em primeira posição no ITA, USP, UNICAMP… Apesar de muitos acharem isso bom, pode ser prejudicial. A lembrança da morte da esposa sempre terá a mesma intensidade, porque nunca vai deixar de ser recente na cabeça dele. Em um cérebro normal, a coisa arrefeceria com o passar do tempo. Não para ele… Tenho receio de como isso afetará seu futuro.
Quatro meses se passaram após o fatídico dia. Sem nenhum emprego, o dinheiro estava acabando. As poucas coisas que comia eram preparadas por alheios. Luís refletiu muito, enquanto observava a urna com as cinzas de sua família. Hesitou em cumprir o desejo de sua esposa. Até aquele momento permaneceu inerte, relutava em ouvir seus amigos, mas sentiu que não podia prosseguir com aquilo. A esposa queria ter as cinzas colocadas em Canaã, sua cidade natal. O engenheiro sabia disso. Em seus pensamentos, era como perdê-la novamente. Contudo…
O rapaz pegou as urnas e andou até seu veículo. Dirigiu por uns vinte minutos até chegar à casa de Sanderson. Como ele tinha a chave do seu tempo de hóspede, entrou sem avisar. Na cozinha, viu uma mesa repleta de legumes, verduras e peito de frango. A “Fuefa” estava sentada em uma cadeira enquanto Sanderson, mais afastado, com Eneauf entre seus braços.
Ainda se surpreendia com aquele casal. Não conseguia deixar de achar estranho ver um casal interespacial. No fundo, ele sabia que isso aconteceria, mas achou que demandaria mais tempo. O terráqueo era persistente e apesar de alienígena parecer dura, ela tinha amolecido com o jeito carinhoso que era tratada. Um dia, passearam de mãos dadas durante a noite. Sanderson tentou beijá-la sem obter sucesso. No dia seguinte, quando estavam a sós, finalmente aconteceu… Os corpos entrelaçados uniam-se pelos beijos lascivos.
Sanderson havia mudado. Entrou no ritmo de Eneauf, passou a comer frutas e legumes. A acompanhou nos treinos de corrida e aeróbica. Uma vez, quando se olhou no espelho, percebeu que estava sem a “pochete” e tinha músculos visíveis. Não era nada espetacular, mas estava sem aquele aspecto desnutrido.
– Vocês parecem realmente se gostar. – disse Luís sentando-se a mesa – Será muito triste quando isso acabar. – Concluiu secamente. Ninguém disse nada. Habituaram-se com o comportamento hostil dele. Sanderson segurou um riso sarcástico. – Sei que amanhã será sua folga, cara. Vamos até a cidade de Canaã, no Rio de Janeiro, colocar a urna com o mausoléu da família.
– Não é nessa cidade que fica a Continental? – perguntou Sanderson.
– Sim. Ela nasceu lá e queria ficar com os pais, apesar de nunca ter sido muito crente.
– O que é Continental? – perguntou Eneauf.
– É uma seita protestante. Eles vivem na deles, mas sem renegar a tecnologia como os Amish. Pelo que sei, lá o povo leva a bíblia muito a sério. – Sanderson parecia empolgado.
– Mas o que tem a ver com o continente? – Ela tinha dificuldades em entender esse nome.
– Acredito que é pelo fato universal e mundial estarem em uso. Só sobrou continental, mas não sei por que dos termos geográficos nos nomes. – O rapaz olhou para a alien que pareceu estar satisfeita com o esclarecimento
– Espero que goste! – falou a “Fuefa” – Fiz tudo com muito amor.
Eles jantaram e jogaram conversa fora. Foram dormir um pouco tarde e acordaram as seis da manhã. Tomaram um café bem reforçado e saíram de casa. Luís dirigia rapidamente, ultrapassando o limite de velocidade em alguns momentos. O casal não falou nada porque não foi algo constante.
– Temos de ir até o cemitério municipal – falou ele enquanto dirigia pela cidade – Lá teremos as informações do mausoléu e se poderemos sepultá-la.
– Precisa disso tudo? – a alien achava um exagero.
– Sim. – respondeu Luís sem muita vontade de querer conversar.
O grupo chegou à cidade depois de quatro horas de viagem. Assim que cruzaram as fronteiras, Eneauf teve a sensação de estar em um ambiente hostil. Muitos homens barbados e com cabelos longos olhavam os visitantes de uma maneira rude. As mulheres que andavam com esses homens usavam véus que se estendiam até o meio das costas. As que não usavam, tinham cabelos que alcançavam os pés. Estranhou como as estas andavam atrás dos homens mantendo a cabeça baixa. Para qualquer lado que olhava, não viu uma desacompanhada.
O carro seguiu pelas ruas até chegar ao cemitério. O trio desceu e caminhou até a administração. Sanderson observou as lápides, percebendo que muitas pertenciam as crianças do sexo masculino. Parecia maior que a média nacional. Mais distante, teve a impressão de ver um pai caminhando com um filho de expressão abatida. Pensou tanto nisso, que quando chegaram à administração, tomou a dianteira e perguntou curiosamente:
– Por que vocês possuem tantas crianças morrendo aqui?
– Vocês não são daqui, não é? – perguntou o funcionário. Eneauf confirmou a hostilidade pelo tom que ele usou. O homem, em idade avançada, demonstrava desprezo misturado com superioridade.
– Você só conversa com pessoas da mesma tribo? – retrucou a alien com o mesmo tom.
– Como é?! – o homem pareceu muito irritado. Lançou um olhar animalesco sobre Eneauf. – A qual de vocês dois essa mulher pertence?!
Em condições normais, Sanderson teria se acusado. Porém, percebeu o clima tenso no ar. Olhou de relance para sua namorada. Ela revidou o mesmo olhar para o homem, que parecia estar a ponto de agredi-la.
– Algum problema? – perguntou um policial que chegou antes deles lutarem. Diferentemente dos outros homens, ele tinha a face pelada e uma feição amistosa. Trajava a farda militar carioca.
– ESSA MULHER ESTÁ ME QUESTIONANDO! – berrou o homem ao mesmo tempo em que apontava o dedo em direção a Eneauf.
– Acalma-se, Josafá. – disse o policial mantendo a serenidade – Eles visivelmente não são daqui. – Ao ver as urnas nas mãos de Luís disse – Sinto muito pela perda, mas poderia, por favor, dizer os nomes para que ele veja o histórico dos falecidos?
– Larissa Alves da Silva Terra e Juliana Alves da Silva Terra. – disse Luís entregando as urnas para Josafá.
– Voltem pela tarde. Irão saber do veredito.
O trio saiu do cemitério acompanhados do policial. No exterior do edifício, Eneauf foi incisiva:
– Por que as mulheres aqui devem se submeter aos homens?
– Porque assim como a igreja está sujeita a Cristo, também as mulheres estejam em tudo sujeitas a seus maridos. Nesse caso, se você não tem um marido, então pertence ao seu pai. Afinal, a mulher deve aprender em silêncio, com toda a sujeição. Deus não permite que a mulher ensine nem que tenha autoridade sobre o homem. Esteja, porém, em silêncio, porque primeiro foi formado Adão e depois Eva. – respondeu o policial.
A zentrina respirou profundamente. Segurou-se para não fazer nenhuma bobagem. Olhou para seu companheiro e pediu para que ele repetisse a pergunta que tinha feito anteriormente.
– Verdade! Por que tantas sepulturas de meninos em tão tenra idade?
– Porque é preciso mostrar fé em nosso senhor acima de qualquer coisa. Ele exige uma demonstração e pede a entrega do primogênito. Se for realmente verdadeira, envia um anjo para deter o golpe.
– Alguma vez um anjo salvou alguém?
– Somos todos imperfeitos… – respondeu o policial pesarosamente.
– AAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHH!!!!!! – berrou uma pessoa longe dali.
– Mais um homem carente de fé…
Luís apertou as urnas com toda força que tinha. Tentou disfarçar seu ódio, entretanto, foi inútil. O rosto enrubesceu ao mesmo tempo em que as pupilas dilataram. A respiração acelerada acompanhava o ritmo frenético do tórax. Recusava-se a acreditar naquilo, em como estavam jogando com a vida humana.
– E o que acontece depois da “fé fraca”? – perguntou Eneauf a ponto de explodir.
– É preciso fazer um jejum de quarenta dias. Sem comer, somente a base de água. Normalmente, os homens entram em contato com o senhor e tem a permissão para gerar frutos. Em sua infinita bondade, ele não pede a mesma prova.
– E o que ele pede? – insistiu Eneauf.
– Que se siga a palavra! É isso que nós fazemos aqui! Recomendo que façam o mesmo. Isso vai evitar problemas desnecessários para vocês e para nós. – O policial já não tinha o mesmo tom amigável.
Sem ninguém por perto, Sanderson olhou para seus chegados. Pensou no que dizer para amenizar a ira daqueles dois. Sempre achou a passagem de Abraão absurda e perigosa. Sabia como tudo aquilo soou nos ouvidos de seu amigo em eterno estado de luto. E havia Eneauf… Ela nunca pareceu se sentir inferior por ser mulher. Estava pessoalmente ofendida e a ponto de explodir. Passada a reflexão, ele falou a coisa que achou mais prudente:
– Vamos almoçar, cambada!
Eles aceitaram de bom grado. Entraram em um restaurante e optaram pelo rodízio e cada um se serviu como quis. Juntos na mesa, Eneauf perguntou para Luís:
– Esse lugar não tem nada a ver com você. Como viemos parar aqui?
– Ela saiu dessa cidade e foi tocar a própria vida em São Paulo quando passou na faculdade. Nos conhecemos lá. Veio o casamento, filhos e o luto…
– E como o pai dela “autorizou” essa relação?
– Nos casamos sem ele saber. Ela só contou depois de consumado. No fim eles exilaram-na, mas não fez muita diferença. A minha sogra manteve contato em segredo até eles morrem em um incêndio depois do nascimento… – Luís não conseguiu terminar a frase.
– Vocês reparam – iniciou Sanderson desconversando. Já sabia qual seria o veredito – que os homens daqui, além de serem peludos, são magrelos ou gordos?
– Essa eu sei! A minha esposa era muito sedentária. Dizia que “o exercício físico é de pouco proveito”. Acho que viu isso em Timóteo.
– Sei… Recorria à bíblia quando era conveniente. – respondeu Sanderson sarcasticamente.
– Como todo mundo.
Almoçaram rapidamente. Saíram do estabelecimento sem comer a sobremesa. Voltando para o cemitério, o trio viu uma multidão parada em frente a uma casa. Normalmente ignorariam, mas mediante aos costumes preferiram conferir. Luís permaneceu no carro, enquanto Eneauf e Sanderson se juntaram aos homens que berravam histericamente. Forçaram a passagem com empurrões. O casal olhou boquiaberto a uma mulher agonizando a beira da morte. Completamente ensanguentada e com escoriações por todo o corpo despido. Ao redor dela, diversas pedras manchadas. Antes que eles pudessem fazer qualquer coisa, o último minério atingiu a têmpora da vítima e selou o seu destino.
A alienígena correu em direção ao cadáver. Devido a sua experiência, sabia reconhecer um cadáver. Encarou o corpo inerte por um minuto. Em seguida voltou seu olhar para o pai parado na porta e os homens com pedras nas mãos. Os algozes exibiam satisfação. Havia policiais no local, mas eles não interviram.
– Por que vocês não fizeram nada…? – questionou a alienígena com a voz trêmula. Os olhos lacrimejavam lágrimas de pura revolta.
– Essa meretriz se prostituiu na casa de seu pai. Foi apenas a lei de Deus. – Debochou um homem.
Eneauf se levantou de uma vez. Cerrou os punhos ao mesmo tempo em que caminhava na direção do uniformizado. Suas írises, antes laranjas, estavam vermelhas. Um soco! Outro soco! Mais um soco! Incontáveis golpes até o homem desmaiar. Outros tentaram intervir, mas não tiveram coragem de entrar em combate.
– O Sansão vai dar um jeito em vocês! – disse um deles enquanto fugia com os companheiros.
Sanderson, em silêncio, acompanhou Eneauf até o carro.
– Não deveriam ter feito nada! – reclamou Luís – Espero que isso não me atrapalhe. Só vim para juntar minha esposa com os pais! Só isso!
O carro foi estacionado em frente ao cemitério. Luís desceu apressadamente. A passos largos, chegou à administração.
– Bem, – falou Josafá olhando as próprias anotações – eu vi todo o histórico de sua esposa. – O casal chegou nesse momento – Sendo franco, não posso permitir que ela macule esse solo sagrado.
– Como é?!
– Ela se afastou de nós e você, foi responsável por isso, fariseu! Um bom cristão se afasta das coisas impuras! Ela deveria ter seguido Deuteronômio e providenciado o seu apedrejamento! Além disso, você trouxe uma meretriz que desrespeita as nossas leis. Vocês vão nos levar a ruína! A Igreja continental não pode permitir nada disso! Hão de pagar!
– Parece que essa cidade não tem leis… – respondeu Eneauf se preparando para o inevitável conflito.
– Todos devem se sujeitar a autoridade governamental, – disse o policial entrando no recinto, acompanhado de outros colegas de corporação. Nenhum deles portava arma de fogo. A justiça seria feita com pedregulhos postos nos coldres. – Pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas. Quem se rebela contra a autoridade está se colocando contra o que Deus instituiu e traz a condenação para si mesmo. Eu pedi para não arrumarem problemas… – a mão dele deslizou até as pedras.
Eneauf sabia que estavam em desvantagem. Em menor número, dentro de um ambiente fechado, seriam trucidados. Sem muitas opções, ela tomou a iniciativa. Num rápido movimento, levou a mão até o relógio e desativou seu holograma. Alguns policiais arregalaram os olhos enquanto outros recuavam e os mais acovardados gritaram. Dois segundos. Esse foi o tempo que o trio teve para reagir. Em um intervalo tão curto, a mulher pegou um peso de papel e arremessou nas luzes para distrair seus oponentes. Sanderson e Luís aproveitaram e correram em direção aos policiais os levando ao chão. Foram seguidos por Eneauf, que os ultrapassou na corrida. Ela foi a primeira a deixar o cemitério. Uma poderosa mão masculina a agarrou pelo pescoço e a levantou do chão. Como se fosse uma boneca, a alien foi arremessada contra o chão.
– Então esse… Ai… – gemeu de dor ao se levantar. – É o tal do Sansão… Pode vir! – disse ela em um tom desafiador. Tomando uma postura de defesa, esperou o próximo movimento do adversário. Sansão, com seus dois metros e cem e cinquenta quilos, correu para cima de Eneauf. Esta deu um passo para trás e girou para a esquerda. O guerreiro passou direto. Prestes a atacar, a alien foi atingida por uma pedra em seu rosto. Outra foi arremessada em seu estômago e a terceira em seu joelho esquerdo. Ela curvou o corpo sobre o joelho ferido.
– Vou te expurgar, demônio roxo! – falou Sansão aproximando as mãos da cabeça de Eneauf. Voadora! Sanderson atingiu os dois pés na cara do guerreiro. Sansão recuou dois passos para trás – Isso é tudo que você tem? – perguntou sarcasticamente.
– Na verdade é… – respondeu Sanderson sentindo frio na barriga.
– VAMOS APEDREJAR TODOS ELES – berrou alguém na multidão. Pedras voaram na direção do casal. Ninguém foi atingido! Luís os protegeu ao usar seu carro como escudo. Desesperadamente, Sanderson ajudou a Eneauf a se levantar e entraram no veículo.
Sansão segurou o carro pelo paralamas. Luís tentou fugir de ré, mas o não saiu do lugar. Os outros homens se aproximavam enquanto arremessavam mais pedras contra o veículo. Luís engatou a primeira marcha e avançou para cima de Sansão. Este foi atropelado e caiu de costas. Sem ninguém para detê-los, Luís conseguiu se afastar de ré. Não sabia se tinha atingido alguém, mas não se importou. Estavam tentando matá-los!
Dirigiu o carro velozmente, sem dar chances dos policiais iniciarem uma perseguição. Ao saírem da cidade, Luís chorava. Culpava-se por não ter sido capaz de cumprir a vontade de sua esposa.
– Droga! Cacete! Nem isso eu consegui fazer por você! Eu sou mesmo um inútil!
– Cala a boca, Luís… – disse Eneauf no banco de trás – Era óbvio que eles nunca a deixariam ser sepultada aqui. Se tivesse nos contado a sua história, eu nunca teria permitido ninguém vir até aqui.
– Você não entende! Diz isso porque não perdeu o Sanderson!
– Eu entendo que se ela era mesmo uma boa mulher como você nos disse, então ela era boa demais para esse lugar. Também entendo que você sente culpa. Por isso veio até aqui.
– Mas não faz muito sentido… – falou Sanderson pensativo – Ela abandonou esses lunáticos. Porque desejaria voltar para cá depois de morta… Estranho… Só pode significar… Claro! Luís, você inventou toda essa estória de último desejo! Por quê?
Após um longo silêncio ele respondeu:
– Não, ela realmente queria ficar com os pais. Apesar de tudo ainda os amava.
– Coitada… – Eneauf sentiu pena da falecida.
– É! É isso aí! E agora eu não sei que rumo dar na minha vida desde que minha mulher morreu! Não sei por que ainda acordo ou porque faço tudo que estou fazendo! Seria muita mais fácil desaparecer, mas nem para isso eu tenho coragem.
– Bem, – disse Sanderson – se você quer mesmo encontrar a morte, não deve demorar. Agora que todos sabem que a Eneauf existe, o governo vai bater em nossa porta.
– E agora?! – perguntou Eneauf.
– Não sei… – Sanderson parecia aflito.
– Eu envolvi vocês nisso. Posso me entregar e…
– Fora de cogitação! Não vou abandonar você, amora! Vamos continuar juntos. E o Luís vai com a gente! Está incapaz de tomar as próprias decisões.