O Monarca do Céu - Capítulo 224
Memórias
Passaram pelo portão improvisado da nova Ultan e notou naquelas pessoas o mesmo semblante que viu nos habitantes do ducado de Otto. Olhos desesperançosos, cheios de angústia, transtornados. Apenas algumas crianças continuavam com certo brilho no olhar.
As ruas de ladrilho repletos de rachaduras eram iluminadas por postes onde tochas queimavam sem parar no topo. As casas estavam velhas, caindo aos pedaços. Colin se recordou quando aquelas ruas eram cheias de vida e a riqueza em detalhes das construções saltavam aos olhos, agora, tudo isso era passado.
As ruínas da universidade ainda estavam lá, com diversas luzes acesas por orbes, mas não foi para lá que seguiram. Leyvell os levou para o antigo palácio de Ultan, o único lugar que mantinha tal imponência, mesmo após o ataque há quase um ano.
— Incrível, não é? — disse Leyvell encarando aquelas pessoas com desprezo de cima do seu enorme cavalo pardo — Esses miseráveis agiram como baratas e se apossaram de ruínas.
Colin não o retrucou.
— De onde todos eles vieram?
— Esses miseráveis são residentes de outras partes de Ultan. Sem ter para onde ir, acabaram vindo para cá. Não há como chegar em Caliman, o Norte está enfrentando problemas e para chegar ao império do sul é preciso passar pelo centro-leste que eu soube estar em guerra. Querendo ou não, esse lugar é o único porto seguro desses vira-latas. E você, Zanian, de onde é?
— Caliman.
— Desconfiei pelo tom de pele. Como conseguiu atravessar o deserto escaldante?
Ele deu de ombros.
— Habilidade e um pouco de sorte.
Leyvell assentiu com um sorriso.
— Entendo, existe um pouco disso no nosso trabalho também.
— Onde está a guarda da cidade? — Perguntou o carniceiro procurando alguém de armadura.
— Você está olhando para ela.
Ele ergueu uma das sobrancelhas.
— Só vocês fazem a guarda de um lugar deste tamanho?
— Esse lugar não tem recursos para pagar a guarda da cidade, muito menos para dar manutenção aos equipamentos. Eu e meus rapazes somos bem caros, quase todo imposto da cidade é para nos manter aqui, então não há necessidade de guardas.
Passaram ao lado de uma enorme cratera onde era o antigo poço, a cidade subterrânea de Ultan, onde funcionava todo comércio ilegal da capital.
Aquele lugar parecia funcionar.
Havia elevador e pessoas ainda mais humildes residiam lá em baixo.
Chegaram até o palácio, desceram de seus cavalos e passaram pela grande porta vítrea. No Hall, havia enfermeiros cuidando de dezenas de enfermos deitados sobre lonas no chão, e um homem loiro de vestes humildes e olhos azuis conversava com uma das curandeiras.
— Cymuel! — Chamou Leyvell cumprimentando com um aceno de mãos — Está sempre cuidando do seu povo, não é? O problema com aquelas criaturas foi resolvido — Ele olhou para Colin e Leona — Esses são Zanian e Luna, os encontramos na patrulha e eles vão ficar conosco essa noite.
Cymuel foi até Colin e o cumprimentou com um aperto de mãos e um sorriso gentil.
— Todo amigo de Leyvell é meu amigo também, sejam bem vindos! No momento, não temos tantos lugares disponíveis, mas acho que devo ter lugar na universidade. — Ele olhou para uma das curandeiras — Bertina o levará aos seus aposentos.
— Ei! — Leyvell passou o braço pelos ombros de Cymuel — Por que a pressa? A gente pode aproveitar, beber um pouco, pegar umas garotas. Fiquei curioso sobre Caliman, quero ouvir suas histórias.
— Vai ter que ficar para outra hora — disse Colin massageando os ombros — Obrigado pela hospitalidade, mas quero mesmo descansar.
— Você quem sabe, mas estará perdendo toda diversão.
Bertina curvou o corpo em uma reverência.
— Senhor, me siga, por favor.
Colin os cumprimentou com a cabeça e deu as costas, acompanhando Bertina.
Irritado, Leyvell franziu o cenho e Cymuel se afastou.
…
Colin adentrou a universidade e observou os prédios.
Sentiu algo nostálgico e imaginou toda Universidade cheia de vida como no passado. Naquelas ruas, ele viu a si mesmo junto a sua guilda. Viu Kurth, Loaus, Liena e Safira, viu também Wiben e ele juntos caçoando de Safira como sempre faziam. Viu até mesmo Stedd, Elnan, Sashri e a última integrante Lei Song.
Eram memórias boas de se visitar, o deixavam calmo. Passou pelo hall de entrada do dormitório masculino e subiu as escadas. Começou a andar pelo corredor que havia sido reformado e parou em frente a uma porta, a porta do seu antigo dormitório.
— Tem alguém aqui?
— A-Acredito que não…
Colin abriu a porta e deu de cara com a sala de estar. Os sofás não eram os mesmos, mas estavam nas mesmas posições. Teve ilusões de ver ele, Stedd e Kodogog ali, conversando nas raras vezes que aqueles três se reuniam. Imaginou Brighid na cozinha ao fundo, cozinhando com aquele sorriso que deixava seu coração em paz.
— A gente vai ficar aqui, Bertina.
— C-Certo…
Dando mais alguns passos para frente, a lâmina dançarina de Colin flutuou até apoiar-se na parede ao lado da porta e ele sentou-se no sofá, abrindo os braços. Leona coçou o olho e foi até Colin, apoiando a cabeça em seu colo.
— Mestre, a gente devia ir para cama… Dormir no sofá faz minha coluna doer.
Bertina continuou o encarando.
— Algo errado?
Ela engoliu o seco.
— O senhor… não se lembra de mim?
Colin franziu o sobrolho, a encarando melhor.
— Desculpa, mas não me lembro.
Desviando o olhar, ela juntou as mãos na altura do busto.
— O senhor ajudou o povo de minha vila… Demorei a reconhecê-lo, mas é o senhor mesmo.
“Vila? Que vila?”
— B-Bem… O senhor enfrentou o demônio da estrada quando nos escoltava para nosso vilarejo… Enfrentou também aqueles mercenários ante magia… não se lembra?
“Entendi…”
— Você deve estar me confundindo com outra pessoa.
— Você não é o senhor Colin?
— Não.
O olhar dela se entristeceu.
— S-Sinto muito, só achei que… desculpa.
Bertina fez uma reverência e se retirou, fechando a porta. Colin viu como aquelas pessoas estavam sofrendo.
Suspeitou que a garota fosse pedir algum favor, mas ele tinha outras prioridades no momento.
Deixando Leona deitada, ele se levantou e caminhou pelo apartamento. Seguiu pelo corredor, passou pelo banheiro, olhou para dentro do quarto de Stedd resumido a uma cama e um guarda-roupa e seguiu mais fundo, indo para onde era o quarto de Kodogog.
Estava completamente vazio.
Ele se perguntou que fim teve seu poderoso amigo Orc.
Com as mãos nos bolsos, caminhou mais um pouco e parou em frente ao seu antigo quarto. O abriu e ele estava como o quarto de Stedd, simples.
Olhou para a cama e lembrou quando era acordado com Brighid trazendo o café da manhã ou pernoitavam conversando sobre assuntos adversos.
Após descobrir que estava grávida, Brighid comentava como seria bom se criassem os filhos juntos, como uma família normal, e uma parte de Colin acreditou que isso fosse acontecer.
Ele se pegou sorrindo e tergiversou, saindo do quarto, perguntando-se se a mulher que amava estava bem. Era frustrante não ter notícias dela em meses.
Colin se sentou no sofá e Leona se ajeitou, apoiando a cabeça em seu colo novamente. Após um suspiro, ele cerrou os olhos e se perdeu em pensamento.
…
Ouviu-se três batidas na porta.
Colin e Leona ainda estavam no sofá. Ambos despertaram, mas Leona não levantou. Ela se revirou no sofá e Colin foi até a porta, a abrindo.
— Leyvell?
— Sabia que estava aqui — Ele olhou para o corredor — Por que a gente não dá uma volta? — Notando o semblante indiferente de Colin, ele abriu um sorriso simpático — Vamos lá, faz tempo que não falo com ninguém tão forte assim. Bom, tem os outros caçadores, mas eles não são muito de conversar. Pode pedir qualquer coisa, será por minha conta.
Tergiversando, Colin olhou para Leona dormindo, e deu de ombros, fechando a porta.
— Tudo bem, vamos só conversar.
Após uma piscadela, Leyvell apontou os indicadores para Colin.
— Esse é o meu Zanian! — Entrelaçando os dedos atrás da cabeça, o caçador começou a caminhar pelo corredor — Sabe, fiquei me perguntando, o que alguém como você fazia nas ruínas de Ultan. — Olhou para Colin por cima dos ombros — Você é um mercenário? — Voltou seu olhar para frente — Tudo bem se for, muitos mercenários passam pelas ruínas, mas você não é qualquer um. A pandoriana, é uma Huliki, não é? Uma raposa de nove caudas. Não é só isso, você tem uma lâmina dançarina e um anel que vira espada, mercenários comuns não teriam metade disso que você tem.
Colin continuou em silêncio, caminhando há alguns metros de distância do caçador.
— Não vamos conversar, Zanian? — Ele suspirou — Me sinto um idiota falando sozinho.
— Quando tiver um copo de vinho em mãos, responderei qualquer pergunta que tiver.
— Háhá, gostei de você, a gente vai se dar muito bem!
…
Leyvell os levou para uma taverna cheia. Seus homens estavam lá, conversando com meretrizes e dando altas gargalhadas. O caçador pediu o vinho mais caro e disse para colocar na conta de Cymuel.
Encheu o copo e apoiou o indicador na base do mesmo, o levando até Colin.
— E então — Disse se sentando de costas para o balcão, observando os seus homens — Vai me dizer o que o trouxe aqui?
Colin segurou o copo e deu um gole, o devolvendo ao balcão.
— Estou atrás de algumas pessoas.
— Mulher?
O carniceiro apenas assentiu.
— Por aí.
— Hehe! Se sente tanta falta assim, devia experimentar as mulheres daqui. Elas fazem qualquer coisa por um prato de comida hehe. Uma dica, tente as viúvas com criança pequena, essas fazem literalmente de tudo por um pouco de alimento.
Em silêncio, Colin o encarou de canto sem demonstrar repulsa por sua fala.
— Como é Caliman? — indagou o caçador dando uma golada no vinho — Soube que é perigoso. “A terra dos odiados”. Como se sente sabendo que seus descendentes estupraram um monte de mulheres e deram origem a vocês?
Colin não sabia se aquilo havia sido uma pergunta séria ou se o caçador estava o provocando.
— Não penso nisso. — Colin olhou para os caçadores se divertindo. A maioria tinha cabelo bem curto ou era careca, ao contrário de Leyvell, que tinha o cabelo cumprido e brilhante — Como se tornou um caçador?
Leyvell suspirou após entornar o copo.
— Matei o líder desses idiotas. Conhece o oriente? Não parece, mas fui criado lá por um velho e mais dois garotos. Cada um seguiu seu caminho quando completou dezesseis anos. — Ele se virou, pegando a garrafa e enchendo o copo — Já andou de barco? É uma sensação libertadora. Roubei um e naveguei sem rumo até chegar aqui, no grande continente. — Apoiou a garrafa no balcão e levou o copo até a boca, sentindo o vinho descer pela garganta — Sabe o mais estranho? Depois que cheguei aqui, ouvi histórias sobre os dois idiotas que cresceram comigo.
Colin continuou em silêncio, apenas o deixando falar. Também acabou com seu copo de vinho e prontamente o encheu.
— Enquanto eu estava por aí, comendo putas e ganhando dinheiro como mercenário, um dos garotos construiu um grupo respeitado, caçadores de monarcas, já ouviu falar? Ficou bem famoso há uns dois anos. Sabe como chamavam o pequeno Tomy? “O ruivo”, dá para acreditar nisso? E a gente aqui, dois mercenários com talento bebendo esse vinho barato rodeados de putas e vagabundos.
Ele deu outra golada no vinho.
Colin não fazia ideia de que enfrentou os poderosos caçadores de monarcas durante o torneio de guildas.
— Não faço ideia de quem sejam, mas o que aconteceu com eles?
— Foram mortos. Não tenho a informação completa, mas sabe a Santa que alguns idiotas veneram? Consultei alguns xamãs, e disseram que foi ela. — Bebeu do vinho novamente — Sabe o que descobri? Que essa mulher estava em Brambéria. Matou alguns caçadores de espectros antes de desaparecer. Brighid, a Santa, uma alcunha estranha para um demônio?
Colin parou o copo frente a boca e sua mente começou a ferver. Fez a rápida associação como um estalar de dedos, mas o que mais chamou atenção foi ouvir sobre Brighid.
Ele se sentiu aliviado, foi como se um peso fosse tirado dos seus ombros. Virou o copo de uma vez e suspirou, tentando manter a postura indiferente.
— Como ela…
— Os moradores disseram que ela estava com uma medusa que se transformou em uma serpente branca gigantesca. Matou todos os caçadores de espectros daquela área. Fiquei curioso, foi essa mesma mulher que matou o meu amigo, ele era como irmão para mim, entende? Tenho que vingá-lo, afinal, essa é minha única motivação nesse buraco esquecido pelos Deuses. — Apoiou o copo quase vazio no balcão — Conheci os caçadores por acaso, matei o líder deles há cerca de um mês e juntei os mais fortes caçadores nessa caçada pela Santa. Ela não pode fugir para sempre.
Com o dedão, Colin alisou Claymore em formato de anel. A vontade que teve, foi a de cortar a cabeça de Leyvell, mas se conteve. De algum modo, ele tinha uma impressão ruim em relação aquele homem, sentia que ele já sabia quem ele era e que estava o testando, mas não iria agir se ele não agisse.
— E o outro cara? — Indagou Colin.
— O quê?
— Você comentou que ouviu “histórias sobre os dois idiotas” que cresceram com você.
— Ah… Ele está envolvido em uma guerra entre clãs, acontece faz décadas nas ilhas do oriente. A última vez que ouvi sobre ele, foi que se juntou a um grupo de bandidos. — Um sorriso desabrochou em seu rosto — O sonho dele sempre foi comandar o país. Sabe como é, homens pequenos com sonhos grandes demais, o final é previsível. — Bom — O caçador pegou a garrafa — Foi bom conversar com você, mas preciso ir. Tenha uma boa viagem, Zanian, e mande um abraço para a raposinha.
Ele nada mais disse, apenas saiu do estabelecimento. Colin fez o mesmo, já que havia ganho sinal verde para fazer de tudo, então, saiu sem pagar pelo vinho.
No seu caminho de volta, ficou em alerta em relação a Leyvell. O caçador parecia um homem esperto, sabia muito sobre Brighid e até sabia que seus companheiros foram mortos por ela e sua guilda. As chances de ele não ter conhecimento sobre Colin eram pequenas, mas por que não o confrontá-lo agora?
Sem Brighid, as chances de derrotar os caçadores de monarcas eram baixas, por isso ele não duvidou da força de Leyvell, já que ele disse que cresceu com o ruivo. Não duvidou de nada que saía da boca daquele homem, algo dentro dele sabia que ele não estava mentindo.
Com as mãos nos bolsos, Colin vagava com cara fechada de volta para o seu dormitório.
“A serpente deve ser Nagini, então Morgana deve estar com ela. Ótimo! Não preciso me preocupar com Brighid, mas tenho que fazer algo em relação aos caçadores de espectros. Se todos forem fortes como os caçadores de monarca, então isso será problemático… Ao menos estou com Leona. Com ela eu não perco para ninguém.”