O Mundo que Eu Vejo - Capítulo 1
O MUNDO QUE EU VEJO
O mundo que eu vejo. É colorido, irresponsável e brilhante. Odeio-o quando escurece, é assustador. Ouço os grunhidos animalescos, os sussurros fantasmagóricos e o vento em sua fase de rebeldia. Noto passos primeiramente temerosos e depois confortantes. São leves, assim como o desenrolar da história de embalar e a chegada do sono. Durmo, corro e solto-me na relva por cortar. Deito-me nela, encaro o fantasioso céu que me inebria. Clama por mim, mas não me dá asas. Almeja brincar comigo, mas não desce – porque é que não desces?
O mundo que eu vejo. O primordial raiar solar não é tão ilustre como em seus dias de glória. É pardacento, desalentado e triste. É esse mundo que enxergo através da janela embaciada. Devia atentar-me nas expressões matemáticas, porém, elas são mais aborrecidas. Abaixo, onde o céu nunca pousa, avisto-a, amparada pela protetora; a árvore reconhece o valor da menina que mune, supervisiona-a com carinho em seus galhos e isola-a do ar deprimente que as nuvens espalham. Preserva a remanescente fonte de brilho no mundo. A fonte que admiro… e nunca alcanço.
O mundo que eu vejo. É chuvoso, meu acompanhante, contudo. Lacrimeja profundamente, e em seu choro, os peixes alegram-se, as plantas viram frutíferas, as plantações enriquecem e os agricultores riem, hílares. Somos apenas nós que não nos animamos, ou rimos, ou cantamos. Eu choro porque dói, e não é algo suportável porquanto ajoelho em fraqueza. Ante a sepultura, derramamos as confissões, as aventuras, desventuras e as lições de moral que aprendemos conforme crescemos. Falo com o morto ali cavado, mas não o temo, sinto somente uma inapagável saudade. Adeus, mãe.
O mundo que eu vejo. É exigente, solicita muito de mim. Ou talvez eu não tenha sido exigente comigo próprio durante as aulas de matemática, por isso sofro em repercussão. Que cruel… e dolorosamente justo. Estou exausto, o conchego malévolo da cama tenta levar-me aos confins dos sonhos. Pelo contrário, o ecrã branco e reluzente na secretária impele-me ao dever – e quão injusto é! Levanto-me a fim de procrastinar e vou à rua. Já não te vejo há uns bons tempos, mundo. Recebo um raio saudante a poucos centímetros de mim. Vejo que também tem saudades. Aceno-lhe um sorriso culpado, mas ele perdeu a brandura de outrora. Lança dois outros raios. Desisto. Subo ao apartamento, preparo uma xícara de café e sento-me defronte o ecrã. Parece que não posso fugir de ti.
O mundo que eu vejo. É brilhante, esquisitamente. Desconheço o que lhe deu, e como seu melhor amigo, sinto-me traído por não me contar a fonte de toda felicidade. Tento, mas não o entendo, nunca o entendo. As suas reações falam mais que palavras, mas necessito de uma para percebê-lo na sua totalidade. O café está frio e amargo – horrível. Vou à cozinha, despejo-o no lava-louça com uma expressão esquálida. Fico por ali, não tenho interesse nenhum em retornar ao trabalho. Apoio-me no parapeito da janela e analiso a rua; as pessoas andam apressadas como sempre, o trânsito enerva os condutores, os cães dos diversos donos adicionam a sua irritante camada de ruído ao ladrarem uns aos outros. Nada de novo, somente um mundo rotineiro. Por que brilhas, se vês esse clima maçante?
O mundo que eu vejo. Continua a luzir fortemente. Até demais. Além de encher-me num calor sobejo, não me conta o motivo detrás da alegria com que ilumina os dias. O ar condicionado está quebrado. O inferno parece ter ascendido ao meu quarto – e Jesus, suas chamas são irresistíveis. Coloco uma t-shirt e saio. Surpreendo-me por não estar tão quente quanto o meu apartamento. Há uma refrescante brisa que – tamanha é a sua frescura! –-se assemelha a uma dádiva de Deus. Ando pela rua, sinto o crescer da temperatura, avisto uma menina sem sua guardiã, sinto a pele a escaldar, reconheço aquele adorável rosto nas minhas memórias juvenis, desmaio.
O mundo que eu vejo. É.…, arregalo os olhos, belo. Perdão, não tu, mas sim ela. É bela, e digo-o no sentido romântico. Estou incerto sobre a minha localização, mas o conforto em que me encontro é divino. As minhas sensações retornam, e logo que me percebo deitado nas pernas dela, levanto. Esbarro a testa na sua e rolo-me pelo chão em dor. Ergo-me por fim. Meus olhos não me enganam, aquela mulher, aquela entidade que disse nunca alcançar, está avante de mim. Após todo o alvoroço, esclarece-se que me levou à sua casa, pois não pôde ligar ao 112. A criatura não tem telemóvel, desconfio que viva debaixo de uma rocha; os móveis do seu lar são antiquados, e religiosos. Tudo está bem arrumado e traz o cheiro “a novo“. Incrivelmente convidativo, nada como o meu apartamento. Melhor que esse cheiro, apenas o aroma fumegante do frango acabadinho de sair do forno. Cozinha bem também. Acho que lê mentes, dado que levanta e traz o cozinhado à mesa. Agradeço e questiono por quê que me trata tão bem. “empatia “, diz ela, sem mais nem menos. Ainda assim, estou mesmo a jantar com uma mulher que não sei nada sobre? Pior que isso, estou contente.
O mundo que eu vejo. É frio! Acordar numa temperatura destas tem de ser uma punição dos deuses. Ainda assim, meu coração está quente, falta um dia para a véspera de natal. Se querem um tutorial de como iniciar uma manhã natalícia, tomem: levantem, espreguicem-se, tomem um banho cálido, aqueçam os lábios no vapor do chocolate quente, soprem depois da primeira queimada e devorem-no por completo. Visitem a rua, dado que não há paisagem mais bela que os adornos ubiquitários e as canções do coro formado por pequenas crianças, todas agasalhadas com luvas, gorros e sobretudos vermelhos. Adoro o natal – e o mundo também! Todos anos contribui com o mais grandioso dos ornamentos: a neve. Ela cai calmamente, atesta a calçada com a sua brancura, é deslumbrante. Acima de ti, Neve, somente aquela que te leva pelos ombros acalentados no sobretudo. Está um frio de congelar, mas estou tão quente. A mulher vem, sorridente, e começamos o nosso encontro; o meu primeiro encontro. Mundo, vês isto?
O mundo que eu vejo. As rajadas e aragens que liberta são ofendidas pelos da minha espécie, mas eles estão limitados ao material e eu capto muito mais que isso, e juro não ser louco. Uma canção! A alternância suave entre a intensidade do vento compõe uma mistura de ondulações, emoções e um canto sublime. Que linda canção me dedicas, mundo. Lacrimejo, lembra-me das músicas de embalar que minha mãe cantava enquanto sentava ao lado de mim. Não, não pares por mim! Desculpa, mas não pares essa melodia, por favor. Felizmente, não paraste. É tão envolvente, embora muda. Abraça-me nas notas altas e baixas; um abraço há muito olvidado, mas carecido. E beija-me, beija-me com carinho a testa e, dançando majestosamente ao ar livre, um pequeno verso vejo-te a mim dedicar: Deixa-te chorar, que está em teu direito como filho. O cadeado quebra-se, dando abertura a um mar chorado.
O mundo que eu vejo. É ausente, principalmente quando mais desejo a sua presença, porém, ele não aparece por nada. Clamo por ele, insistente, e ele isola-se, persistente, e deveras irritante. Como queria que estivesses aqui! Olho para a cama hospitaleira, encaro o meu amor em dolorosos esforços. Esforça-se tanto para dar luz à nossa linhagem, ao meu legado. Como eu queria tanto que estivesses aqui! Só que não estás e a minha paciência não é tão vasta quanto o teu reinado. Foco-me assim na minha mulher que ela bem precisa de mim. Pede por minha mão e eu ofereço-lhe, aperta minha mão e eu tolero-a, essa dor dela. Faço uma injusta partilha do sofrimento. Tu consegues, tu consegues. Ela consegue, por fim. O choro do recém-nascido é aliviador, e muito feliz. O bebé é colocado nos braços amorosos da mamã, a mamã abraça-o. Fico langue perante a cena, é demasiada alegria para uma só alma. Sinto um empurrão nas costas, mas ninguém ali está. Caio abraçado em minha família. Eu sabia que virias, mundo.
O mundo que eu vejo. É presente, mas não comigo. Não o culpo, até aprecio. Deixa o meu pequeno filhote feliz, educa-o quando a rigidez é necessária e mima-o quando a brandura chama por si. Vejo-os a divertirem-se pela janela, estão lá fora, onde está frio, vento e neve. Cá dentro estou eu, e está quente, confortável e silencioso. O inverno é tão bom quando tens o luxo de recolher-te nos lençóis volumosos, de aquecer os lábios no chocolate quente e de folhear as páginas daquele livro que te entretém enquanto te reclinas no sofá. Entardece, escurece, o pirralho vem para dentro, estafado de brincar, mas o guisado da mãe está servido para revigorar-lhe as energias. O mundo ficou lá fora, as cortinas bloqueiam-no, preocupo-me um pouco, bastante, na verdade. Ela pede-me para ajudá-la com a loiça e é nestas alturas que sinto mais saudades de ti, Mundo. Oxalá pudesses entrar, manifestar gotas milagrosas e limpar essa sujeira repugnante a que estou sujeito.
O mundo que eu vejo. É contente, animado. Apesar dos últimos flocos de neve pairarem pelo ar, estás feliz, eu sinto-o. E não tenho a mínima ideia porquê, mas a tua felicidade faz-me feliz. Encontro-me no telhado. Encaro o céu, retraído e agasalhado. O céu está a mudar, o azul escuro invernal alterna-se para um colorido. Escuta-se o abrir das janelas dos vizinhos. A Primavera!, exclamam eles em euforia, como se libertos de um longo período de tortura. Que dramáticos são eles!
O mundo que eu vejo. É excitado, estamos excitados, como poderíamos não nos excitar? O primeiro dia de aulas do meu filho! Mas ele não está muito contente, acho que teme novos ambientes. Há 6 anos que o vejo crescer…e ainda não sei lidar com crianças — invejo-te, mundo. Ora tu, meu caro confidente, estás em todo o lado, em todos os becos, em todos os atalhos, em todos os sítios lúgubres, e estás sempre comigo, meu mundo. Peço-te — e só não me ajoelho porque a velhice não perdoou o meu sedentarismo — que me abandones então…não, não me abandones, isso não, mas peço-te que tomes conta dele, e que se alguém se meter com ele, paga-lhes uma viagem às nuvens. Sei muito bem que consegues soprar fortemente mesmo na primavera, seu maroto. Saem os dois do meu carro, e vai ele de mochila às costas ao portão onde várias crianças convergem, e ele olha de volta, e eu acalmo-o com um sorriso, e ele torna-se para o portão, e eu apavoro-me, e um leve rodopio de folhas ao solo rente ao meu filho alivia-me. Estás em boas mãos, rapaz.
O mundo que eu vejo. É…calmo. Perdeu a inquietude dos meus dias joviais. Oxalá não seja em respeito à minha idade e às minhas pernas cansadas. Tenho uma questão que me intriga: mundo, tu envelheces? Em resposta, uma ventania folheia as folhas do meu livro. Espetáculo — um belo espetáculo —, não me lembro em que página fiquei. Isso deve ser um sim, creio. É um dia pacato, assim como o restante do mês, e do ano. Odeio admitir, mas estou a envelhecer. Agora que penso na maneira como falava dos velhos na juventude, um sentimento de karma preenche-me. Só que há uma coisa boa em perder o atletismo, a energia e a beleza. É que nos contentamos com o mais mísero dos detalhes, e com o último réstio da tarte de morango que somente a tua esposa faz com tal perfeição; quando ouço as chaves à porta, alegro-me, mas não me levanto – ai de mim! Espero e aguardo a paisagem que me floreia um sorriso; aquele pequeno pombinho, uma vez amedrontado do portão dos estudos, acompanhado hoje com uma mão feminina, não creio no que vejo. Como o mundo voa.
O mundo que eu vejo. É…útil, ou carinhoso, não sei defini-lo. Se correr já era um luxo antes, andar é um sonho agora. Mas fazem-no esses meus netos que brincam avidamente pela casa, como são eles sortudos. Tu, mundo, tu manténs-te ao meu lado até ao infinito e mais além. Desde o dia em que aquela a quem pus o anel ao dedo ascendeu, tratas-me como um filho. Trocas-me a roupa, lavas-me os pratos, és um faz-tudo fantasmático e…sabes que mais? Para. Não é por mal, mas para. Ao longos dos tempos, percebi que ou não envelheces, ou és imortal. O que quero dizer é…vai, voa pelas terras, encontra alguém em necessidade, ajuda-os como me ajudaste, muda a perspectiva deles de ti! Eu cá sou apenas uma decadente planta sem regador, e a cada dia murcho em direção à nossa separação eventual, mas predestinada. Tu não mereces isso…não mereces lamentar-te sozinho por anos e anos sem mim, por isso peço-te, meu mundo, parte.
O mundo que eu vejo. É…gostaria de saber como é. Perco a visão a cada segundo que passa, a cada segundo que caio, a cada segundo em que o meu coração abranda até à morte. Sei que estás aqui e que chove. Não! Ilumina-te, sopra essas lágrimas incessantes afora e, enquanto ainda penso, vê o meu último sorriso — Obrigado por tudo, és o meu mundo. E com essa última frase que pronuncio em dificuldade, uma só gota em mim tomba, e envia-me além. O mundo que eu vi.