O Outro Lado - Capítulo 4

— Isso deveria ser impossível! — disse Merlin, suando frio e com os dedos no queixo — Mesmo que você tivesse esse elemento… ainda teria que usar um encantamento ou feitiço… A não ser que…

— A não ser que!? 

— Fosse algo instintivo, algo como uma técnica única. Se isso for verdade, você nasceu com este dom.

— Técnica única? 

Merlin fez um sinal para que Tiago sentasse nos bancos da sala de exame e começou a fazer selos de mão, juntando suas duas mãos com unhas pintadas de roxo e elevando sua energia.

— Cada usuário de Éter tem uma técnica única, uma forma de utilizar sua energia que é tão eficiente e variável que só um ser consegue saber como sua técnica funciona por completo. Alguns desenvolvem uma técnica única, já outros nascem com este dom, lembrando que a técnica única na maioria das vezes é moldada pelo próprio elemento do indivíduo!

Isso… é tão foda! Quer dizer que cada pessoa tem um truque na manga? Algo que eu não posso prever até que eu esteja em perigo!? Q-Que estranho! Eu não me sinto com medo! Mas o meu coração tá palpitando como se eu fosse morrer…

Sem perceber o garoto colocou a mão no peito, sentindo o estrondo de batimentos cardíacos extremamente acelerados, ele até mesmo podia escutar seu coração acelerando o ritmo.

Esse sentimento… parece medo… Mas eu me sinto animado! Se eu tivesse medo eu não gostaria de tudo isso, não é? E-Eu quero me levantar e fazer algo… Eu quero lutar! 

Espera… eu sempre fui assim? 

 — Você está bem, querido? 

— Ah! Me perdoe senhora! Claro que sim! — respondeu Tiago, saindo do mundo dos seus pensamentos e olhando diretamente para a cientista, que ainda mantinha seus selos.

— Eu falei tanto… não sei se você conseguiu absorver tudo isso, então vou te mostrar na prática!

A energia de Merlin se elevou e Tiago sentiu como se algo dentro dela tivesse ativado, como se ela tivesse destrancado uma porta, na verdade o garoto sentia que os selos que ela estava fazendo já tinham colocado a chave na porta, mas ela tinha tomado a decisão consciente de destrancá-la nesse momento.

Depois de alguns segundos dessa ativação Tiago viu um vórtice azul surgir e flutuar um pouco acima da cabeça da pesquisadora, esse vórtice foi crescendo e girando sobre si mesmo cada vez mais, como se estivesse sugando ar ou a energia local para se manter aberto. Merlin desfez seu selo e disse:

— A minha técnica única é a Travessia Espacial! Eu consigo criar portais e teletransportar coisas e até mesmo pessoas por esses portais, embora esse pareça pequeno eu posso controlar seus tamanhos, mas claro que quanto maior mais éter ele consome. Criar portais para teletransportar pessoas é o mais cansativo e meu limite são 5 pessoas, distância também é um fator importante, eu só consigo criar vértices em lugares que já estive por uma questão de visualização!

Merlin explicava tudo com um sorriso, enquanto o vértice do portal girava na sua cabeça, por fim, esse vértice cresceu mais um pouco e um livro o atravessou, era um livro com uma capa de couro branca e detalhes vermelhos, além de um olho fechado no centro.

Tiago sem perceber dava pequenos pulos, seu coração palpitava cada vez mais, suas pupilas dilataram e ele estava com um foco absurdo no que Merlin falava, era como se a energia da pesquisadora ativasse algo nele.

— E-Eu consigo fazer isso também!?

Merlin olhou para os lados e coçou o rosto, corando levemente.

— Sinto muito, querido… Mas como eu citei, é uma técnica única. Embora existam outras pessoas que podem teletransportar, só eu faço dessa forma em específico, mas talvez você ache uma forma de teletransportar coisas ou pessoas também!

Aquilo foi um banho de água fria, Tiago sentou na poltrona de novo, decepcionado.

— E-Eu achei que ia conseguir tacar uma bola de fogo, criar um arco-íris, cortar alguém em mil pedaços ou algo do tipo…

— Pare com essa baboseira! — disse Merlin, com um sorriso no rosto — Por que não testamos sua técnica única agora? Se nossas teorias estiverem corretas você faz algo muito melhor do que essas coisas bobas!

Os dois sorriam um para o outro, até que o silêncio na sala foi quebrado por uma voz cansada e ofegante, porém com um toque de ansiedade e deboche.

— Vamos testar essa merda logo então.

Bang!

Um tiro… Nos meus pés… E-EU FUI ACERTADO POR UM TIRO!

— O-O QUE FOI ISSO!? — gritou Tiago.

— Heh… Então você realmente pode ver o futuro… moleque desgraçado.

Tiago reparou no cenário geral e viu Artur, com um semblante cansado e uma pistola na mão. No chão da sala tinha uma marca de bala próximo dos pés de Tiago, a arma esfumou e os olhos do garoto se arregalaram.

— Eu… vi o futuro!

— ARTUR! SEU DESGRAÇADO! VOCÊ É MALUCO!? — questionou Merlin, repleta de fúria, cerrando as sobrancelhas e andando em direção ao cientista.

— Por que está tão brava? Ele nem ligou, foi só meu último teste… pra confirmar algumas coisas…

— ELE PODERIA TER SE MACHUCADO!

— Mas não se machucou, ele desviou uma vez, por que não desviaria na segunda?

Tiago sorria sem graça, seu coração voltou a palpitar e sem perceber ele  pensava:

Eu queria que ele tivesse atirado de novo… Eu desviei por tão pouco! Ver o futuro e ter o reflexo pra desviar no presente é tão… louco! Meu corpo só se moveu sozinho pelo medo do tiro… Mas e se eu dominar isso? Numa luta, por exemplo! Eu poderia contra atacar e… Por que eu estou pensando nisso?

— Por sinal… Senhor Artur, por onde você estava?

— Ah, eu não respondi, não é? Estava fazendo exames de sangue para saber se você é humano.

— VOCÊ DIZ ISSO DESSE JEITO!? — repreendeu Merlin;

Tiago engoliu em seco, totalmente nervoso…

Ele suspeitava que eu não era humano? Mas eu sou perfeitamente normal…

— E aí? Eu sou normal, não é?

— Tiago, chegue mais perto e se sente ao meu lado.

O garoto seguiu as ordens do cientista, com suor escorrendo pela sua testa. Merlin também se aproximou conforme Artur revelou diversos papéis.

— Seu sangue não tem nem sequer um glóbulo branco, o que significa que você teoricamente não teria proteção nenhuma contra quaisquer doenças existentes no planeta terra, nesse caso, você nessa idade já estaria morto, além disso, seu sangue é diferente do humano, suas células sanguíneas são diferentes das humanas e seus níveis hormonais estão a nível sobre humano, nem mesmo um atleta que toma esteroides teria um terço dos seus hormônios, principalmente o hormônio do crescimento.

— O que tudo isso significa? Eu não entendi nada!

Artur respirou e olhou fundo nos olhos de Tiago.

— Significa que você não é humano, não o suficiente.

Eu… não sou humano.

— Tiago?

Uma marca roxa surgiu na garganta do garoto novamente, seus olhos brilharam na cor da mesma e o garoto começou a se contorcer. Merlin e Artur de prontidão seguraram o garoto e começaram alguns procedimentos médicos.

— ESTÁ ACONTECENDO DE NOVO! O QUE SERÁ ISSO?

— Eu já sei o que é! É um selo! Toda vez que o garoto pensa sobre o passado ele ativa, se ele continuar assim vai sofrer dano cerebral! ME AJUDE A RETIRÁ-LO, AGORA!

— C-Certo!

Os dois começaram um processo chamado de descrever, um processo antigo e complexo para desfazer um selo. Selos são feitiços postos em coisas ou pessoas que as obriga a seguirem uma ordem, um item selado pode seguir a regra de só poder liberar metade do seu poder, por exemplo. O selo feito em Tiago bloqueava suas memórias e o punia sempre que ele tentava às acessar, algo como um selo discreto e punitivo.

— M-Mas que merda! Por que esse selo é tão complexo!?

— Não sei quanto tempo ele vai aguentar! — afirmou Merlin, invocando um vórtice ao seu lado e teletransportando artefatos amaldiçoados relacionados a medicina paranormal.

Um dos itens amaldiçoados que Merlin usa se chama Cristal do Sofrimento, quando ele entra em contato com a pele de uma pessoa ele absorve parte da dor e do dano de seus ferimentos. Esses cristais são raros e muito caros pois podem até mesmo ajudar em casos de vida ou morte, a questão é que quando o cristal entrou em contato com a pele de Tiago, ele se quebrou em cinco segundos.

— Mas… o quê!?

— Sem tempo pra surpresas! Não vou conseguir quebrar o selo totalmente, vou só violá-lo e depois terminar o trabalho, ganhe um pouco mais de tempo!

Tiago não conseguia gritar, apenas se contorcer e reviver diversas memórias cada vez mais confusas. Como por exemplo, o sala com paredes brancas e uma luz esverdeada, ele sentia na sua pele bolhas e não respirava normalmente, se sentia frágil e fraco.

Esse… sou eu? Eu… sou um bebê? Mas… cadê meu pai e minha mãe? Por que… eu estou em um tanque de vidro?

Sem hesitar Artur finalmente conseguiu violar o selo, a marca roxa no pescoço do garoto se rasgou ao meio e em alguns segundos sua situação se normalizou. Tiago acordou respirando fundo como se tivesse acabado de sair da água depois de longos minutos.

— Conseguimos! Você está bem, Tiago? — questionou Merlin, segurando o garoto em seus braços.

O garoto mal abriu os olhos quando tomou um imenso susto, todos os três ficaram em alerta ao escutar um barulho estrondoso, agudo e ritmado como uma sirene. 

— Q-Que barulho é esse… eu desmaiei de novo? — murmurou Tiago.

— Essa sirene… é o código 999, só é ativado quando alguém viola uma propriedade secreta da organização ou tenta acesso a algo proibido… 

— Merda! A gente tem que ir embora daqui, agora! — disse Artur, se levantando e recarregando a pistola.

— Por que? Você não pode tá pensando que o alarme soou pra gente, não é? Não… é? — argumentou Merlin.

— É exatamente o que eu acho que aconteceu! Esconde o moleque em algum lugar! Vou dar tempo suficiente pra você usar sua técnica e nos teleportar pra um local seguro! Tiago é um experimento e nós tiramos o selo que o impedia de entender isso, nós seremos caçados agora!

O alarme soava incessantemente, a partir de algum momento uma voz grossa e irritada começou a falar por cima do alarme, dando instruções e explicando a situação.

— Emergência! Código 999! Um item protegido por selos amaldiçoados de alto nível de periculosidade teve sua proteção violada sem permissão! Todos devem sair do setor de pesquisas em 5 minutos. A evacuação dos pesquisadores deve ser feita por combatentes de nível A! 

Suor caía pelo rosto de Artur e de Merlin, os dois completamente desesperados conforme a sirene continuava a soar. Diversos sons de passos começaram a inundar o local vindos do lado de fora, o que atraiu a atenção do cientista.

— O que está acontecendo!? — questionou Tiago.

Artur avançou até o portão da sala de exames, feito completamente de aço maciço e colocou seu cartão de permissão, tentando abri-lo para a fuga, porém uma mensagem de erro apareceu no visor da abertura.

— Merda! Bloquearam o meu acesso! Estamos presos aqui!

Artur se aproximou de Tiago e colocou as mãos no ombro do garoto.

— Preciso que você preste muita atenção no que eu vou falar pra você garoto, seu elemento… ele é único! Acredito que seja fruto de algum experimento de Nolan envolvendo a porta… e é por isso que preciso que não morra!

— P-Porta? Experimento?

— Existe um objeto amaldiçoado escondido nos setores inferiores, uma porta que se teleporta para lugares aleatórios de tempos em tempos, ela é indestrutível e não pode ser contida. Meu pai passou a vida toda estudando essa maldita porta! Ele acreditava que ela podia ser importante para descobrirmos mais sobre a origem dos demônios, porém aquele velho idiota simplesmente sumiu durante a pesquisa e nunca a concluiu…

O cientista falava olhando nos olhos do garoto, suas mãos tremiam e ele estava repleto de medo, ódio e até mesmo confusão, porém suas palavras pareciam certas apesar de trêmulas.

— Aquela porta… guarda o maior segredo desse mundo! Nunca descobrimos como abri-la mesmo depois de tantos anos… mas Tiago… olhando pra você, algo me diz que você é essa chave! Você é o caminho para desvendar os maiores segredos desse mundo! Você é a chave para o outro lado!

Thum!

Um barulho estrondoso invadiu a sala, em um piscar de olhos a porta de aço maciço foi aberta ao meio, como se tivesse sido destruída por algo extremamente afiado.

Assim que as chapas de aço caíram no chão, causando uma destruição no chão da sala. Um batalhão de soldados armados começaram a caminhar e se posicionar pelo lugar, todos eles com fuzis e armas de extremo calibre, tendo um deles portando até mesmo uma bazuca.

Um soldado parecia deslocado do batalhão, ele usava vestes brancas longos parecidas com um kimono, seu cabelo era liso e ele usava uma venda negra com desenhos dourados que cobria todo seu rosto.

— Argh! — resmungou o soldado misterioso — Todos a postos, vocês já sabem como funciona! Mirem as armas na cabeça dele e se ele não se render atirem, simples assim.

— Essa voz… — resmungou Artur — É você, não é? Salos!

— Oh! Artur… É claro, tinha que ser você.

Fragmentos da explosão acertaram o cientista de raspão, ele tinha um corte profundo na testa que cobriu a lateral esquerda da sua face de sangue. O cientista abriu o sorriso e disse:

— Olha! Nolan está planejando algo… Esse garoto… o elemento dele é existência! Não existe alguém como ele a séculos! Não acha isso estranho? Ele ainda se recusou a me dar respostas! Certamente esse garoto é um experimento humano! Essas coisas foram banidas do regulamento a mais de 200 anos atrás!

— Calado — disse o soldado, puxando uma espada negra de sua bainha, a espada tinha detalhes dourados em escrituras antigas e exibia uma aura poderosa — Me desculpe, Artur… Você é um antigo companheiro muito querido… mas ordens são ordens. Se você tivesse se afastado dos experimentos envolvendo aquela porta idiota talvez não tivesse enlouquecido a esse ponto… é uma pena.

O soldado misterioso chamado Salos investiu sem pensar duas vezes, segurando sua espada com apenas uma mão e cortando transversalmente o cientista em um piscar de olhos.

— O quê? 

— Haha… eu não esqueceria esse estilo de luta despreocupado nem em mil anos…

Salos arregalou os olhos quando viu Artur parar seu ataque com as duas mãos, sem qualquer proteção.

— Suas ordens são para executar eu e Merlin, mas para capturar o garoto, não é? — falou Artur, sorrindo debochadamente.

— Desgraçado! Batalhão! Mirem no cientista Artur Ervin agora!

Todos os soldados mudaram seu foco para Artur, que permanecia sorrindo segurando a lâmina de Salos. De repente os olhos do cientista começaram a brilhar em amarelo após ele sussurrar um encantamento.

— Quem diria… 25 soldados armados com fuzis SLVK e dois deles com explosivos de alta potência… eu não achei que fosse um problema tão grande assim, haha!