O Reflexo da Lâmina - Capítulo 2
Algumas coisas nunca mudam, parte 1.
Confusa, Khalir percebeu que a atenção do gato estava destinada a outra coisa além dela. Virou-se lentamente até que seus olhos encontrassem a resposta que ansiava.
Um calafrio percorreu toda sua espinha. Aquilo era uma escuridão personificada da mesma forma de um homem, mas não era humano.
A praia em volta se tornava mais gélida e cinzenta. O tempo freou junto de sua expressão.
A escuridão ganhava cada vez mais forma e vida, conforme mais trevas saíam do centro daquilo e se projetavam umas sobre as outras.
Assim, por formar a figura de um homem alto, Khalir parecia uma pequena criança indefesa em sua comparação. Ela o encara com o rosto sombroso e inexpressivo de genuíno pavor.
A presença mágica distorcia aquele ambiente e consumia a luz do sol. O ar rarefeito era quase visível aos olhos, ou pelo menos a distorção de seu fluxo.
Com dificuldades para respirar, Khalir se prostra perante a soberania da presença.
— Venham ao meu encontro. — Rouca e fraca, sua presença desaparece completamente ao fim do anúncio.
Khalir olhou para um lado e para o outro, encarou o rastro na areia por alguns segundos. Até que a garota deu um sorriso forçado, ao virar-se para Lhonan bruscamente.
— Certo, e isso foi… — Com a respiração ofegante e olhos arregalados, Khalir continuou: — Isso foi foda pra caralho!
Apontou com sua espada onde estava a sombra que acabara de partir. O sorriso forçado se tornou natural conforme seu coração se acalmava.
Enquantoela gargalhava, incrédula do acontecimento; Lhonan olhou cabisbaixo, então apontou o seu cajado em direção aos céus.
— Lhonan?
— Alvat, o quarto espírito, aquela que pondera sobre todo o conhecimento mágico. — Lhonan fecha os olhos. — Mostra-me tua coragem que parta todo o conhecimento!
“Por que ele teve de voltar agora, tem algo a ver com ela? Só pode ser.”
Faíscas azuis começam a sair da ponta do cajado, fluindo ao redor de Lhonan e iluminando a areia. O fluxo de faíscas mágicas começa a se tornar um riacho fluorescente e se espalha por toda a praia. Faxinando cada cavidade da areia, suavemente, sem deslocar nada de lugar.
— MAGIA! — Khalir abre um grande sorriso. — Nunca pensei que ia ver um mago pessoalmente. Na verdade achava que eles eram reais.
— Para uma leiga, deve ser impressionante mesmo. — Lhonan olha para Khalir. — Senhorita, eu tenho uma boa notícia.
— Conheço um mago que pode te ajudar a voltar para casa, e talvez quebrar a maldição da espada, — afirma Lhonan — por mais ele seja alguém que eu prefiro evitar.
“Ele conhece a sombra?”
— Mas antes que eu me esqueça, TU VAIS ME CONTAR COMO FEZ UM CONTRATO COM UM ESPÍRITO! Senhorita “Khalir”.
— Heheh. — Deu de ombros, se fingindo de desentendida. — Eu só fiz o que estava escrito na espada, vai, nem é tão perigoso assim. Ainda estou viva, forte e saudável.
“Tu leres aquilo? Não deveria ser possível.”
Khalir olha para Lhonan com um sorriso despretensioso, enquanto se alonga.
Lhonan retira de sua bolsa três frascos redondos feitos de vidro, contendo um líquido verde contido dentro de cada, ele os prende em sua cinta de couro.
Khalir se aproxima, ajeitando o chapéu do gato.
Um chapéu desproporcionalmente grande e pontiagudo, com uma marca bizarra de boca costurada. O gato se afasta, pouco após isso.
— Não toque nisso.
— Ah, desculpa! — Ela levanta suas duas mãos, olha pro lado com um sorriso cínico.
— Certo. Mas mudando de assunto, o quanto tu conheces sobre magia? — Lonhan enquanto caminhava, adentrando a floresta.
— Nada. — Khalir mantém o mesmo sorriso cínico, caminhando logo atrás.
— Pior do que eu pensei. Nem medo, ou coragem?
— Eu tenho isso, mas sou bem corajosa!
— Não, não estou falando de sentimentos, mas esquece. Você vai ter bastante tempo para entender o que quero dizer.
— É tão ruim assim alguém não saber nada de magia? Tipo, o que tem de tão especial além de soltar faísca — provoca-o enquanto olha para a grama.
— Queres aprender a fazer isso?
— AGORA!? EU QUERO!
— Claro que não, magia não é tão simples assim. — Lhonan revira os olhos e mantém uma cara séria.
A garota dá um riso baixinho enquanto trespassa uma pequena barreira de árvores caídas, rumo à planície.
Seus olhos logo estavam fixados em cada coisinha daquele cenário, ansiando por detalhes e novidades. As poucas árvores sempre quase tão isoladas, abriam o caminho para uma visão ímpar: um belo campo florido e multicolor, que complementava a grama que pisava.
Ambos seguiram viagem rumo à montanha, essa que era digna de ser denominada como um gigantesco monumento natural, que por pouco não alcançava as nuvens em seu cume.
Riachos inteiros desciam e circulavam sua longa subida, a floresta era apenas como sua capa. Entretanto, certamente essa seria a segunda maior coisa no horizonte visível, a outra, tão enorme que podia ser até confundida com uma parte do céu.
Uma árvore colossal ao longe, instaurou-se na terra e alcançou os limites do céu. Pintava ele com os tons de madeira velha e folhas verdes. Seus galhos tão altos que se entrelaçam dentre as nuvens como parte delas.
O tronco tão robusto que bloqueava o céu, mesmo em uma distância considerável. A própria existência daquela árvore mística demarcava sua importância e grandeza, algo que nunca deveria, e nem poderia ser desrespeitado.
— E que porra é aquela ali? — Ficou boquiaberta e de sobrancelhas franzidas ao encarar a árvore.
— Olha a boca, mocinha. E não me pergunte, apenas sei que essa árvore existe há tanto tempo quanto a ilha de Exon. Arrisco dizer que existe há tanto tempo quanto Terravista.
— Terravista?
— Não sabes… nem o nome do mundo? — Lhonan lança um olhar cerrado de cima a baixo. — Quando o grandíssimo idiota criou o fogo, ele criou esse mundo inteiro conhecido como Terravista, ou pelo menos é como contam a história.
— Na verdade, nunca soube muito das coisas. E mesmo pelo pouco que eu lembro de ter vivido… — Khalir mantém-se quieta durante uma pausa inquietante de tempo. — Só lembro de uma fazenda.
“O pouco que lembra?”
— Uma fazendeira então?
— Uhum, algo assim.
“Devo perguntar a ela sobre mais coisas de seu passado? Ela realmente parece leiga demais em relação à própria história.”
— Se me permite a pergunta, quem tu és?
— Se me permite a resposta, sou Khalir — retruca com uma expressão despreocupada
Lhonan solta um leve ar de risada.
Se aproximando de mansinho: Uma ovelha pela retaguarda da garota, cabeceando-a. Ao virar-se prontamente, Khalir pula gritando, então cai de bunda na grama
— QUÊ!?
É uma ovelha, mas não qualquer ovelha. Sua lã roxa e brilhante esnobava nobreza e status. Quase brilhando tanto quanto o cristal azul em sua testa, um cristal rígido, preso como um chifre.
— Essas são aí são bem dóceis… por mais que os humanos cacem-as de forma cruel e covarde.
— Os humanos matam isso!?
— Sim, os “humanos”.
— É mais comum do que parece, principalmente por conta do cristais. — Lhonan bate de leve a ponta do cajado na testa da ovelha. — Existe uma lenda folclórica antiga sobre essas ovelhas conseguirem ler mentes, um certo escritor escreveu um conto sobre isso 5 anos atrás.
“Ler mentes? Isso parece assustador.”
Khalir mantém-se rígida, levantando lentamente em direção a ovelha, estendendo a mão esquerda até a cabeça da ovelha, acariciando.
A fofura roxa aceita o carinho. Em poucos segundos a ovelha se rende por completo, se jogando nos pés da ruiva.
“Jovem Khalir, não é? Me pergunto muito sobre ti, mas não acho que terei respostas tão cedo.”
Khalir vira-se em direção à montanha e retoma sua marcha. Tropeçando ocasionalmente em pedrinhas jogadas pelo campo.
— A gente vai pra lá mesmo? Lá que o mago mora? — Olha séria para a montanha.
— É um poderoso contratante, e um grande amigo também… ou… deveria ser um amigo. Ele sempre foi bem estudioso, amava ler aqueles livros velhos e empoeirados da biblioteca real.
— Esse cara realmente é confiável?
— Se lembra daquela sombra?
— Tem como esquecer?
— Aquela sombra é uma forma de contato dele.. Poderoso o suficiente para ajudar uma garota perdida, não?
— Eu não duvido que ele seja poderoso, mas não podia mandar um pombo correio ou algo assim, uma fada, um gnomo da colher? E qual o nome dele?
— Thomas. Talvez tu estejas certas, mas é um pouco obsessivo com isso de se tornar forte e usar magias poderosas. — Ele para no meio do caminho, pega seu próprio pingente com um brasão de ferro.
— Queres escutar uma história sobre o antigo reino? Vai ser necessário.
— Só bora! As melhores viagens têm histórias. Mas não é melhor contar andando? — Khalir olha para Lhonan, que acena com a cabeça e volta a caminhar.
— Faz pouco tempo, um pouco menos de uma década. Durante uma invasão de bárbaros… eram muitos invasores. — Olhou vagarosamente para o chão, então continuou:— Invadiram pelo sul e pelo leste, mobilizamos todas tropas para conter a invasão, um erro de logística grotesco por parte da inteligência.
— Não conseguiram parar, né? — Contrai seus lábios para o canto, e estala a língua no céu da boca; olhos vagos ao além do horizonte.
— Para falar a verdade conseguimos, senhorita. Retaliamos a invasão com absoluta maestria, porém como eu disse… houve um grave erro de logística.
— Com todos os soldados mobilizados nessas áreas, nem sequer cogitamos a possibilidade deles já estarem previamente mobilizados perto da família real… — Franziu suas sobrancelhas, conjuntamente de olhos trêmulos e quase que molhados.
“Cogitamos?”
— Desculpa mesmo se for insensível, mas onde exatamente você está nessa história?
— Sou uma criatura mágica, mais precisamente uma invocação. Meu dever como vínculo espiritual do rei Chris era proteger e zelar pela segurança de seus filhos, Thomas e Thobias.
“Era?”
— Tenho certeza que conseguiu! Digo… conseguiu, não é? Senhor gato…
Seus olhos felinos encaravam além da uma cicatriz de seu presente, encaravam uma ferida aberta do passado. Por aquele breve momento, todas as criaturas da floresta cederam ao silêncio, quase que em respeito a Lhonan, que freou seu ritmo de caminhada.
Khalir analisou cautelosamente a situação de seu parceiro, respirou fundo..
— Meu pai sempre me disse que fracassos são apenas degraus da escada da vitória, ou algo assim… Não faço ideia do quão isso te afeta, mas faço ideia que já aconteceu, devemos olhar para frente e iluminar o nosso próprio futuro! — Khalir fechou seu punho com força, quase com as suas unhas rasgando a palma da mão.
— Me disseram uma vez que deixar as trevas iluminarem nosso futuro, é mantê-las vivas em nossos corações. — Khalir abre um grande sorriso quente como a brasa ardente, e coloca a mão no ombro do gato.
“Meu pai… como era seu rosto mesmo? Me pergunto como estão as coisas por aí”
Ele permaneceu em silêncio, porém com um olhar revigorado de confiança. A garota rapidamente mudou seu foco para o imenso castelo situado perto do topo da montanha.
Algo que claramente não estava ali antes, uma construção de um porte gigantesco, mesmo distante era para ser visível.
— Aquilo sempre esteve ali?
— Feitiço de invisibilidade.
— Ah tá… eu já sabia! — Revirou os olhos e forçou um sorriso.
“Mas, se o castelo é invisível… como encontraram a família do senhor gato?”
Adentrando ainda mais a montanha, cada passo marcava a terra macia da trilha, junto de uma calmaria no fim da manhã. Pedras musgosas e pinheiros faziam parte do ambiente, tal como esquilos, abelhas e borboletas.
Alguns animais com cores variadas ou brilhantes voavam ou corriam, conforme ditava o ritmo da gentil brisa vinda do cume da montanha.
— Tamo quase lá! — Khalir pôs a mão na barriga que roncava, encarou seu companheiro.
— Quando chegarmos, talvez tenha mais comida.— Ofereceu dois pães para Khalir. — Isso deve enganar a fome por enquanto.
Uma ponte cruzou seus caminhos, acima da larga correnteza de rio que descia a montanha. A ponte de pedra era tingida pelo musgo verde que lentamente comia as beiradas, e dentre os vãos crescia a relva.
Estruturada de forma que poderia acolher até mesmo duas carruagens, uma ao lado da outra. Era bem robusta e projetada. Ambos os companheiros deram um passo firme à frente, amortecidos pelo som do vento que uivava.
“Algo não está certo. Essa ponte deveria estar com um bloqueio.”
Eles não estavam sozinhos naquela ponte, saindo da tocaia no final da ponte, duas criaturas parecidas com duendes de pele esverdeada, estatura baixa, sorrisos grotescos.
Um segurava um porrete e o outro uma adaga enferrujada, vestiam trapos assim como Khalir.
Logo atrás também haviam outros três que conseguiram passar despercebidos, dois com porretes, e mais um com uma espada enferrujada.
— Merda — foi dito por ambos em uníssono.