Os Contos de Anima - Capítulo 103
Entretanto, mesmo que disparando o questionamento em reflexo, Lucet sabia que não obteria qualquer resposta de seus oponentes. Isso era uma guerra, nenhum inimigo seria gentil ou arrogante o bastante para revelar seus segredos assim, se fizessem, seria um extremo descaso com a arte da guerra, mas, o garoto logo veria que pensar assim era algo excepcionalmente generoso de sua parte.
Quando as tropas humanas avistaram a surpresa de seu oponente, este que até instantes atrás não mexia sequer um músculo e os desdenhava com um leve sorriso em seus lábios, sua confiança ascendeu as estrelas como uma poderosa chama, incendiando seus peitos aflitos e preenchendo-os com energia. Agora seguros da vitória, lembrando-se de sua superioridade numérica, líderes das legiões Concordia ergueram suas espadas, anunciando para cada tropa com uma voz amplificada por um broche arcano afixado perto de seus pescoços.
— Não temam homens! — Disseram com um inicial tremor que logo foi sobrepujado por uma reverberante bravura — O verdadeiro senhor caminha conosco! Os armamentos santos de Puritas asseguram-nos a vitória! — Suas vozes então praticamente cuspiram as últimas palavras — Esmaguem esse herege! Pisoteiem seus ossos e queimem sua carne com as santas chamas até que não sobrem nem mesmo suas cinzas!
Lucet, mesmo um tanto afoito, não pode reprimir um sorriso largo que brotou em seu rosto ao ouvir o brado corajoso.
— Sinceramente — O garoto comentou para ninguém em particular — Esse povo não cansa dessa? Alguém imaginaria que esse discurso uma hora ia ficar chato de fazer — ele então deu de ombros, dizendo — Bem, fé é um troço assustador no final das contas.
Concentrando sua visão para englobar o máximo de informações possíveis, o corvo vislumbrou o campo ao seu redor com o olho de pupila em fenda, caçando avidamente a fonte dos tais “armamentos santos”. Considerando que eram uma obra de Puritas, não era de se estranhar que fosse alguma aplicação da aura, ainda que ele não soubesse especificamente o que.
A grande benção de Faerthalux não incluía um conhecimento enciclopédico de todas as aplicações possíveis da energia dourada, portanto, ainda que obtivesse o método correto de treinar esta capacidade ao máximo de eficiência e pureza, não sabia tudo que poderia fazer com ela além das técnicas ensinadas a si e a criação da armadura luminosa que agora vestia.
Mesmo com seus os cem rubros lutando com grande habilidade e bravura, decimando linha após linha de seus oponentes como leões em uma manada de guinus, Lucet teve dificuldades em encontrar e desviar dos ataques. Fora obrigado a desviar mais cinco vezes, uma mais perigosa que a outra, antes de finalmente conseguir enxerga-las com seu olho do tirano devido a grande velocidade dos projéteis.
— Merda! — disse o garoto ao desviar de mais um ataque que prontamente explodiu ao colidir com o solo — Eles encontrar um jeito de injetar e selar uma quantia imensa de aura nas flechas, mas como!?
Aparentemente, o fato do garoto estar conseguindo esquivar dos poderosos armamentos santos e seus impactos estava começando a preocupar a liderança humana. Devido a conexão do corvo com os cem, por vezes recebia palavras soltas, informações incompletas transmitidas pelos mesmos, mas, quando recebeu uma mensagem de quatro palavras em sua mente, Lucet lutou para conter um gargalhar que ameaçava irromper de sua garganta.
“Não temos o bastante…”
Obviamente, o garoto compreendeu facilmente, a mensagem se referia ao fato de que os inimigos não acreditavam ter munição o bastante para derrotá-lo. Isso deveria elicitar uma risada satisfatória do rapaz, mas, quando o próximo fragmento informativo alcançou seus pensamentos, ele abertamente desejou liberar seus pensamentos.
“Chamar… Reforços…”
— Drek! — O garoto repetiu um xingamento Gnoma — eles ainda têm reforços!?
De repente, um foco luminoso adentrou seu campo de visão, rajadas de energia dourada ascenderam ao céu noturno tão rápido quanto relâmpagos, prontamente explodindo após alcançar seu ápice. A energia então convergiu e se transformou em um enorme símbolo que Lucet reconheceu facilmente como o símbolo da congregação.
Avistando o símbolo, o corvo não pensou duas vezes. Os dedos de sua protomail se abriram com cliques, tintilando enquanto a flâmulas escarlates irromperam por entre as frestas da prótese. A jóia rubra na palma de sua mão prateada então reluziu com um brilho sanguíneo e, como se convocadas por um general, o fogo sangrento marchou em direção a gema, acumulando e sendo compresso acima dela.
— Isso tem que sumir! — o garoto rosnou, retesando o braço metálico e posicionando-o ao lado de sua cintura — Não posso deixar que vejam esse sinal!
Em um instante, o jovem disparou a mão na direção do símbolo, pronto para liberar um ataque decisivo, porém, antes que sua mão alcançasse o ápice do trajeto, seus instintos detectaram mais um projétil rasgando o ar em sua direção, desta vez mirando sua prótese. Sem hesitar, Lucet girou a palma na direção do ataque, liberando as chamas acumuladas para interceptar o armamento santo na forma de uma rajada vermelha.
Os ataques colidiram no meio do ar causando um impacto que resultou em uma explosão, gerando uma onda de choque que arrancou numerosas folhas de grama do solo e as mandou pelos ares. Chamas rubras irromperam uma vez mais das frestas do braço prateado, acumulando sobre a rubi sanguínea, porém, antes que sequer tivesse a chance de direcionar seu membro, uma outra flecha voou em sua direção, mirando no centro do seu corpo desta vez.
Lucet pensou em desviar, mas se o fizesse, a seta atingiria o solo próximo demais de si, portanto, o corvo decidiu disparar uma segunda rajada vermelha para solucionar a ameaça, entretanto, ele sabia que não podia continuar desperdiçando as chamas rubras desta forma, por isso, comandou.
— Senhores! — Rugiu, brandindo sua lâmina negra e dourada envolta em fogo sangrento ao — Desfaçam a defesa! Cacem esses malditos arqueiros e destruam os armamentos santos!
— Sim, capitão! — Os homens responderam em uníssono, sem hesitar.
Em um instante, a sólida formação defensiva circular que os guerreiros rubros insistiam em manter enquanto expandiam sua ofensiva, foi desfeita. Os guerreiros tinham raciocínio próprio e liberdade de movimento, mas, isso não significava que considerassem a ideia de discordar de qualquer comando do corvo.
Uma vez que os humanos se viram livres da formação defensiva do oponente e sua inacreditável resiliência, prontamente se reorganizaram. Alguns grupos se formaram em pontos mais distantes para defender os arqueiros enquanto o restante virou sua atenção para o jovem, decididos a aniquilar este pequeno moleque arrogante.
Qualquer um que olhasse de fora, reconheceria a ordem do rapaz como imbecil. Lidar com as flechas seria muito mais fácil do que confrontar as dezenas de milhares de soldados sozinho, contudo, Lucet estava longe de ser um simplório ou idiota, suas cartas estavam longe de se esgotar e ele tinha a confiança necessária para agir e completar sua missão, mesmo que com crescentes restrições agora que os soldados estavam se afastando de si.
A cada segundo que se passava, o garoto conseguia sentir constrição crescer em seu corpo. Suas juntas emitiam alguns estalos ocasionalmente, bem como rangeres uma vez que se movessem. Seus músculos vibravam e ardiam como o esforço de cada locomoção e ordem do cérebro enquanto os nervos pareciam protestar, o confundindo com constantes alterações de sensação.
O garoto respirou fundo, e então, uma aura cinzenta começou a exalar de seu corpo como fumo. O fluxo da mana em seu corpo agiu como tônico, fortalecendo sua estrutura e aliviando um pouco os sintomas da tensão, lhe devolvendo mobilidade o suficiente para agir, mesmo que seus dentes já estivessem travados em esforço para resistir a dor.
Lucet transferiu sua lâmina para a prótese, suas garras se fechando em volta do cabo de osso e couro arcano anormalmente resiliente. Em seguida, o fumo cinzento fluiu em direção a sua mão, esta coberta com uma manopla dourada cujo luzir escureceu significativamente uma vez que a energia mágica lhe alcançou.
Ele era capaz de ouvir a cacofonia de cada pedaço de malha e placa de aço colidindo com seus vizinhos. O zunir de cada lâmina que atravessava o ar e enquanto seu usuário, em fôlego apertado e barulhento, buscava atingir o jovem solitário que estava prestes a confrontar uma onda de mais de quinze mil homens.
Erguendo sua mão ao alto, chamas douradas irromperam ao redor do seu corpo, seu brilho fluindo junto ao fumo em direção da estrutura acima, convergindo em um lustro negro e dourado que emanava um perigo incompreensível a quem observasse. Os soldados tremeram, mesmo que sem para seu avanço contra o jovem, sentindo-se como se contra uma grande besta ou uma morte inevitável, algo que ficava óbvio aos olhos do corvo que não pode conter um sorriso.
— Exatamente… — ele murmurou — tremam… vocês escolheram lutar, agora aceitem as consequências por se unir àqueles maníacos!
Lucet então respirou fundo, puxando o máximo de ar que conseguia antes de despencar seu punho da direção do solo, instantaneamente abrindo uma rachadura na terra com o impacto. Seu corpo irrompeu em um brilho tão intenso quanto o de uma estrela, forçando as tropas a para e cobrirem seus olhos, emanando uma quantidade gigantesca de chamas douradas e flâmulas fumegantes, mas, este foi apenas o início, pois a energia logo foi direcionada ao solo, injetada na terra, desaparecendo como se jamais tivesse existido.
Por um instante, o campo ficou em silêncio exceto pelo bater dos metais à distância, contudo, este logo foi rompido quando uma voz, baixa e firme, decisiva e imperiosa como a foice imparável da própria morte declarou:
— Jornada do Punho Real : 2ª Forma Revisada : Impacto do Crepúsculo.