Os Contos de Anima - Capítulo 109
O tempo que levou para as chamas se alastrarem e consumirem o corpo paralisado do corvo de Puritas não foi mais que um instante, porém, esta fração temporal pareceu toda uma eternidade para a garota que assistia o evento. Os infinitésimos fragmentos temporais se arrastavam diante dos seus olhos, convertendo a imagem de um amado mentor para uma estátua carbonizada.
Neste momento tão minúsculo, ela observou, atônita, a destruição do seu maior amigo, companheiro e… pai. Memórias inundaram a mente enquanto ela tentava processar o ocorrido, as forças universais desacelerando em misericórdia deste evento tão trágico. O coração prosseguia bombeando, silente, acelerado. A respiração parara completamente, presa em uma garganta a muito trancafiada de tensão.
Lembrou-se de cada momento, das lições, dos treinos e de todo desafio que o corvo sempre a apresentara em seu aprendizado. A mente fervilhava com um turbilhão de emoções e memórias enquanto assistia em um mundo semiparalisado o último dos tempos daquele que por tantos anos chamou de mestre, quem lhe ensinou as verdades do único senhor e da poderosa pontifícia.
Antes que notasse, os músculos de seu rosto contraiam em um rosnado de fúria, dentes a mostra, olhos ardentes em chamas negras de ódio interminável. Uma reação natural, muitos diriam, a perda é algo difícil de confrontar e dificilmente uma adolescente estaria habilitada para tal feito. O fogo da ira era o combustível para enfrentar a dor e com isso, ela estendeu a mão em direção ao chão, mobilizando a mana remanescente.
Alguém mais sábio, ou mais covarde, fugiria de um oponente tão formidável. Quem em sã consciência enfrentaria alguém capaz de dizimar um exército em tão pouco tempo, sozinha e debilitada como a garota estava? Ele sozinho já seria trabalho o suficiente, mas, com a besta ao seu lado, isso era praticamente suicídio!
O inimigo era praticamente uma fortaleza, suas dezenas de soldados imortais de prontidão, prestes a retornar com um mero pensamento e reforçar o físico inumano que continha tanto poder. Mana, Aura e o estranho poder vermelho, que chances ela tinha contra isso? O quão insignificante era para arriscar-se contra este ser? E como se isso não bastasse, ainda teria de confrontar a fera de escamas rubras e olhos traiçoeiros.
Mesmo que todas estas palavras fossem racionais, fatos indisputáveis, a dor que agora carregava era insuportável e clamava por ação. O fogo indomável do luto a queimava por dentro, rugindo contra a injustiça e demandando vingança! Os olhos da jovem assistiam, arregalados enquanto o professor que a treinara desde tão jovem era desintegrado, esfarelando em cinzas pálidas.
A lança de Mugetsu, o artefato contratual da família da jovem corvo, reluzia com um luzes etéreas, porém fugazes, carregado pelas derradeiras energias da jovem. Ela não tinha qualquer noção das chances de sucesso da ofensiva desesperada que intuía realizar, muito menos o bom senso de escapar disso com vida.
Podia sentir as emoções de Raihou, seu parceiro de tantas missões, implorando que fugisse, queria sair e lutar, mas os danos que a jovem sofrera em combate bem com sua energia quase exausta o impediam de atravessar o selo e adentrar a batalha.
Razão não era algo útil para Sophia neste momento pois ela tinha apenas um objetivo em mente. Não importava qual o preço ou consequência, a garota almejava por empalar o maldito herege com sua lança, atravessar o coração imundo daquele verme e assistir o esvair da luz de seus olhos.
Silenciosamente, ela firmou o aperto dos dedos em volta do cabo da lança, cautelosamente direcionando a lâmina sinuosa do armamento na direção do peito do assassino de seu mestre. A melhor arma de um combatente furtivo era a ausência. Da presença, do intuito, do som, do movimento, tudo tinha que desaparecer antes do golpe e explodir em um instante certeiro.
A lição do mestre ressoava nas memórias turbulentas da jovem, um norte para a ação que asseguraria esta vingança. Dizem que o treino não abandona o guerreiro, mas sim o guerreiro que abandona o treino e, neste momento, isto se provou verdade. Os movimentos foram praticados, a muito gravados na memória muscular, cada flexionar, apertar, torcer e manipular, tudo sem desperdício, absolutamente preciso.
Sob o efeito arcano do contrato, as luz indesejada começou a desviar da silhueta da garota. O som, um incomodo nesta execução, foi expulso logo em seguida. Até mesmo a presença vital, uma coisa sútil e detectável apenas pelos mais hábeis, também fora reduzida, tanto que a jovem parecia mais um cadáver, sua pele empalidecendo ao ritmo que o coração diminuía o ritmo dos trabalhos.
Os momentos passavam arrastados enquanto a jovem movia o corpo, observando cada detalhe do alvo e o monstro ao seu lado. A furtividade elevada aos limites, a garota respirou uma única vez e, focando toda a energia caótica que lhe abalava os nervos, prendeu a respiração, virando o corpo que estava com as costa na terra para frente, agachando ao posicionar a perna direita para trás.
Foi no instante em que avistou o garoto espreguiçar, a guarda baixa enquanto brincava com o animal escamoso, que ela avançou. Normalmente, chutar a terra com tanta força iria erguer uma nuvem de poeira e certamente fazer algum barulho, mas, graças a furtividade arcana de Mugetsu, a garota avançou como se pisasse no ar, ignorando as leis da física enquanto deslizava na direção do garoto.
Mesmo ferida, exausta e com as reservas de mana quase vazias, ela conseguiu adentrar um estado etéreo de consciência. A vontade inabalável de vingar seu mestre facilitou com que todos os recursos e experiência que possuía se alinhassem para que ela desferisse o ataque veloz e preciso que já executara.
Invisível e sem rastros, não existia grande perturbação no ambiente, mas, se alguém tivesse a capacidade para tal, veria que a jovem era não mais uma pessoa e sim um borrão. Extremamente letal, a garota havia incorporado todo o seu poder com arma firmada entre os dedos, se tornando uma com ela, algo que teoricamente só os maiores mestres deveriam ser capazes de fazer.
“MORRA!” Sophia rugiu mentalmente, as bordas de sua vista avermelhadas e trêmulas devido a velocidade descomunal que se movia. “Vá direto para o inferno e sofra por toda eternidade, HEREGE MALDITO!”
Mais rápida que o piscar dos olhos, a corvo galgou a distância entre ela e o oponente, praticamente rasgando o espaço em sua ofensiva. Ela podia ver a morte do inimigo! Podia sentir o sabor do sangue maldito que estava prestes a jorrar! Um sorriso maníaco cresceu no rosto da garota que praticamente saborear a carne sendo rasgada e o cheiro do pútrido que exalaria das vísceras deste algoz.
A lâmina do equipamento arcano estava a meros centímetros de alcançar as vestes do jovem corvo despreocupado quando, de repente, a garota que tinha certeza de ter escapado da percepção completamente, se sentiu observada. Surpresa, ela direcionou a vista para o local de onde vinha esta súbita atenção e descobriu, para seu desespero, quatro olhos bestiais cravados em sua posição.
“Não achou mesmo que isso ia funcionar, né?” O sorriso no canto da boca de Lucet zombava dos esforços da jovem, silenciosamente transmitindo a mensagem de confiança absoluta. Sem virar o corpo, apenas olhando com o olho do tirano, o corvo não era capaz de enxergá-la propriamente dito, mas, Draco era, e por isso, foi capaz de localizá-la uma vez que focou os sentidos na tarefa.
Emoções tempestearam na mente da garota, desespero rapidamente atacando a ira e desencorajando-a, porém, fosse pela pura indignação ou a crença da vitória inevitável, Sophia resistiu o medo e firmou ainda mais o aperto das mãos. No instante que a lâmina estava prestes a encostar no tecido, tudo se tornou um borrão aos olhos da garota e, no segundo seguinte, marrom, verde e especialmente doloroso.
A corvo sentiu calor escalar em sua garganta enquanto o fôlego lhe escapava os pulmões. Por um tempo incontável, a escuridão tomou conta da vista e o frio escalou-a da raiz dos cabelos cacheados até a ponta dos pés. O peito parecia constrito, como se alguém pisasse nele, impedindo-a de respirar, mas isto foi apenas a consequência da resposta da criatura escamosa.
Draco agiu rápido e, antes que a lâmina do inimigo pudesse encostar em Lucet, atacou Sophia usando a cauda, atingindo-a diretamente nas costas. Por reflexo ou sorte, a garota virou o corpo na última fração de segundo, algo que preveniu um ataque direto a sua coluna. Ela não ficou paralisada por isso, mas, alguns pares de costelas definitivamente sofreram rachaduras e/ou fraturas.
O impacto, porém, fora bem mais poderoso que qualquer um dos envolvidos esperava e, quando a grande fera rubra acertou o golpe, acabou por arremessá-la ao chão com tanta força que o mesmo estilhaçou. Ela acabou por quicar e rolar alguns metros para o lado.
— Ufa, essa foi por pouco — Lucet comentou, suspirando em meio a breves risos nervosos — Se você não estivesse observando, ela provavelmente teria me matado — O garoto enxugou um suor frio na testa com a costa da mão.
Ao dizer isso, a aura dourada que recobria o corpo do garoto começou a falhar, piscando repetidamente até se desfazer em névoa, removendo as proteções do poder luminoso que havia se esgotado. Em outro lado, a capa translucida composta de mana das sombras também começou a esvanecer e logo, a energia cinzenta também despareceu, restando apenas as dezenas de correntes vermelhas espalhadas ao redor do jovem.
Lucet sentia o martelar do coração no peito ao passo que as energias eram retraídas a fim de conservar o que restava delas. Manter os construtos energéticos ativos apenas gastaria mais energia e, com Draco por perto, o garoto se sentia tranquilo o suficiente para tentar descansar um pouco e recuperar as forças.
Até mesmo o braço metálico, o brilho das gemas se apagando, adentrou um modo de descanso enquanto ele repousava a mão da prótese no bolso. Já a lâmina dourada de vinco negro e chamas rubras, esta permaneceu em seu estado alterado, mesmo acompanhado, o jovem corvo não era burro o bastante para ficar completamente indefeso.
Inspirando pelo nariz, Lucet se forçou a resistir o desgaste físico, mentalmente comandando o retorno de mais cinco correntes para reforçar o corpo. Ao sentir as chamas rubras sendo reabsorvidas e a recuperação de um pouco mais da energia flamejante, o meio-sangue virou a atenção para a garota que derrotada.
Ele caminhava devagar, cada passo deliberadamente lento e audível, como se estivesse fazendo um grande esforço para caminhar. Não é que lhe faltassem as forças para tal, mas neste momento, o corvo decidiu utilizar uma das lições de Kaella para infligir o máximo de dano possível a sua algoz.
Mesmo danificada como estava, Sophia ainda conseguiu detectar os passos pesados do garoto e, com grande esforço, virou a cabeça na direção do som, tentando partir as trevas para encontrar a face do herege e sua besta. Internamente, a garota era capaz de ouvir o ranger dos ossos em protesto de mais ferimentos, cada centímetro movido disparando uma pontada de dor que se expandia em ondas.
O ar estava frio e, como se o próprio destino montasse a cena, as nuvens dispersaram, revelando a bela e excepcionalmente grande lua que radiava um brilho prateado tão forte que era capaz de iluminar o campo de batalha eficientemente. Lucet não pode deixar de sorrir ao notar isso.
— Realmente Sophia… — O garoto comentou com uma tinge de desdém enquanto um sorriso triunfal começava a decorar seu rosto — Por que foi escolher o lado daqueles malucos hein?
A garota até tentou responder, seu rosto contorcendo de ambos dor e rancor, mas, tudo que conseguiu produzir com a garganta foi um murmúrio afogado no em uma tosse sanguinolenta que expeliu uma quantia considerável do líquido vital. O primeiro tossir, entretanto, não foi o único e, nos próximos dez passos que o garoto levou para alcançá-la, uma tossida acompanhou cada movimento.
Lucet ergueu a espada de vinco negro com um braço, posicionando-a em cima do coração da garota, o rosto do corvo se fechando em uma máscara de frieza — Bem, é isso né? Não foi tão bom conhecê-la como pensava — comentou, firmando o aperto dos dedos em volta do cabo ósseo, enterrando definitivamente a imagem da garota que conhecera anos atrás — Agora, morra.
Com um movimento decisivo, Lucet apunhalou a lâmina para baixo, abandonando de vez qualquer memória ou arrependimento que tivesse com a garota e então, tudo brilhou intensamente. A luz da vida radiando uma vez mais.