Os Contos de Anima - Capítulo 10
O sol lentamente se erguia no horizonte enquanto Kaella lecionava. Nas primeiras horas até por volta do meio-dia, a Alfae o ensinou sobre a biologia local. Ela tirou do saco amarrado a sua cintura um enorme livro da grossura da coxa do garoto de capa feita de folhas verde-claro com os dizeres “Enzyklopädie des natürlichen Lebens” que tinha seu contéudo escrito em papel amarelado. O livro era um compilado de diversas pesquisas, relatos e até amostras preservadas das mais diversas espécies de flora e fauna existentes em Anima que fora compilado por um pesquisador Faeram residente de Elysium conhecido como Hübner Dresden.
Ela começou demonstrando, um a um, vários dos tipos de plantas que podiam ser encontradas no vale. Deu destaque as comestíveis, as venenosas, aquelas que eram usadas para criar medicamentos e quais efeitos elas possuíam, além de mostrar quais delas tinham efeitos específicos que eram úteis na vida de um corvo. Um exemplo de erva útil era o “Lírio-Prisma” que era um lírio de cor arco-íris que, quando energizado com mana, projetava uma aura ao redor do usuário que desviava a luz, o camuflando por até vinte minutos dependendo da qualidade e conservação da planta. Outro exemplo era o “Cogumelo-Coruja” que tinha esse nome, pois, era um alimento favorito das corujas do vale, tendo um formato de um guarda-chuva escuro com manchas brancas imitando as estrelas que, quando transformado em pó e fervido com água e pétalas de heliótropo azul na quantidade certa, produzia uma poção capaz de temporariamente aguçar os sentidos e dar visão noturna a quem consumir por uma hora.
Quando o sol estava a pino, pararam para o almoço. Kaella o ensinou a como identificar madeira que poderia ser utilizada como lenha para uma fogueira, e também o ensinou como fazer um caldo de ervas e “Super Batata”, além de como produzir talheres e utensílios de argila, que ela o ensinou a moldar e assar corretamente para dar solidez ao produto.
Após o almoço, ela o deixou na árvore onde dormia com o livro e o instruiu a estudar o livro, pois, apesar de mestra dele, ela ainda tinha suas responsabilidades com Anansi, portanto, partiu para instruir os alunos de outra turma durante a tarde. Lucet, que gostava muito de ler e teve a sorte de seu exemplar estar na língua humana apesar do título estar em na língua Faeram, ficou lendo o livro por horas a fio, e apenas parou de ler quando Kaella apareceu novamente no seu “quarto” dentro do buraco da árvore. Ela revisou os conteúdos do dia e o ensinou, com auxilio do livro vermelho e dourado entitulado “Anima Mundus Historia”, sobre a cultura e os costumes das nações e dos povos mais proeminentes espalhados que povoam Anima.
Quando terminaram com o aprendizado do dia, o sol já deslizava tranquilo para além da borda do horizonte. O vale, por sua vez, lentamente acompanhava seu ritmo e ia se preparando, cada ser da sua forma, para o descanso ou as atividades noturnas.
Lucet já se preparava para ir dormir, mas, diferente do que ocorrera no dia anterior, desta vez Kaella o manteve acordado ao dizer.
— Muito da prática dos Corvos tem a ver com técnicas noturnas, portanto, seu treinamento específico como Corvo será realizado durante a noite, enquanto que o treinamento de combate e o de uso da mana, ocorrerá durante o dia — Ela explicou — Ao decorrer dos sete dias da semana, você terá prática específica de corvo todas as noites, e durante o dia, será alternado com lições teóricas das matérias que envolvem conhecimentos gerais, lições práticas de táticas de combate, uso de equipamento encantado ou não, combate desarmado e combate mágico.
— Mas como vou ter meu treino hoje a noite se eu não sei nem sequer usar mana mestra? — Ele questionou.
— Porque hoje você aprenderá a única técnica de Corvo que experimentou até agora — Ela disse com um tom misterioso — Irei lhe ensinar como realizar o passo dos corvos, e te garanto, antes de você ir dormir, já poderá utilizar o passo por si só, sem precisar da minha ajuda.
— E se eu não conseguir mestra? — Ele perguntou, sua voz demonstrando o medo que sua mente não pode suprimir.
— Nesse caso eu te deixarei na raiz da sua árvore-casa e você terá que escalar sozinho, sem equipamentos — Ela respondeu, um sorriso meio sádico surgindo em seus lábios.
— Não! Você não faria isso! — Ele protestou desesperado — Isso é cruel!
— Se eu fui capaz voltar para casa, a pé, do meio das minas de cristal de Litera Lumus quando estava treinando essa técnica, que por um acaso ficava a dezenas de quilômetros de onde eu vivia com meu mestre e meus colegas discípulos — ela comentou — Você também consegue escalar uma mísera árvore.
— Aprendi na marra a usar o passo dos corvos com o grande incentivo do desespero — ela continuou — no meio do caminho eu consegui pegar o jeito da coisa e isso acelerou muito a minha volta para o dormitório, mas ainda assim, eu acabei demorando oito horas para voltar pois meu uso da mana ainda não era tão eficiente e tive que fazer várias pausas para descansar.
A elfa então riu ao ver a expressão do garoto de descrença.
— Ao menos consegui chegar a tempo para o café da manhã — ela disse — Na época eu também não acreditei que meu mestre seria tão cruel.
Lucet não duvidou mais da ameaça e se preparou mentalmente para o exercício. Até o momento, tudo que havia experimentado era dor ao realizar o passo dos corvos, muita dor. Como Kaella havia informado que a dor iria diminuir conforme a exposição, também significava que ele ainda iria ter de passar por tais exposições, o que significava, para sua angustia, ainda mais dor.
Kaella então o transportou para uma das clareiras onde a luz da lua brilhava e projetava sombras por todos os lados ao passo que a névoa noturna da floresta ia captando o brilho lunar e reluzindo, dando ao lugar um certo ar mistico.
Em seguida, a Alfae o posicionou a cerca de cinco metros de distância de uma árvore e então começou a explicar.
— O passo dos corvos é a técnica mais básica e mais útil de um corvo — ela explicou — ela permite que você viaje através das sombras para alcançar praticamente qualquer lugar que possua uma sombra. Porém, essa técnica tem uma restrição, você só pode viajar longas distâncias se já tiver visitado seu destino longínquo, do contrário, o máximo que conseguirá é viajar até onde sua vista alcança com perfeição, que geralmente não é mais que vinte metros de distância considerando a proeza visual medíocre dos humanos. O passo do corvo, porém, tem uma grande vantagem, ele não precisa que as sombras estejam conectadas, mas sim que exista uma sombra para você entrar, e muitas vezes sua própria sombra será essa entrada, e uma sombra no local onde deseja ir, para que você possa sair de dentro dela.
— No começo, além de dolorosa, a viagem em si também é um pouco lenta, apesar de ser muito mais rápida que qualquer velocidade que suas pernas possam produzir — Ela continuou — Mas, com a prática, é possível tornar a viagem praticamente instantânea.
Kaella então andou até a árvore e circulou com sua mana uma sombra específica, deixando-a ainda mais escura graças ao brilho da energia. Depois, ela voltou até o garoto e ordenou que sentasse de pernas cruzadas, segurando uma esfera de cristal negro com suas duas mãos. O cristal era liso e seu interior era como se fumaça escura tivesse sido presa dentro dele.
— Esta é um cristal de mana das sombras condensada — ela explicou — Isso te ajudará a perceber com mais facilidade essa mana e o ajudará a se conectar com ela para poder praticar.
— Então eu vou poder aprender a utilizar mana? — Ele disse ansioso.
— Não — Ela respondeu — O que você irá aprender é a como sentir a mana das sombras apenas, a noite é o horário mais propenso e mais repleto de sombras, os outros elementos e a mana natural, você irá aprender a usar durante o dia.
— Agora — ela continou — Você deve tentar perceber a mana das sombras a sua volta. Concentre toda sua atenção primeiro no cristal, e depois, a partir dele, tente perceber a mesma sensação no ambiente ao seu redor, dessa forma, saberá que está percebendo a mana das sombras corretamente.
Lucet acenou com a cabeça e fechou seus olhos, focando toda sua atenção na sensação das suas mãos. De início, tudo que ele conseguia sentir era apenas o frio que vinha da esfera, mas nada mais que isso. Ele continuou tentando sentir qualquer coisa por mais meia hora, mas ainda assim nada. Às vezes tinha a impressão que sentia algo diferente na esfera, mas logo a sensação desaparecia, o que o deixava ainda mais revoltado.
Enquanto os minutos infrutíferos passavam, a frustração do garoto ia aumentando. “Porque não consigo sentir nada? Qual é o truque para perceber a mana nesse cristal? Se isso deveria ser mais fácil porque é mana condensada, será que minha percepção é um lixo?” Por mais que tentasse esvaziar sua mente e se focar em perceber a mana, ainda assim, a frustração o fazia questionar sua aptidão, mesmo que Kaella já o tivesse garantido e explicado seu talento.
Kaella apenas observava o garoto, seus dedos reluzindo. “Um pouco de dificuldade não o fará mal” Ela pensou “Se for fácil demais o tempo todo, ele ficará convencido e arrogante, e gente assim…” Ela suspirou “Não vive muito”.
A verdade é que, com o talento escondido no sangue do garoto, perceber a mana seria algo que o levaria no máximo cinco minutos. Kaella sabia muito bem desse fato, por isso, intencionalmente atrapalhou a conexão da mana com Lucet para que fosse mais difícil para ele perceber. Isso de forma alguma era para zombar dele, mas sim para motivá-lo a perseverar e se esforçar, afinal, talento ajudava no crescimento de um mago, mas sem esforço e uma mentalidade firme, o mago acabaria sendo apenas medíocre, isso se não morresse rápido por superestimar suas habilidades.
Porém, foi quando Lucet já estava quase alcançando uma hora que algo que até mesmo Kaella não pôde prever aconteceu. A afinidade com a mana de Lucet que já era naturalmente muito alta, chegou ao seu ápice quando o garoto ficou totalmente enfurecido. Ele se levantou abruptamente, seus olhos agora abertos e contraídos de ira, ele mirou numa pedra próximo a ele e com um braço tentou arremessar o cristal escuro.
— Porquê não consigo sentir nada!? — Ele gritou, enfurecido.
Kaella reagiu rápido e estava prestes a impedi-lo, porém, ele próprio parou e, como se tivesse visto um fantasma, virou seus olhos para sua mão que segurava a esfera.
— Huh? O que é isso? — Ele perguntou confuso.
Na sua mão, não mais estava a sensação fria do cristal, e sim uma sensação totalmente nova. Era como se ele estivesse segurando um tecido que era suave e agradável ao toque, e quando ele pensou por um mísero instante de como será que o resto do seu corpo se sentiria quando ele estivesse envolto nele, o cristal começou a ser esvaziado, e a mana das sombras desapareceu.
Instantes depois, algo que o surpreendente para tanto Kaella quanto Lucet aconteceu. Ele percebeu que ao olhar para o seu corpo, estava completamente coberto por uma camada de energia escura que se camuflava perfeitamente na penumbra. Apesar disso, ele ainda conseguia ver, ouvir e sentir com total perfeição. Porém, a cobertura não era perfeita, e a escuridão que o envolvia parecia estar constantemente se desfazendo.
Ele moveu seus membros e notou que tudo estava intacto, até socando o ar e pular algumas vezes para verificar sua condição física. Porém, sua nova aparência não era a única coisa que mudou, ele também conseguia sentir como se a mesma sensação estranha que cobria seu corpo, também existia ao seu redor.
— M…Mestra? — Ele disse, um tanto assustado — O que é isso? Porque é que eu fiquei todo preto do nada? Essa é a mana das sombras? Porque se for, eu tô sentindo um monte por aqui, acho que muito mais do que tem no cristal… — Então ele abaixou seu braço e olhou para o cristal agora vazio — Eita! Ele tá vazio agora?
A elfa suspirou. Quando a raiva do garoto chegou no ápice, ela foi pega de surpresa pelo aumento repentino de afinidade e não conseguiu restringir mais sua percepção, o que o fez instantaneamente se conectar com a mana do cristal. Mas, isso não foi o surpreendente, afinal, ela já sabia da capacidade do garoto, o que a surpreendeu de verdade foi o que ela teve de explicar.
— Sim, essa definitivamente é a mana das sombras — Ela explicou, um tanto relutante — E inclusive, era a mana das sombras que estava condensada no cristal, que eu totalmente não esperava você ser capaz de manipular a ponto de executar com sucesso o “Manto do Corvo”.
— Manto do Corvo? Isso é um feitiço complicado? — Ele questionou, seu ânimo melhorando.
— Para um Corvo experiente, é algo simples — Ela disse num suspiro — Mas para alguém que entrou em contato com a mana das sombras pela primeira vez realizar essa técnica, é algo muito raro.
Lucet ficou muito feliz ao ouvir isso e sorriu largamente. Porém, alguns instantes depois o manto se desfez por completo, e ele, caiu no chão, exausto. Ele mal tinha força para falar quando perguntou.
— Uh? O..Oque aconteceu? Porque tô tão fraco? — Ele perguntou, um tanto ofegante.
— Sua reserva de mana interna foi esgotada — Ela respondeu — Isso causa uma exaustão no organismo por falta de energia. O manto do corvo é uma técnica um tanto avançada, e sem muita prática e uma reserva de mana considerável, é impossível mantê-la ativa por longos períodos de tempo.
— Mas eu usei a energia do cristal! — Ele reclamou — Porque foi a minha mana que esgotou?
— Porque a mana elemental auxilia na execução, mas não na manutenção de um feitiço — Ela explicou — Para manter um feitiço é necessário usar a mana que está dentro do seu corpo, por isso, você que tem reservas ainda destreinadas e pequenas, não pôde manter o manto por mais que alguns segundos.
— Apenas lançar uma bola de fogo não custa muita mana — Ela continuou — Mas disparar uma rajada de fogo contínua requer exponencialmente mais energia. Como o manto é algo que envolve a camuflagem do corpo todo, é óbvio que ele possui um custo alto para se manter. Porém, com prática é possível diminuir o custo e otimizar a ativação e a duração.
Lucet grunhiu e parou de pensar no assunto, focando ao invés disso, na recuperação de energia. Kaella, no entanto, não o deu muito tempo para isso e se aproximou dele, tocando seus dedos reluzentes em sua testa. O garoto em instantes se levantou, sentindo-se totalmente energizado. Ao questionar a elfa, descobriu que ela havia transferido um pouco de sua mana para ele, o ajudando a se recuperar.
Agora, sem mais interrupções propositais de sua mestra ou surpresas inesperadas dele, Lucet facilmente se conectou e começou a se familiarizar com a mana das sombras. Kaella o instruiu a manipular a mana para formar diversos objetos com as sombras para que ele pudesse aprender mais sobre as propriedades dessa energia. Logo, ele havia feito uma espada com as sombras e balançou-a algumas vezes, que, para o seu desapontamento, fez com que o objeto se desfizesse quando acabou acertando uma sua própria perna por acidente. Ele não se machucou, e nem sequer cortou suas roupas, o que o fez questionar.
— A mana das sombras não é uma mana ofensiva — A elfa explicou — Ela pode ser usada nesse aspecto, mas isso vai da aplicação do mago, porém, por natureza, ela é uma mana que tem características ilusórias, tendo um grande valor tático em combate. Formar objetos sólidos com ela é essencialmente impossível.
— Mas mestra — ele questionou ao se lembrar do breve encontro entre ela e o diretor do orfanato — Quando você lutou contra o diretor, você criou flechas negras não? Aquilo não era mana das sombras?
— Bem notado — A elfa respondeu com um sorriso — Aquilo certamente era mana das sombras, mas eu não criei aquelas flechas, eu as encantei.
— Encantou? — ele perguntou confuso.
— Exatamente — ela respondeu — Aquilo não eram flechas de sombra, mas sim agulhas finissimas que laceei com mana para amplificar suas propriedades penetrantes e “aumentar” seu tamanho, assim, dando a ilusão que eram flechas de sombras quando na verdade eram apenas agulhas destrutivamente perfurantes. Por sorte, nenhum dano foi causado a Albus devido as diversas barreiras encantadas das roupas que ele vestia, do contrário, ele provavelmente estaria hospitalizado, se não morto.
Lucet acenou a cabeça, um pouco desapontado. Ele esperava poder ser capaz de conjurar dezenas de armas e ser capaz de vez combates contra exércitos sozinho se fosse preciso, e inclusive se viu dizimando milhares de inimigos com suas armas de sombra, mas, quando se deparou com a realidade, ficou um tanto desanimado. Isso, porém, não o manteve abatido por muito tempo ao se lembrar da principal razão pela qual estava ali esta noite, a capacidade de se movimentar dentro de qualquer sombra! O passo dos corvos!
Eles então voltaram a prática. Dessa vez, Kaella fez com que o garoto focasse na mana das sombras que ela usava enquanto os transportava. Ela os transportou várias vezes do ponto original para árvore e vice-versa, apenas parando para dar um descanso para o corpo de Lucet. Nesse processo, Lucet cravou na sua mente o padrão de energia que era executado e diversas vezes imaginou como seria fazê-lo sozinho.
Por duas horas, Lucet treinou com o auxilio de Kaella tentando pegar o jeito de se transportar pelas sombras. Já eram por volta das onze horas da noite, quando Kaella anúnciou.
— Bem — ela disse — Já lhe demonstrei o bastante e te dei tempo o suficiente para você analisar a técnica. Agora é hora do seu teste. Se transporte daqui a até o círculo que marquei. Não espero que consiga de primeira, pois, é algo um tanto complexo para se fazer numa primeira tentativa, porém, se conseguir dentro de cinco tentativas, considerarei um sucesso e lhe transportarei para seu quarto para que descanse, e também lhe darei algo para comer,imagino que esteja esfomeado.
O estômago do garoto roncou alto, concordando com a hipótese da mulher. Ela deu um leve riso e Lucet se ergueu, regulando sua respiração e se esticando algumas vezes na tentativa de se preparar para a dor e se concentrar.
— Lembre-se — ela disse — Foque na sombra onde quer chegar e se imagine saindo dela. Use sua a mana para conectar seu corpo ao seu destino desejado, e as sombras farão o resto.
Kaella ficou em silêncio e observou. O garoto visualizou o círculo, não, ele fitou com toda sua força a sombra dentro do círculo e lembrou da sensação da mana das sombras. Ele fechou seus olhos e visualizou com sua mente a sombra do círculo, depois, desejou com toda sua vontade alcançar essa sombra, mantendo em mente a energia das sombras que havia experimentado antes. Sem perceber, sua sombra se alargou, retorceu, e se tornou um círculo escuro que em instantes o engoliu, e assim, ele havia desaparecido em sua sombra.
Novamente, a familiar sensação de ser uma borracha bombardeou seus sentidos. Seus pés pesados feito montanhas o mantinham preso ao ponto original, porém, seu corpo se esticava e viajava para onde queria chegar. Ele não respirava e mal sentia que existia. Era como se tivesse mergulhado num mar escuro e profundo, sua pressão o atingindo e o deformando de todos os cantos.
A sensação durou o que para ele pareceu uma eternidade. Mas logo, seus pés ficaram leves e seu corpo encolheu e retornou a forma original, e então, ele emergiu da escuridão.
Dentro do círculo que Kaella havia marcado, uma grande sombra circular surgiu a partir da sombra em seu interior e cobriu o círculo luminoso. Em seguida, o corpo do garoto emergiu e em uma fração de segundo caiu no chão, tremendo levemente enquanto ofegava.
Os olhos do garoto se abriram, procurando por todo lugar uma prova do seu sucesso ou fracasso. Ele avistou a elfa a alguns metros dele, e depois, quando virou seu corpo um pouco, encontrou as raízes da árvore que tantas vezes já havia visto de perto, e então sorriu.
— Eu consegui! — Ele sussurrou — Na primeira tentativa! Eu consegui!
Kaella sorriu e se aproximou, o aplaudindo ao o alcançar.
— Parabéns criança, não esperava menos — Ela disse, sua voz calma, porém, claramente cheia de orgulho.
— Obrigado mestra — Ele respondeu alegre.
Ele, com algum esforço, se levantou e reverenciou a elfa ao dobrar suas costas, uma mão em seu peito e outra em sua costa. Kaella reconheceu o gesto. Era a saudação que os guardas de Elysium usavam quando encontravam o capitão da guarda ou alguém de um cargo superior. Ela sorriu e fez com que se levantasse.
— Vamos para casa — Ela disse.
Como ele estava exausto, Kaella colocou a mão em seu ombro e o transportou junto de si de volta para a árvore. Ao chegar lá, ela o sentou em sua cama e retirou do seu saco mágico alguns lanches e frutas que estavam embaladas em folhas azuis. Ele comeu, agradeceu, e em minutos, já estava deitado. O cansaço era tão grande que qualquer nervosismo era incapaz de afetá-lo, e em alguns instantes, já estava dormindo.
Ao ver a cena, a elfa riu. “O dia foi longo mesmo” ela pensou, suspirando. Ela o cobriu com o manto azul e com as sombras, partiu, deixando para trás apenas as suas palavras numa voz tão baixa que o mais correto era chamar de sussuros.
— Bons sonhos criança, descanse bastante. Sua jornada ainda é muito longa.