Os Contos de Anima - Capítulo 111
Antes que qualquer coisa ocorresse, durante um único instante distintamente perceptível ao olho bestial do garoto, trevas mais escuras que a própria noite envolveram a oponente. Esta imagem não passou despercebida, mas, Lucet não teve sequer tempo de processar a informação pois, no fragmento temporal seguinte, uma família e detestável luz dourada explodiu ao redor da jovem.
O grande raio escarlate que deveria extinguir as chamas rubro-negras de Sophia colidiu em sua totalidade, mas, o efeito esperado não aconteceu. Lucet ouviu o som da colisão, seguido de um barulho abafado similar ao de metal sendo golpeado antes de, atônito, ver o ataque curvar e disparar em direção as nuvens como se fosse um meteorito reverso fugindo do solo.
Por alguns momentos, o tiro seguiu, alimentado pela grande quantia de talento da vida compresso neste ataque. A região do impacto tremeu, o chão quebrando, fragmentos erguidos e disparados em todas as direções prontamente incinerados e convertido em pó, criando uma espessa e cinzenta cortina de fumaça composta de poeira e cinzas.
Não era difícil imaginar que a ofensiva vermelha não era infinita, até porque o meio-sangue não conseguiria sustentar um golpe destes por muito tempo. Então, quando o fluxo energético cessou e as chamas cederam, Draco prontamente ergueu as asas, batendo-as com toda a força sem qualquer intenção de voar, forçosamente dispersando a obstrução visual.
E ali estava um visual que muitos reconheceriam, mesmo que o próprio Lucet não tivesse noção que deveria saber o que era. Cravado na terra estava uma orbe, um globo dourado de um tamanho similar ao da fera escarlate ao lado do meio-sangue e, dentro desta esfera, Sophia residia, resquícios da chama rubro-negra surgindo ocasionalmente, completamente desacordada.
A proteção dava ao corvo uma sensação familiar, como se devesse reconhecer aquilo, mas não sabia de onde. Uma coisa, entretanto, era certa, aquela bolha dourada era feita de aura da fé, uma tão densa e complexamente construída que não parecia ser obra dos arranjos grotescos usuais de Puritas.
Depois de tantos anos treinando com o manual de Faerthalux, Lucet aprendera não apenas a verdadeira e completa versão da Aura da Fé, como também as técnicas necessárias para manipular a energia da maneira idealizada pela deidade. Por isso, vendo a qualidade do construto, o meio-sangue ficou um tanto perplexo de como exatamente a garota conseguira uma proteção assim.
Era um globo construído com as técnicas que ele utilizava, algo estável e resistente, de linhas exatas e belíssima aplicação que acabava por confeccionar uma fortaleza. Isso, quando comparado a aplicação utilizada por seus detestáveis inimigos, deixava Lucet um tanto curioso sobre a origem da defesa, algo que o fez se aproximar enquanto buscava a origem da energia que claramente não pertencia ao inimigo.
O garoto e seu aliado deram passos cautelosos na direção da oponente. Lucet focava toda a habilidade do olho do tirano para decifrar a origem da proteção que bloqueara a ofensiva mais poderosa que podia conjurar, enquanto Draco observava os arredores em busca de alguma possível ameaça.
Os momentos passavam arrastados enquanto Lucet indagava diversas questões silenciosamente, calculando as possibilidades. Foi no instante em que o garoto decidira movimentar a própria energia para infiltrar a defesa que os eventos começaram a se mover consideravelmente mais rápido.
Através da conexão entre os dois, Draco alertou o corvo do perigo, rosnando em direção ao céu antes de inspirar profundamente. O som do ar se movendo durou apenas um instante, pois, logo em seguida, fagulhas verdes e relampejos luziram por entre as presas afiadas da criatura. O peito da besta inflou logo seguido pelo barulho similar a de um trovão e, com um mero abrir das mandíbulas e mover do pescoço, disparou a rajada.
O ataque era veloz, um cometa verde azulado de energia horrenda que rasgava o espaço em seu caminho. Lucet demorou um instante para tirar os olhos da esfera dourada, algo que o custou a vista do oponente, pois quando foi capaz de enxergar o céu, apenas encontrou uma lança dourada um mísero segundo antes da colisão com o ataque de Draco.
A fera, confiante do ataque que produzira, inflara o peito uma vez mais, abrindo asas e erguendo a enorme cabeça em desafio. Diferente, entretanto, da expectativa, a lança perfurou o disparo da criatura com certa facilidade, encontrando pouca resistência antes de acelerar em direção a besta.
O meio-sangue teve de reagir as presas, acumulando o que pôde de energia em sua protomail antes de apontá-la na direção do ataque. Um breve tremor correu a estrutura mecânica quando o disparo flamejante cruzou os ares para interceptar a lança. Lucet era realista e, por mais que soubesse que o tiro improvisado não teria qualquer chance de impedir a ofensiva, ainda tinha esperanças.
A colisão ocorreu e, por um momento, o meio-sangue acreditou que talvez o ataque fosse parar ali, mas, no instante seguinte, a lança facilmente transpassou a ofensiva vermelha. Lucet xingou internamente, mas, profanidades não iam resolver o dilema. Não tinha tempo de desviar da explosão que ocorreria quando a lança atingisse o chão, por isso, precisavam pará-la no ar.
Felizmente, a ofensiva vermelha ganhou um precioso instante, algo que foi o suficiente para Draco inalar outra vez e carregar mais um ataque, disparando a rajada que luzia em tons esmeralda e safira. Lucet, não perdeu tempo, prontamente carregando o máximo de energia que pôde antes de disparar o próprio ataque.
Por mais que a movimentação energética tivesse sido refinada à perfeição ao longo dos anos de treino do meio-sangue, a situação era dificílima e havia pouco tempo para reagir. Felizmente, a sincronia do par fora suficiente para, logo que o disparo de Draco atingisse a lança, o tiro de Lucet pudesse chegar a tempo de segurar a ofensiva inimiga por preciosos instantes que a fera necessitava para carregar o próximo ataque.
Assim, ataque após apressado ataque, a dupla alcançou um ritmo mais estável e, finalmente, depois de disparar seis rajadas cada um, conseguiram travar a lança dourada no meio do ar e, na sétima ofensiva, finalmente dissipar o perigo. Após o perigo, Lucet ainda manteve a postura, esperando um segundo ataque, porém, sabia que não tinha muito mais o que fazer com a pouca energia que restava.
Draco ainda estava em boas condições, mas com uma técnica tão poderosa, o garoto sabia que tinha poucas chances de confrontar um inimigo assim sem ter que chamar todo o exército rubro de volta e utilizar toda a sua energia. Talvez, mesmo com isso e todo o poder da fera escarlate, não seriam capazes de derrotar o oponente que com tal facilidade os fez gastar tanta energia que o garoto já sentia um tanto do cansaço.
Infelizmente, o par não teria tempo de ponderar as possibilidades pois momentos depois, luzes radiaram seu brilho no céu antes de revelar mais um par de lanças, bem como um novo oponente. Em meio as nuvens, um ser encapuzado, radiando sua poderosa aura na forma de chamas douradas surgiu em um flash de luz.
A armadura que lhe cobria o corpo era tão branca quanto a neve e mais brilhante que as estrelas, perfeita e imaculada. Na cintura, um cinto que atava a espada que parecia ser construída das sombras do abismo com uma bainha de igual cor. As feições eram indistintas, cobertas ambos por vestimenta e pela luz que radiava por baixo dela. Lucet foi obrigado a fechar o olho do tirano pois observar este ser o feria a orbe.
— Você… — O garoto comentou em um rosnado, dentes amostra enquanto emoções de seu aliado inundavam a mente com instintos e desejos violentos.
O ser, entretanto, não demonstrava grandes interesses ou se os tinha, não se dava o trabalho de comentar o assunto, preferindo agir. Ele estava com os braços estendidos, uma lança contida na ponta dos dedos de cada mão. Antes mesmo que ele iniciasse a ofensiva, o garoto já estava pronto para contra-atacar, por isso, quando o guerreiro luminoso disparou as lanças, Lucet apenas apontou a protomail.
A aparição do ser ganhou um pouco mais de tempo para o jovem corvo, permitindo que ele carregasse um disparo mais potente. Não era situação ideal e muito menos seria tão poderoso quanto a extinção vermelha, mas, era suficiente para ganhar mais tempo, o problema, entretanto, era que existiam duas lanças rasgando os céus.
Com a carga mais poderosa, Lucet foi capaz de segurar uma lança com mais facilidade, inclusive a pausando no ar por alguns instantes, algo que o permitiu carregar um segundo tiro de mesma potência e retornar mais porções de seu poder escarlate. Agora, apenas cinquenta guerreiros rubros corriam em busca das tropas remanescentes enquanto o corvo se movia com mais agilidade e exibia mais poder.
O mesmo, entretanto, não podia ser dito de Draco. Ele ainda estava longe de atingir todo seu potência, e tal fato limitava o poder de fogo que era capaz de exibir. Antes mesmo que o primeiro tiro vermelho fosse dissipado pela lança, Lucet disparou um segundo para reforçar e carregou um terceiro disparo o mais rápido que pode, direcionando o ataque desta vez na direção da outra ofensiva.
Felizmente, agora que tinha mais energia e mobilidade a disposição, o meio-sangue pode ajudar a fera ao suplementar seus disparos. Obviamente, isso significava que iria gastar mais talento para suprimir as lanças, mas, o importante era sobreviver. Os ataques eram mais potentes, e logo, após cinco disparos sua lança e três na que ameaçava Draco, foram capazes de dispersar o perigo.
O garoto conseguia sentir o esforço e o desgaste físico após utilizar tanta energia, se quiser atacar novamente utilizando o talento da vida, teria que chamar de volta todos os guerreiros remanescentes para garantir alguma esperança de vitória. Foi então que Lucet olhou para o céu e viu que a figura havia desaparecido.
— O que!? Onde é que ele foi! — ele exclamou exasperado, abrindo o olho do tirano com toda sua capacidade para localizar o ser.
Lucet, entretanto, não precisou procurar muito longe, pois um brilho chamou sua atenção no canto do olho. Ao virar, teve apenas tempo de observar o surgir do ser luminoso em frente ao domo protetivo. Momentos antes que ele desaparecesse com o objeto, os sentidos aguçados do garoto captaram as seguintes palavras:
— Grande é a sabedoria da Pontificia — o ser comentou em um murmúrio quase imperceptível ao aproximar uma mão radiante da esfera dourada — O milagre protegeu a garota e um novo poder surgiu pelas mãos do verdadeiro senhor, uma nova luz que irá salvar este mundo do pecado.
O meio-sangue rangeu os dentes, sangue borbulhando em suas veias ao movimentar toda a energia, mana, aura e talento, na direção da protomail para construir seu ataque. Sabia que as forças que restavam não seriam suficientes para derrotar o guerreiro de Puritas, mas, se pudesse atrasá-lo, talvez pudesse conjurar uma segunda extinção vermelha e derrubá-lo.
Seus planos, contudo, não tiveram sequer a esperança de saírem da imaginação, pois em seguida, ambos o guerreiro e o globo dourado desapareceram em um lampejo. Lucet urrou em frustração, retraindo as energias enquanto pisoteava o solo.
— Maldito! — gritou em direção as nuvens — Não basta ser mais forte, ainda teleporta seu desgraçado!?