Os Contos de Anima - Capítulo 114
— Como é que é essa história, garota?
Para a surpresa de todos os presentes, Luna soltou a voz com um estrondo não apenas mágico, mas também agudo, sua irritação clara enquanto a pressão aumentava. Qualquer vestígio da classe, cordialidade e postura real com qual a descendente real geralmente se apresentava desaparecendo em questão de segundos.
— Dissse alguma mentira por acaso, princesssa? — Emanando sua própria energia, mais em defesa do que em provocação, a Faeram respondeu, cravando os olhos na Alfae — Todas as nações aliadas, e certamente os malucos de Puritas — A palavra saiu por entre os lábios finos da Faeram com grande desdém, antes de voltar ao tom arrastado, porém firme que iniciara a frase — Foram testemunhas da sua proeza, portanto, é correto dizer que um aliado como este merece o devido “investimento”.
Por mais que a lógica fosse sólida, Lucet compreendia que a forma como a representante estava falando era altamente dúbia e podia facilmente levar a desentendimentos se ouvida pela pessoa errada. Não foi preciso uma inteligência absurda para entender que a princesa era exatamente quem não deveria ouvir esta fala.
— Olha aqui sua…
A fala, contudo, não teve qualquer oportunidade de ser concluída pois, em um piscar de olhos, uma energia arcana dezenas de vezes mais poderosa irrompeu no salão real, esmagando a opressão gélida da herdeira real em um instante. Uma onda purpura se manifestou no instante em que Elysia bateu com a ponta do seu cajado, a madeira retorcida portando uma orbe da mesma cor da magia, no solo, forçosamente dispersando a liberação gélida da filha.
— Luna, já chega. — Endireitando a postura com o queixo levemente erguido, frieza tingiu as feições da soberana — Este não é o momento para disputas infantis e Lucet vai precisar de toda a ajuda que puder obter para lutar contra Puritas — Os olhos de tom violeta da rainha tornaram a atenção para a representante Faeram, luzes afiadas reluzindo em suas profundidades — E acredito que seu papel nesta reunião não é flertar com crianças, ou é Manfir?
Diferente do cajado que exibia padrões naturais e uma força arcana extraordinária, as vestes da Elysia não poderiam ser mais simples. A monarca trajava roupas de confecção padronizada, assemelhando-se a uma armadura de alguma espécie de couro.
Haviam pedaços de sua pele, tão alva quanto a própria neve, surgindo na região dos pulsos, na divisória entre luvas sem dedos e a camisa de manga longa que lhe cobria o tronco. A cintura era delineada por um espartilho ciano, o tecido nos braços ajustados por laços semelhantes a fios, atados em padrões elaborados.
O cabelo, atado em um rabo de cavalo, luzia gentilmente perante a aura poderosa da mulher, trazendo um destaque ainda maior para sua aparência. Ali estava uma rainha, não com as dos contos de fadas que apenas governam a distância, mas sim uma pronta para ir ao combate se necessário e, certamente, com todo o poder requerido nas pontas dos dedos se precisar avançar para o campo de batalha.
A aura gélida da princesa Alfae murchou perante o poder da mãe, enquanto a pose da representante Faeram se inclinou perante a rainha. Mesmo sendo parte da aristocracia de Jungla Iroko, Manfir era apenas uma das muitas princesas e sua autoridade, bem como seu valor para a coroa, não se comparavam com a monarca de outra nação, portanto, teve de deferir antes de causar algum conflito internacional.
Em tempos de guerra, era importante manter os aliados e não dar brechas para o inimigo, um consenso silente que todos ali seguiam. Lucet, por sua vez, sendo alguém atrelado diretamente ao Alfae, tinha de se posicionar ao lado dos mesmos, mas, seu julgamento apontava o contrário e, um tanto a contragosto, tratou de apaziguar a situação ao erguer a mão, chamando a atenção dos presentes para si.
— Tenho certeza que ela não fez por mal, vossa majestade — Baixando a voz no intuito de desarmar ambas as partes, o garoto seguiu com cuidado, olhando então para Luna com grande carinho nas feições, um sorriso curto surgindo por um momento antes de falar — Acredito que a oportunidade de crescer como guerreiro, especialmente em uma área em que não tenho capacidade, é algo crucial para prosseguirmos.
A poderosa aura violeta se manteve por alguns momentos enquanto Elysia estudava as feições de Lucet, contudo, no fim, a mulher optou por aquiescer a solicitação do rapaz. O poder tempestuoso que surgira se retraiu, dando a figura valente e intimidadora da rainha um ar de normalidade.
Um suspiro arrastado e sibilante ecoou baixo na sala, mas o meio-sangue não ousou tirar os olhos da soberana imediatamente, ao invés disso, mantendo uma postura levemente curvada. Uma expressão tranquila e sorridente nasceu nas feições da monarca quando ela se sentou, direcionando a fala para Kaella.
— Punho forte…
— Língua afiada.
A resposta da guardiã veio de imediato e, por um momento, as mulheres trocaram risos e olhares de compreensão que existia apenas entre elas. As princesas, o corvo e até mesmo Lucis olharam estupefatos para a dupla, essencialmente perdidos no que exatamente ocorria ali.
— Ensinou-lhe bem, anciã.
As palavras trouxeram ao rosto da Alfae de cabelos carmesim uma tinge de amargura perceptível, Lucet inclusive dando um passo para o lado, pronto para se erguer para auxiliar a mãe. A guardiã, contudo, logo suspirou, erguendo uma mão para apaziguar o meio-sangue.
— É uma honra ser reconhecida por minhas contribuições, vossa majestade.
Uma luz curiosa surgiu nos olhos profundos de Lucis que, por um breve fragmento temporal, não pode esconder a surpresa em sua reação. Ainda que houvesse a guerra a se considerar, uma das leis mais antigas de Lumina era sobre a composição dos anciões.
Com a exceção óbvia da família real, que era necessária para representar e governar a nação, todo Alfae que obtivesse o domínio de uma lei estava automaticamente elegível a se tornar um ancião. A partir do momento que um cidadão de Lumina fosse nomeado como tal, receberia as devidas honrarias, porém, também a obrigação de se juntar aos seus iguais para proteger o futuro da nação, seja através de ensino ou combate.
Isso normalmente soaria como um grande prêmio, entretanto, uma das principais estipulações do título era de que, devido sua suma importância para a nação, todo ancião era obrigado a permanecer em Alta Lustra a todo momento, impedido de sair exceto perante comando do monarca.
Devido a situação especial referente ao meio-sangue e respeito por ela, Lucis utilizou seu poder como monarca para respeitar os desejos da guardiã da Lybra e postergar a oficialização deste dever. Desde a primeira manifestação da lei, Kaella discutiu com o monarca, se recusando a se juntar aos anciões repetidamente, contudo, algo que o rei não esperava era ver a concordância súbita da mulher.
— Lucet — Com um sorriso gentil no rosto, Kaella se ergueu e caminhou até o garoto — Ainda precisaremos discutir diversos assuntos, mas, antes de fazermos isso — A mulher pôs as mãos sobre os ombros do rapaz, seus dedos longos e finos apertando levemente a musculatura — Como é que você está? Acha que consegue continuar?
Mesmo que tenha sido capaz de descansar nas costas de Draco enquanto retornava para Alta Lustra, o meio-sangue dificilmente poderia dizer que estava restaurado do combate e as quantias massivas de energia que tinha gasto. Sua mana estava se recuperando lentamente, junto com a aura da fé, que diferente da energia arcana, era produzida pelo corpo e o ritmo natural de processos.
O mais preocupante, entretanto, era o talento da vida, pois diferente da aura que era mais conectada a sua estamina e o máximo que faria era desgastar as reservas físicas do rapaz, a energia rubra era equivalente a força vital do meio-sangue e, mesmo que pudesse ser restaurada com descanso, para uma recuperação mais veloz era necessário o consumo de elixires, elementos que não eram nada baratos de conseguir.
Por um instante, Lucet viu o mundo se dividir em dois, um lado tingido de vermelho e o outro laceado de tons azulados e, neste momento, o jovem sentiu forte dor na cabeça, como se alguém estivesse atravessando seu crânio com os dedos e tentando abrir a força. Erguendo a mão para apoiar a cabeça, o corvo forçou um sorriso.
— Estou bem cansado, mas…
Os olhos violeta de Kaella luziram com sabedoria, suas pupilas contraindo rapidamente enquanto uma expressão séria decorou suas feições. Os traços alongados da mulher pintavam a figura intimidadora de uma Alfae experiente, seus longos dias já ultrapassando os séculos sem que a pele em si mostrasse qualquer sinal da longevidade.
— Sem mas! — Feito um sabre, a voz da Alfae soou afiada, cortando qualquer chance de argumentação — Você acabou de enfrentar milhares de oponentes — Apertando seus longos dedos nos ombros do rapaz, a guardiã tratou de erguê-lo, prontamente o encaminhando para a saída — O que você vai fazer agora é comer, descansar e — A última palavra saiu feito um comando do próprio Lucis em toda sua majestade — Dormir.
A guardiã então tornou a atenção para Luna, cuja face estava estupefata com o desenvolvimento da conversa, e sinalizou com o rosto para que acompanhasse o garoto. A princesa demorou alguns instantes para reagir, mas, assim que recobrou o comando do corpo, soltou um leve riso antes de se levantar e alcançar o meio-sangue que se aproximava da porta a passos arrastados.
Quando a jovem passou pela guardiã de Lybra, juntou uma mão sob o abdômen e curvou a cabeça em reverência e agradecimento. Elysia sorriu na direção de Kaella antes de reassumir a seriedade ao passo que a guardiã se reaproximou da mesa antes de começar a falar.
— Sei que tenho de assumir esta posição, porém…
O desenvolvimento do assunto, entretanto, foi perdido aos ouvidos de Lucet quando ele atravessou o limiar do salão real junto com a princesa, as enormes portas do lugar se fechando atrás deles. No mesmo ritmo em que isso aconteceu, os guardas saldando a princesa e, especialmente, o jovem corvo em respeito aos feitos de combate, Luna tratou puxá-lo para si ao agarrar seu braço enquanto andavam pelos vastos corredores decorados do palácio.
A estrutura da morada destes que lideravam toda Lumina era elegante e refinada, com colunadas trabalhas em minérios sólidos, ouro e joias decorando
— E-ei! O que está fazendo? — Sentindo as bochechas aquecerem e correndo os olhos para todos os lados, o rapaz tencionou o corpo perante o súbito contato.
— Só estou cumprindo meus deveres como realeza — Erguendo o queixo, Luna assumiu uma postura aparentemente presunçosa, alterando a voz como se estivesse falando o obvio — Mas também estou te levando para seus aposentos, que nem a guardiã solicitou — humor logo adentrou nas palavras da garota que mal continha um sorriso enquanto acelerava o passo — Você precisa descansar, grande herói.
O garoto virou o rosto tão rápido que ouviu o pescoço estalar e viu a princesa mostrar a língua, desatando em gargalhadas logo em seguida. Soltando o braço do rapaz, ela tratou de correr a frente, trilhando o caminho entre os corredores para chegar aos aposentos, o meio-sangue rindo alto enquanto resistia a dor de cabeça para correr atrás dela, rapidamente cruzando a distância.
Enquanto corria, Lucet revisou os eventos da batalha e a aparição do formidável guerreiro luminosos, bem como contemplou suas capacidades atuais e a enormidade do conflito entre as nações. Uma expressão séria adentrou suas feições enquanto ponderava os assuntos e, por fim, deixou as palavras rolarem por entre um suspiro.
— Parece que ainda tenho muito para fazer…