Os Contos de Anima - Capítulo 11
Devido ao sucesso da noite anterior com a mana das sombras, quando começaram o treino prático de magia e combate pela manhã, o processo fluiu com facilidade. Sem intencionalmente atrapalhar a conexão do garoto com a mana, Kaella assistiu Lucet conseguir manipular, mesmo que de forma muito rudimentar, a mana em seu corpo e até mesmo realizar alguns truques.
Sem ao menos receber qualquer instrução que fosse, Lucet, que já tinha uma afinidade elemental com a terra, conseguiu manipular o chão ao seu redor para formar pequenos objetos, e conforme o tempo corria e o sol se aproximava do seu apice, até mesmo formar coisas maiores como, por exemplo, paredes da altura de Kaella ou lanças do mesmo tamanho que ele erguia do chão.
Vendo o rápido progresso do garoto, Kaella resolveu testar sua nova proeza. Ela limitou seu potencial de combate a apenas evasão e defesa, e também prometeu apenas usar mana elemental. Isso feito, ela ordenou que o garoto a atacasse do jeito que quisesse, e ele, sabendo que qualquer punição que ela ameaçasse fazer, ela realizaria, não hesitou, e tomando uma certa distância, ele se preparou.
— Estamos próximo da hora do almoço, e durante a tarde, como sabe, tenho de comparecer e ensinar os alunos de Anansi, então, tal como um verdadeiro combate, façamos isso rápido — ela disse — Agora faltam aproximadamente vinte minutos para que o sol alcance seu pico — ela afirmou ao observar o céu — Se neste tempo você for incapaz de encostar em qualquer parte da minha roupa, você terá de preparar seu próprio almoço enquanto eu comerei os doces que preparei como sua recompensa para este exercício, além de, é claro, o seu almoço.
— Doces? — Ele perguntou curioso — Você trouxe doces?
— Exatamente — ela respondeu.
Ela então tirou do saco amarrado a sua cintura uma cesta de palha trançada repleta de diversas guloseimas diferentes de qualquer coisa que ele tinha visto antes. Tinham um cheiro encantador, pareciam absolutamente deliciosas e até mesmo místicas pois radiavam uma leve, quase imperceptível, aura luminosa.
— Que doces são esses? Parecem tão bons… — ele questionou com um olhar desejoso.
— São diversos doces Alfae que aprendi a fazer com meu mestre quando ainda morava em minha cidade natal — ela respondeu — Litera Lumus.
— Litera Lumus? Você disse que foi lá que aprendeu o passo do corvo quando teve de voltar das minas de cristal… Onde fica isso? É muito longe de Alta Lustra? — Ele disparou, curioso.
— Para os Alfae com seus transportes voadores, não é muito longe — Ela respondeu — Mas para aqueles que viajam pelo solo, seriam uns dez dias de viagem a cavalo ou carruagem. Mas acho que isso não é o foco nesse momento não? Ou será que prefere fazer seu próprio almoço hoje? — ela perguntou enquanto guardava os doces.
— Argh! — Ele grunhiu.
Por mais que quisesse saber mais, se ele tinha qualquer esperança de conseguir aqueles doces e o almoço que sua mestra fizera, teria que cumprir a tarefa.
Ele ajustou seu corpo, e tal como tinha aprendido, se concentrou e focou na sensação da mana. A terra abaixo de seus pés era imensa, um gigantesco reservatório de poder só esperando para ser usado, mas ele, pequeno como era, só conseguia usar um pouco de cada vez antes de ficar exausto.
Sabendo disso, ele tinha que utilizar sua mana interna da melhor maneira possível, pois, o uso da terra ou da sombra, agora que já estava um pouco mais familiariazado, seria limitado a no máximo três usos. Ele pensou por alguns instantes. Seu oponente era uma feiticeira imensamente superior a si, mesmo que fosse apenas defender e evadir. Ela era mais rápida, mais forte, mais experiente e seu uso da mana era dezenas de vezes mais eficiente que o seu, então tentar vencê-la com força bruta era simplesmente impensável.
Simplesmente disparar em sua direção não funcionaria, pois, não só seria muito simples que ela defendesse, mas também gastaria sua energia muito mais rápido. Tentar usar o passo dos corvos para se transportar furtivamente também não iria dar certo, pois, mesmo que ela não use as sombras, como uma corvo experiente, saberia reconhecer o uso delas.
Ele respirou fundo e decidiu fazer a única coisa que conseguiu pensar, uma armadilha. Lucet correu na direção da elfa e usou o passo dos corvos para se fundir com sua sombra e se transportar para a sombra atrás dela, quando emergiu ele sentiu seu corpo pesar e tropeçou, porém, quando caiu, amparou a queda com as mãos e imediatamente conjurou três dardos de pedra que lançou na direção da elfa.
— Menos dois… — ele sussurrou pra si.
Ele se ergueu e disparou na direção dela. A elfa, por outro lado, assistiu a demonstração e sorriu. Ela nem ao menos se virou quando o garoto surgiu atrás dela ou quando ele disparou os dardos de pedra, apenas balançou seus dedos luminosos e ergueu uma parede de pedra atrás de si, que colidiu com os dardos e os parou sem muito esforço.
Os olhos do garoto brilharam triunfantes. Ele correu e bateu com suas duas mãos carregadas de mana na parede que a elfa havia criado. A terra vibrou, e em instantes, outras três paredes iguais se ergueram ao redor dela e, usando os três dardos que ficaram cravados na barreira da elfa, ele rapidamente escalou e saltou por cima, erguendo suas mãos a frente do seu corpo, pronto para agarrar os ombros ou a cabeça da elfa.
— Te peguei! — Exclamou vitorioso — Os doces são…meus?
Seu corpo começou a cair, porém, ao invés de encontrar o belo cabelo escarlate da elfa ou suas vestes, o que encontrou, porém foi apenas o ar. Com uma imensa incógnita em sua mente ele caiu e se estabacou no chão da jaula de pedra que ele mesmo construiu. A luminosidade do ambiente então sumiu quando outra tábua de pedra surgiu no topo e bloqueou a luz do sol que irradiava o céu.
—AH! DROGA! MESTRA, VOCÊ DISSE QUE NÃO IA USAR A MANA DAS SOMBRAS! — Ele gritou revoltado.
Instantes depois, a voz da elfa, meio abafada pelas pedras, mas inconfundível, soou.
— Eu não usei — ela respondeu — Mas também nunca disse que a mana das sombras é a única forma de transporte elemental que conheço.
— Lição número um de combate mágico — ela continuou — Nunca subestime a capacidade do inimigo de te surpreender e sempre considere a possibilidade de ele ter habilidades ou técnicas que ainda não revelou.
— Lição número dois — Ela então disse — Nunca aposte todas as suas chances em um único plano, sempre tenha alternativas.
— Seu plano de me prender foi bom — ela explicou — Porém, você falhou em considerar meus outros possíveis métodos de escape, e principalmente, formas de que você não ficasse incapacitado por causa de sua própria armadilha.
— Descanse — ela disse — Quando recuperar um pouco da sua energia, saia daí por conta própria e prepare seu almoço.
Ela então balançou seus dedos e abriu alguns buracos nas paredes de pedra para que o ar entrasse e ele pudesse respirar, e principalmente, para que ele pudesse ver a cena a seguir. A elfa tirou uma toalha, e se sentou na sombra de uma árvore.
Depois, retirou a cesta de doces, e também retirou um pacote de folhas azuis, que quando aberto, revelou um grande quiche feita de ervas e queijo. Ela cortou a quiche e começou a comer devagar, o cheiro forte das ervas facilmente chegando até o garoto. Após isso ela tirou também uma jarra cheia de suco cintilante, que, ela explicou, fora feito com algumas frutas que tinham sida injetadas com mana da vida para amplificar seu sabor.
Por último, para o desespero de Lucet, que a essa altura estava prestes a chorar de raiva e inveja, Kaella começou a comer um a um todos os vinte doces que havia colocado na cesta.
“MESTRA! ISSO NÃO VAI FICAR ASSIM!”
A essa altura, já haviam passado por volta de trinta minutos. Esse tempo foi o suficiente para que ele recuperasse mana o suficiente para mais um uso e, sem pensar duas vezes, ele agiu.
Lucet usou o passo dos corvos de dentro de sua jaula de pedra e se transportou para sombra da árvore, ao invés de sair e cair como na primeira tentativa, dessa vez ele conseguiu resistir a dor e saltou para fora da sombra exatamente no instante onde a elfa estava prestes a comer o último doce. Ele esticou seu braço e roubou o doce no último momento, e para não dar chance da elfa o impedir, ele imediatamente enfiou o doce na boca, e sem sentir o gosto engoliu dolorosamente por inteiro sem mastigar. Lucet então caiu e rolou, e segundos depois estava de pé.
— HAH! — Ele apontou, exclamando — Eu comi o doce! Eu venci!
A elfa, porém, diferente do que ele esperava, não brigou com ele. Pelo contrário, ela sorriu largamente e disse.
— E estava bom?—
Lucet estava prestes a responder, triunfante, mas, quando notou seu erro, ficou boquiaberto. “Droga!” ele pensou “Ela me deixou pegar o doce! Ela me enganou!”
— Lição de combate mágico número três — Ela riu — O momento mais fácil de sofrer uma derrota é quando você ataca para dar o golpe final. Esteja atento a todo momento, manter a cabeça fria é algo que pode, por muitas vezes, ser a diferença entre a vida e a morte.
— Deixarei que treine sozinho a manipulação da sua mana — ela disse, se virando — Quando eu retornar, mais uma vez treinaremos a manipulação das sombras.
Ela então se fundiu com a sombra da árvore e desapareceu. Lucet, por sua vez, descansou por uma hora, e nesse meio tempo, buscou algumas frutas de algumas árvores próximas e as comeu. Após se recuperar, analisou o fracasso que foi sua tentativa final, e após praticar várias táticas em sua mente, começou seu treino.
Dia após dia o garoto treinava sem descanso que não fosse as horas em que estava inconsciente. Depois de três meses, ele finalmente foi capaz de vencer o desafio do almoço que Kaella, parte por ser um treinamento válido e parte porque era extremamente divertido para ela testar as capacidades do garoto, fazia questão de realizar todos os dias. Devido a suas diversas derrotas nesse desafio, Lucet acabou se tornando um cozinheiro competente, e várias vezes, ele que preparava as refeições que comiam durante o treino, sempre observando o conteúdo nutricional que os livros de Kaella indicavam como as melhores.
E assim, as areias do tempo correram e o garoto, que antes tinha apenas meros oito, agora tinha doze. Seus anos, duros quanto fossem por causa de seu treinamento, foram pacíficos. Ele agora já era adepto em combate, tanto físico quanto mágico, além disso, graças a “parceria” que a elfa realizara com um Gnoma de Elysium chamado Iogi Madur, ele também se tornara adepto em forja e encantamentos, forjando inclusive, suas próprias peças de vestimenta encantada, que incluíam botas que aumentavam sua velocidade em 50% e diminuíam o ruído dos seus passos para quase zero, manoplas que dobravam sua força braçal e uma máscara, cujo Kaella o ajudou a produzir com alguns encantamentos específicos para Corvos que impediam o uso de feitiços de análise sobre seu corpo enquanto ela estivesse ativa.
Chegou um dia que, após um almoço particularmente interessante em que Lucet conseguiu driblar as defesas da Alfae, que não usava nenhum equipamento mágico, e roubar um doce, Kaella propôs.
— Lucet, você não pensa em testar o resultado do seu treinamento contra alguém… — ela disse — Que não seja eu?
— Porquê perder meu tempo com outras pessoas se não sou nem capaz de vencer você mestra? — Ele respondeu instantaneamente.
— Mas será que você não enjoa de lutar contra mim apenas? — Ela insistiu.
— Mestra — ele disse — Até mesmo com todo meu equipamento encantado, eu te ataquei até quando você estava dormindo, e ainda assim, perdi, e feio. Se nem dormindo consigo te derrotar, o que dirá lutar com os outros mestres? Até mesmo o mestre Iogi, SENDO UM GNOMA QUE FOCA APENAS NA ARTE DA FORJA, me deu uma surra semana passada usando apenas uma espada de madeira, DE MADEIRA! QUE NÃO TAVA ENCANTADA!, acha mesmo que eu tenho chance contra os outros?
A elfa gargalhou. O garoto nem sequer considerou aqueles da sua idade, ou das outras classes de Anansi, pulando direto para os velhos doidos que habitam Elysium para serem seus oponentes.
— Não criança — ela respondeu rindo— Não falo daqueles doidos. Minha pergunta é : você não tem curiosidade de lutar contra os alunos de Anansi?