Os Contos de Anima - Capítulo 12
— Lutar com os alunos de Anansi? — ele questionou, intrigado — Mas que chance eles vão ter contra mim? No máximo eles terão começado seus aprendizados com alguns mestres a uns dois ou três anos no máximo, já eu, comecei desde o primeiro dia. Não acha injusto eu lutar contra eles?
Kaella não pode deixar de rir ao ouvir a pergunta. “Então quer dizer que ele está tão confiante assim no meu treinamento?” Ela sentia tanto orgulho quanto preocupação. Por um lado, ela estava feliz que o garoto estava desenvolvendo não só sua proeza mágica e física, como também a confiança de utilizá-la, porém, temia que ele ficasse confiante demais em sua força e acabasse ficando arrogante.
— Eu não sou a única mestra capacitada para combate em Elysium, Lucet — ela respondeu — Diversos dos mestres Alfae, Gnoma, e especialmente os Faeram, são mais capacitados do que eu para o combate direto.
— Sim — ele concordou — Mas como você mesma disse, você é a única corvo de toda Elysium, e até onde eu sei, não tem mais ninguém do seu nível por aqui. Dúvido que qualquer coisa que tenha me ensinado como Corvo perca para qualquer ensinamento que os outros mestres possam ter dado para seus aprendizes.
— Correto — ela comentou — Não existe nenhum outro corvo no meu nível em Elysium. Mas como já lhe expliquei, os Corvos são mestres da furtividade e manipulação, não de combate. E também, não é porque você foi ensinado diretamente por mim desde o início que imediatamente garante sua superioridade.
— Talentos como o seu não são exatamente raros em Elysium — ela continuou — Do que tenho observado das práticas em combate e magia de Anansi, existem alguns alunos que, se os subestimar, conseguiriam derrotá-lo com a mesma facilidade que Iogi o derrotou semana passada com a espada de madeira.
— Até parece, o mestre Iogi é super forte — ele retrucou — Ele me derrotar é uma coisa, agora os discipulos dos outros mestres não tem a menor chance com o tempo de treino superior que eu tenho.
— Não diga isso garoto! — ela repreendeu, severa — Mesmo com meus ensinamentos, você ainda está longe de alcançar auge de suas habilidades. Sem dúvidas você tem talento, mas você ainda é novo demais para que possa ter tanta confiança em seu poder garoto.
— M…Mas eu tenho equipamento mágico que eu fiz! E eu posso usar a dimensão das sombras assim como posso usar magia de terra — ele protestou — Não é possível que eles já tenham coisas desses nível!
— Você pode ter seu próprio equipamento mágico, mas quem disse que eles não tem também? — ela chacoalhou a cabeça ao responder — Provavelmente eles tem equipamentos que, apesar de não perfeitamente sincronizados com eles como os seus, são de uma qualidade tão superior que torna a incompatibilidade negligivel. Sem contar que, você acha mesmo que é o único que consegue usar magia em combate?
— É bom ser confiante, mas mais importante que isso, é ter uma boa cabeça sobre os ombros que te manterá vivo — ela disse — Ter a sabedoria de quais combates enfrentar e como adequadamente enfrentá-los… Isso é a marca de um verdadeiro mago.
Lucet ficou por alguns minutos procurando argumentos para refutar a fala da elfa, mas não adiantou. No fim das contas, por mais que sua confiança gritasse que seu poder era mais que capaz de varrer o chão com qualquer um dos alunos de Anansi, sua inteligência, e principalmente, seu respeito e admiração pela sabedoria de sua mestra, sabiam que ela estava correta.
— Tudo bem — ele suspirou um tanto desanimado — Então o que devo fazer para enfrentá-los? Tenho que ir até lá e desafiá-los?
— Não será necessário — ela respondeu sorrindo — Para sua sorte, um evento está para acontecer hoje em Anansi, que durará possívelmente pelos próximos dias, que satisfará a clara necessidade de você testar suas habilidades contra eles.
— Evento? — Ele questionou — Que evento?
— “O Torneio dos Mestres” — Ela respondeu — Anualmente, os mestres, que ensinam em ou tem aprendizes de Anansi escolhem um aluno para os representar num torneio organizado pela instituição.
— Neste torneio — ela explicou — Os alunos disputam entre si e o vencedor recebe, junto com seu mestre, um prêmio que muda todos os anos. Além disso, os mestres fazem apostas entre si, formando uma espécie de premiação não oficial, que no fim também beneficia os alunos. Nos três anos anteriores eu decidi me abster de participar pois estava treinando você e nenhum dos alunos que eu lecionava eram bons o bastante para competir.
— Então você esperou esse tempo todo só pra que eu pudesse competir? — Ele questionou, sentimentos confusos borbulhando em sua cabeça.
Por um lado, ele se sentia muito feliz de que ela houvesse resolvido aguardar e confiar em seu potencial, mas por outro, considerando o que ela disse sobre não haver nenhum opção melhor, se sentia como apenas um substituto de última hora.
— Sim e não — ela respondeu rindo — Eu esperei pois tinha confiança que com um certo tempo de treino, você seria mais que capaz de vencer o torneio, mas, por outro lado, não é como se eu participasse desta competiçãozinha com tanta frequência. É muito difícil encontrar alunos que sejam capazes de competir que já não tenham sido escolhidos por ou tenham escolhido um, mestre.
Kaella se aproximou do garoto, pôs sua mão pálida sobre sua cabeça e bagunçou um pouco seu cabelo escuro enquanto o olhava com orgulho e carinho.
— Você é meu único e querido discípulo — ela disse com sua voz um pouco baixa — Quem mais poderia mostrar para aqueles doidos a extensão da minha dedicação, senão você?
Lucet tremeu por um instante, seu rosto vermelho com um tomate.
— Ah mestra — ele disse envergonhado — Até parece que você precisa de mim para mostra para eles o quão poderosa você é.
— Eu realmente não preciso — Ela respondeu — Mas tem certos poderes que não posso mostrar, e que apenas você pode trazer a tona.
— Ah é? — Ele respondeu, incrédulo — E que tipo de poder é que eu tenho que você não tem?
— O mesmo que todo filho recebe de seus pais — Ela respondeu, levemente corada — O amor e o carinho que reflete toda o esforço que uma mãe ou pai tem de criar um filho. Afinal, um ser é o espelho de sua criação e suas escolhas.
Kaella nunca insistiu que Lucet o chamasse de mãe, mesmo que ela o enxergasse de certa forma, como um filho. Já se pegou várias vezes refletindo sobre o assunto, mas nunca levou isso adiante, afinal, preferia que isso fosse espontâneo. Se ele a enxergasse como família, era bom, se não, ao menos o respeito vindo da relação de aprendizado que dividiam, ela sempre teria.
— Amor e carinho? — ele murmurou pensativo.
— Bem — ela disse, apressadamente mudando de assunto — O prêmio que Anansi oferece para os competidores este ano será um item encantado que o líder de Elysium preparou.
— O lider? — ele perguntou surpreso — E o que é esse prêmio?
— Ninguém sabe — ela respondeu séria — Mas se foi preparado por ele, definitivamente não é algo simples. No mínimo é algo do mesmo nível do manto que lhe dei como presente.
Lucet ficou em silêncio, impressionado. Algo do nível de seu manto era pelo menos extraordinário! O manto, além de ser extremamente resistente contra rasgos e perfuração e conter os encantamentos que regulavam a temperatura do usuário, também era totalmente impermeável e, tal como ele descobrira após diversos experimentos, tinha uma grande resistência contra magia, servindo como um ótimo escudo contra feitiços ofensivos.
— E então — Kaella perguntou, mesmo que já soubesse da resposta — Interessado em participar?
— Sim! — Lucet respondeu firme.
— Então vamos — Ela disse — A primeira partida começa daqui a alguns minutos.
— Mas e a minha inscrição? — Ele questionou.
— Não se preocupe — ela sorriu, astuta — Já fiz sua inscrição. Mesmo que não quisesse participar, ainda teria que ir, porque senão, a taxa de inscrição de quinhentas peças de ouro teria ido pro lixo.
— O QUÊ!? QUINHENTAS PEÇAS DE OURO? — Ele exclamou
— Não se preocupe — Ela respondeu rindo — Isso para nós mestres de Elysium não é nada, Mas ainda assim, desperdiçar dinheiro nunca é bom.
Ao ouvir a risada da Elfa, a cabeça de Lucet começou a doer e lembrar de uma informação particular que aprendera dois anos atrás. Certo dia, Kaella o ordenou que fosse para a vila para conhecer um pouco como funcionava o comércio e aprender a como barganhar e como reconhecer bons produtos e picaretagens, nesse momento ele a informou que nunca havia feito compras e que não sabia usar dinheiro pois o diretor do orfanato onde morava antes nunca o ensinara, e ela o prontamente ensinou.
Apesar das diferenças das nações, graças aos Gnoma, a moeda universal de Anima se tornou o ouro, a prata e o bronze em formato de pequenos círculos conhecidos como “Peças”. Uma peça de ouro era equivalente a dez peças de prata, e uma peça de prata era equivalente a dez peças de bronze. E porquê isso lhe fazia doer a cabeça? Porque renda média anual por pessoa em Anima, de acordo com as informações que a própria elfa provera, era de cinco peças de ouro, o que significa quê, em um simples ingresso de torneio que ele não tinha garantia alguma de que iria ser bem sucedido, ela havia investido o suficiente para uma pessoa viver por cem anos. CEM! ANOS! “Mestra! Não é porque você e o pessoal de Elysium são ricos que precisam esbanjar desse jeito!”
Vivendo no orfanato, e depois, vivendo sob a tutela da elfa, Lucet nunca exatamente teve seu próprio dinheiro, e muito menos precisou ter. No orfanato, ele não tinha noção nenhuma de finanças ou valor, e depois que aprendeu sobre isso com Kaella e analisou sua “vida” anterior, percebeu que ali só era utilizado o mínimo possível para o conforto das crianças, e seu próprio estilo de vida onde ele vivia a base da natureza, com a exceção de quando sua mestra lhe trazia coisas da vila, ele basicamente não tinha gastos monetários específicos.
Não era porque ele tinha uma mestra rica que ele era rico. A verdade é que Kaella fez questão que ele aprendesse tudo que pudesse para sua sobrevivência, sabendo que, apesar de muito útil e certamente facilitador, o dinheiro era um poder que não podia se contar com. “Dinheiro, artefatos, fama, status, conexões. Todos são poderes formidáveis e que facilitam muito a vida, porém, nenhum deles é eterno.” Ela customava dizer em suas lições sobre sociedade e vida,“O dinheiro acaba, artefatos podem quebrar ou falhar, a fama pode ser usada contra si, status pode ser destruído e conexões podem lhe trair a qualquer instante. O único e verdadeiro poder que é confiável é o seu próprio! Tudo pode virar as costas contra você, mas seu esforço nunca irá lhe trair.”
Depois de alguns minutos de discussão sobre o valor exorbitante deste ingresso, e as repetidas explicações dos tipos de coisas que são apostadas pelos mestres, Lucet desistiu de reclamar e apenas se permitiu ser transportado por Kaella pois ainda não havia usado o passo dos corvos para ir até Anansi diretamente. Devido a isso, quando chegaram, tomou o cuidado de marcar o local com sua mana para poder se lembrar com facilidade onde poderia se transportar caso precisasse.
Após chegarem numa viela particularmente escura, mesmo considerando que eram apenas duas horas da tarde e o sol continuava brilhando forte no céu, o par de mestra e discípulo andaram até a construção onde os pequenos de Elysium iam para aprender. Era um dia sem classes e apenas os mestres que participariam do torneio e seus representantes, ou seja, seus discípulos ou alunos de Anansi selecionados para participar, estavam ali.
Contando com o par, eram ao todo dezesseis competidores. Contando com Kaella, eram seis mestres Alfae, três mestres Gnoma, incluindo Iogi a quem Lucet logo cumprimentou com um aceno de longe, três mestres Faeram e, surpreendo o garoto imensamente, quatro mestres humanos, que incluiam dentre eles Albus, o diretor do orfanato onde ele morava anteriormente. Ele acenou a cabeça para o diretor, que retribuiu o gesto quando passaram por ele.
As outras quinze crianças olharam atentamente para Lucet ao vê-lo como competidor da Alfae, que, graças aos comentários de seus respectivos mestres, elas conheciam sua real identidade como a Guardiã de Lybra, e também, sua identidade como corvo. Assim como dois e dois são quatro, as crianças especularam que Lucet também poderia ser um Corvo, o que os fez olhá-lo com desprezo e um certo medo, imediatamente.
O garoto, porém, nem ao menos prestou a atenção neles e apenas focou em memorizar os mestres ali presentes. Kaella o encaminhou para junto do grupo de mestres Alfae, Lucet permaneceu em silêncio, porém, os Alfae logo começaram a trocar farpas. Um elfo de cabelos dourados e olhos azuis como o céu e pele pálida, vestindo uma túnica branca com linhas azuis, suas orelhas um tanto largas e pontudas, maiores que as dela, se aproximou.
— Ora ora — disse ele num tom ricamente sarcástico — Mas se não é a Guardiã de Lybra, Kaella Rubrum. Nos últimos três anos a senhorita não nos deu a graça da sua presença, a que devemos a honra desta vez? Seria seu pequeno humano?
— Olá Negavit Intelitum — Ela respondeu friamente — Desde quando meus assuntos são do seu interesse? Não creio ter qualquer obrigação que seja para lhe informar das minhas vontades ou afazeres.
O Alfae a fitou com ódio, mas não disse mais nada.
— Afiada como sempre Guardiã — Um segundo Alfae de olhos verdes e pele morena, cabelos negros e túnica verde com linhas douradas zombou.
— Ora, Olá Algentem Putris — Ela disse, olhando para ele, seus olhos reluzindo com poder — Creio que ainda se lembra da nossa última “conversa”, ou será que sua memória anda tão ruim que devo lhe dar uma segunda demonstração dos meus “argumentos”?
O elfo de túnica verde tremeu por um instante e virou seus olhos para outra direção, não se pronunciando novamente. Nesse momento, uma Alfae de cabelos escuros e olhos violeta, vestida em uma túnica vermelha com linhas negras se aproximou de Kaella.
— Desvia de nossos convites por três anos — ela disse — E no instante que decide retornar, o faz causando problemas Guardiã? Que tipo de poder você adquiriu que a dá essa confiança e arrogância toda? E desde de quando uma nobre Alfae passou a se rebaixar ao ponto de vestir roupas humanas?
— Não adquiri nada Domina Ferrum — Ela respondeu, zombando — Se me lembro bem, da última vez que teve coragem de falar neste tom comigo, seu rosto claramente não ficou assim tão sereno. Talvez você deseje um relembrar nossa última discussão?
O rosto da mulher contorceu em fúria, mas, por mais que desejasse, sabia que não era páreo para Kaella, e então, ela retornou para sua posição original. Kaella vestia uma vestimenta similar a de Albus, que estava com a mesma roupa que usava na noite em que Lucet passou a “morar” com Kaella, com exceção de que não usava um chapéu, nem um cinto ou uma lança. Ela estava com um sobretudo vermelho sangue com linhas pretas e douradas e um símbolo que Lucet não conseguia reconhecer em suas costas, o resto de sua vestimenta, que consistia de uma camisa, calças e botas, era totalmente preta. Presa a sua cintura, duas adagas e o escuro saco de dimensões desconhecidas.
“Incrível!” Lucet exclamou em sua mente. Apesar das diversas demonstrações de conhecimento e sabedoria, além de poderes que pareciam não ter fim, Lucet nunca tinha visto Kaella verdadeiramente irritada, e muito menos o quão imponente ela era diante de outros Alfae. Ele sempre acreditou que sua mestra tinha uma relação amistosa com os outros da sua raça, mas, a rivalidade entre eles era muito mais complexa do que tinha imaginado.
Os Faeram e os Gnoma permaneciam em silêncio, porém, sorrisos discretos surgiram em suas faces quando Kaella os fitou. Lucet não sabia dizer se eram amistosos ou se temiam a elfa, mas ver sua mestra interagir com outros mestres, e basicamente dominá-los fazia com que ele sentisse um imenso orgulho de ser seu discípulo.
Os humanos, porém, com exceção de Albus que agora ria, discutiam avidamente enquanto lançavam olhares na direção da elfa. Kaella estava prestes a falar com Lucet, quando uma voz retumbante interrompeu sua ação e chamou a atenção de todos os presentes.
— Bem vindos mestres, Anansi agradece sua participação.
Em meio a todos, como se estivesse ali o tempo todo, um homem surgiu. Lucet olhou para ele surpreso. “Como foi que ele apareceu assim do nada?” ele pensou, alarmado. O homem o fitou por um brevíssimo instante, sorriu, acenou a cabeça e então disse.
— Vejo que a senhorita Kaella resolveu se juntar a nós este ano — ele disse sorridente — Parece que as coisas serão interessantes.
Kaella, diferente do que Lucet esperava considerando as últimas interações com os mestres, sorriu e acenou a cabeça em silêncio para o homem, e ele, retribuiu o gesto.
O homem vestia uma túnica branca como a neve. Sua pele era pálida, manchada e enrugada, sua barba e seu cabelo pareciam ser tão longos e, certamente, tão brancos quanto sua vestimenta, mas era dificil de julgar pois estavam trançados. Ele era tão branco que Lucet pensou que ele fosse um espírito, mas uma coisa desmentiu sua hipótese imediatamente. Os olhos do homem eram verdes, tão verdes quanto as folhas mais escuras das árvores do vale e emitiam um estranho brilho, que, tal como toda a sua presença, emanava uma força imensurável.
Apenas com o olhar, por mais pacífico que fosse sua aparência, todos ali sabiam que o ser diante de si era um poder tal que eles não tinham a menor esperança de resistir. Poder assim comandava respeito e medo, e seja por um ou outro, todos os presentes ficaram em absoluto silêncio enquanto ele falava.
— Vejo que temos dezesseis participantes — Ele comentou casualmente — Isso torna tudo mais fácil. Faremos a competição num formato de eliminação. Teremos a primeira rodada com oito combates, a segunda rodada com quatro combates, a terceira rodada com dois combates e a rodada final com um combate entre os dois que conquistarem as rodadas anteriores.
Ele então mexeu uma de suas mãos pálidas e disparou luzes na direção das crianças. Em suas mãos, um número negro surgiu, variando entre um e dezesseis.
— Eu os chamarei por seus números para que lutem — ele explicou — Mas em frente a Anansi não é exatamente um lugar adequado para competirem, portanto, que tal irmos a um lugar mais apropriado?
O homem então mexeu uma mão que reluzia com uma aura verde e, em instantes, todos desapareceram dali.