Os Contos de Anima - Capítulo 14
Com um simples gesto das mãos, todos, com exceção de Lucet e os treze competidores, foram transportados para as arquibancadas do coliseu. Kaella, Albus, Iogi e Maximilian sentavam lado a lado e observavam o garoto que naquele momento agora se encontrava rodeado pelo seus oponentes, todos mantendo, apesar de sua superioridade numérica, uma certa distância dele.
Sabiam que ele era aluno de Kaella, e, independente se era um corvo como ela ou se era qualquer outra categoria de mago, certamente com os recursos disponíveis da Guardiã, ele certamente deveria ter suas próprias cartas na manga. Albus, apesar de confiante nos ensinamentos da elfa, ainda assim a criticou.
— Como pode deixar ele fazer algo estúpido assim?
— Essa é a escolha dele — ela respondeu, inexpressiva — Não posso interferir nesse tipo de coisa.
— Mas você é a mestra dele! — ele reclamou — Ele lhe deve respeito! Você pode muito bem parar isso se desejar!
Kaella suspirou.
— Acha mesmo que ele vai me escutar? Agora? — ela comentou, seus olhos focados na silhueta do garoto.
Albus ficou quieto. Não, definitivamente não. Ele sabia que a última coisa que o garoto faria agora era escutar a Alfae. A confiança entre os dois foi abalada e agora ele, com a permissão do próprio líder, queria se provar. Queria mostrar a todos que mesmo sendo um indesejável, ele tinha seu valor, e nessa situação, nada conseguiria impedi-lo.
O homem velho vestido em branco se levantou. Ele abriu seus braços e, seguido de um rugido estrondoso, um flash de luz verde explodiu dele, cobrindo com sua luz toda a arena. Após alguns momentos, a luz convergiu exatamente no centro do espaço acima da arena, se transformando em uma grande bola flamejante que iluminava todo o coliseu com sua luz vermelha.
— Bem senhores — Maximilian disse, sua voz ecoando pelo espaço — Vocês já sabem da situação, já conhecem o que está em jogo, portanto, sem mais delongas… COMECEM!
Com o comando, uma barreira esmeralda em forma de domo se ergueu ao redor da arena de batalha. As crianças olharam surpresas e assustadas para a barreira, mas, isso lhes custou muito caro.
— Lição de combate mágico número um — ele recitou — Nunca subestime a capacidade do inimigo.
Devido ao flash de luz verde e a seguinte esfera de luz vermelha, Lucet teve oportunidade de liberar a mana que tinha preparado discretamente enquanto o encaravam e erguer diversos pilares de pedra espalhados pelo campo fazendo com que várias sombras especialmente escuras surgissem no campo. Quando Lucet viu o lapso de atenção dos oponentes, viu a oportunidade que não poderia ter vindo em um tempo melhor. Ele instantaneamente usou o passo do corvo e se fundiu com sua sombra, e quando os participantes olharam para o local de onde sua voz havia ecoado, entraram em desespero.
Ignorando Lucet, no campo havia pelo menos um representante de cada raça, com exceção dos Durza. Ali estavam três garotos Alfae, uma garota Faeram do clâ lupus, que a fazia ser parecida com os lobos, três garotos Gnoma e seis crianças humanas, quatro garotas e dois garotos. Por serem da mesma raça, mesmo cercando Lucet, ainda assim, eles tentavam permanecer mais próximos dos seus iguais, e, mesmo que de uma maneira um tanto atrapalhada, conseguiram prontamente se juntar e estabelecer formações defensivas.
A garota Faeram apenas entrou em posição de combate e jogou algumas presas amareladas no chão, formando um círculo à sua volta e ajoelhou, suas mãos unidas como se estivesse realizando uma prece. Ela então soltou um uivo e ao se levantar exclamou.
— Defendam-me, ossos de meus ancestrais!
Um uivo ecoou na arena, seguido de um flash de luz violeta. Os dentes que estavam no chão brilharam e seis vórtices de cor violeta surgiram a partir deles. Deles, seis lobos feitos de ossos perolados surgiram e uivaram, um fogo violeta ocupando o espaço vazio de onde deveriam estar seus olhos.
— Hoho! Que interessante! Então essa que é uma técnica dos druidas — Disse Iogi empolgado — Nunca tive a chance de ver uma dessas de perto Albus. Aposto que se conseguir analisar essas técnicas, consigo fazer algumas coisinhas bem interessantes — Ele gargalhou jovialmente.
Iogi, o Gnoma que ensinou os básicos da forja e encantamentos para Lucet, era um homenzinho muito curioso. Ele era pouco menor que Lucet, que agora tinha um metro e cinquenta centímetros de altura, e gostava muito de aprender. Ele era moreno devido aos seus anos de forja e tinha braços tão grossos quanto melões cobertos de diversas cicatrizes da sua profissão. Ele tinha olhos de um brilhante tom de ambar, com cabelo e barba castanho escuro como o tronco de uma árvore, que fazia um estranho, porém, agradável, contraste com suas vestes brancas e seus anéis coloridos que carregava em seus dedos grossos como galhos. Muitas vezes Lucet tinha a impressão que conversava com uma pequena árvore quando interagia com o Gnoma.
Em troca de ensinar o garoto, ele cobrou de Kaella o empréstimo de livros raríssimos da coleção pessoal dela sobre minérios, encantamentos e outros assuntos do seu interesse. Vale lembrar que, sendo a Guardiã de Lybra, os livros que existiam na coleção da Alfae, só podiam ser encontrados com ela, e talvez, em mais duas ou três coleções particulares em Anima. Apesar de relutante, devido ao imenso valor deles, Kaella acabou emprestando-os para que o garoto recebesse o ensino do Gnoma.
Cinco humanos se juntaram apressados e formaram um círculo em volta de uma garota loira de olhos verdes que usava um cajado de madeira e vestia uma túnica azul que cobria todo seu corpo e ia até à altura do seu calcanhar. Um dos garotos que tinha cabelo e olhos castanho-claro, vestia algumas peças de armadura e empunhava uma espada e um escudo comandou:
— Protejam a serafim!
O outro garoto que usava o mesmo equipamento acenou com a cabeça, e as três garotas que usavam espadas duplas, sabre e lança fizeram o mesmo gesto e apertaram ainda mais a defesa.
— Uma serafim? — Disse Albus surpreso — Tá ai uma coisa bem rara de se encontrar, ela pode ser problemática se o garoto não tomar cuidado.
— Acha mesmo que o garoto não sabe presa-branca? — Iogi riu — Certamente Kaella o ensinou sobre gente do tipo dela.
Presa-branca era um apelido Albus recebeu pelas suas conquistas em batalha. Sua fera contratada, o grande tigre branco Baihou, era extremamente poderoso e foi graças ao poder que concedia a Albus, e também ao estilo de luta que o homem desenvolveu em volta desse poder, que ele alcançou renome e respeito, e eventualmente, foi convidado a ser um residente de Elysium.
Os três Gnoma, que usavam um machado curto em cada mão e armaduras completas de aço brilhante, bateram a arma em seus peitorais e gritaram.
— Vamos lá meio-sangue covarde!
— Está com medo? Anda, nos enfrente!
— Pare de se esconder e lute contra nós como um homem!
Por mais que tivesse preferência por Lucet, ao ver os pequenos soltando provocações e urros de combate, Iogi não pode deixar de sentir uma ponta de orgulho e sorrir.
— É isso que chamam de orgulho da raça Iogi? — Albus riu.
Com as pontas das orelhas vermelhas, o Gnoma retrucou.
— Ora cale-se presa-branca! Vai dizer que não sente orgulho do meio-sangue?
O homem desviou os olhos e respondeu tentando fingir inexpressividade.
— Ele é diferente — ele disse — Você sabe bem que eu o criei por oito anos antes de Kaella o tornar seu discípulo.
Os três garotos Alfae sacaram suas adagas. Sabiam que com um oponente que podia facilmente os despistar, perder tempo com um arco seria inútil, então era melhor sacrificar o alcance pela velocidade da arma. Todos usavam um par de adagas e roupas de azuis com uma armadura de couro marrom protegendo os braços, peito e canelas.
Eles juntaram suas costas e começaram a recitar feitiços. Enquanto suas palavras fluiam, redes e domos de mana surgiram ao seu redor e cobriram os três com proteções.
— Inteligente — Maximilian comentou — diante de um inimigo de capacidade desconhecida, os garotos Alfae utilizaram suas melhores defesas para garantir, ao menos, a segurança contra um ataque surpresa de qualquer natureza.
— Parece que pelo menos esse mínimo eles foram capazes de ensinar — Comentou Kaella com um tom de deboche ácido na voz enquanto observava os mestres Alfae com olhos gélidos — Mas mesmo que possuam a capacidade de utilizar formações de defesa e magias defensivas contra ataques mágicos e físicos, se acham que isso vai impedi-lo… Eles realmente estão subestimando o garoto e isso vai lhes custar muito caro.
Nos quatro anos que a elfa treinou o garoto, ela conseguiu, parte por seus métodos e parte pela própria facilidade de aprendizado dele, ensiná-lo muita coisa. Ela se acomodou no assento de pedra e ficou em silêncio, um leve sorriso misterioso em seu rosto enquanto uma fina aura negra surgiu em suas pupilas e seus olhos começaram a acompanhar algo que viajava constantemente para todos os lados.
Em seu tempo de treino, Lucet aprendeu que o passo do corvo não era apenas um método de transporte, mas também a melhor arma e refúgio que um mago que utiliza a mana das sombras pode ter. Além de se transportar utilizando as sombras, caso um corvo tenha resistência o suficiente ele pode permanecer por curtos períodos de tempo dentro do plano sombrio e, além disso, ser capaz de observar o plano natural de lá. Normalmente, breves períodos não seriam tão úteis, mas num combate, onde cada segundo pode decidir o resultado entre a vida e a morte, era extremamente útil.
Atualmente, Lucet só era capaz de ficar dentro das sombras por um minuto antes de precisar sair para conservar sua mana, do contrário, caso realmente precisasse ficar por lá ao custo de toda sua mana, ele poderia ficar por no máximo dois minutos. O minuto estava prestes a acabar e, agora que todos já estavam posicionados, ele deliberou por mais alguns instantes a melhor posição, escolheu seu alvo, e então, no último segundo, emergiu das sombras.
Tudo estava quieto dentro da arena. Os grupos aguardavam, tensos, o ataque de Lucet. Olhando para todos os lados e esperando ele surgir, eles não tinham como sair dessa posição passiva de espera. Em seus treinos, nunca foram ensinados a combater um corvo, e como o desafio foi feito de supetão, não conseguiram nem ao menos receber dicas de seus mestres.
O grupo humano aguardava um tanto mais relaxado. Mesmo que o inimigo fosse formidável, ele era apenas um certo? Com a serafim em sua equipe, mesmo que recebessem dano, eles podiam rapidamente se recuperar com a magia luminosa dela. Considerando a superioridade numérica e a habilidade curativa, eles estavam mais tranquilos.
Eles estavam todos de costas para a garota, e ela por sua vez, só podia ver de um lado, afinal, ser capaz de usar mana da luz não significava que ela era onisciente, por isso, ela de dez em dez segundos ela se virava para que sua costa nunca ficasse sempre no mesmo lugar e, exatamente no momento em que ela se virou, Lucet finalmente agiu.
As sombras dos humanos convergiram abaixo deles e se tornaram uma grande mancha negra no chão que em instantes expulsou com força o corpo dele que já não suportava mais estar dentro do plano sombrio. Ele descobrira, através de muitas tentativas, que se ficasse até o último momento possível dentro do plano sombrio, ele não ficaria preso ali, mas sim, seria expulso violentamente, e que se fosse capaz de ajustar seu corpo, era capaz de usar isso como propulsão, e o melhor de tudo, ele não fazia som algum.
Em uma fração de segundo, o silêncio se quebrou. Lucet saltou para fora das sombras em alta velocidade e nisso, aproveitou o embalo e agarrou a serafim pela cintura. A força da expulsão foi forte o bastante para que os dois subissem alguns metros no ar.
— Ele tá ali! Ele pegou a serafim! — A garota Faeram gritou e apontou quando os avistou no meio do ar.
Os humanos, confusos, olharam para ela e depois para a direção que estava apontando e viram que sua maior fonte de confiança havia sido roubada deles bem embaixo de seus narizes. Os Alfae sacaram seus arcos e se preparam para atirar, porém, Lucet virou a serafim na direção deles e riu.
— Certeza que vão atirar?
A garota, que até então estava atônita, finalmente reagiu. Ela começou a se mexer e usar seu cajado de madeira para tentar ataca-lo, além disso, começou a emanar uma aura luminosa e se preparou para usar seus feitiços ofensivos, porém, antes que tivesse a chance de fazer qualquer coisa com sua mana da luz, Lucet liberou uma aura sombria três vezes maior que a dela e rosnou.
— Nem penso nisso!
Apenas com a pressão da sua mana, que graças ao seu ótimo estado mental estava com a aptidão máxima, ele suprimiu o poder da serafim e o selou dentro do seu corpo. Eles começaram a cair, e os humanos que agora estavam prontos para atacar, se posicionaram e apontaram suas armas para eles, afinal, ele não podia usar a serafim como escudo contra os arcos dos elfos e suas lâminas ao mesmo tempo.
Lucet sorriu, zombando-os com seus olhos. Com um golpe rápido na nuca da garota, ele a nocauteou, atirou seu corpo imóvel para baixo e o usou com uma plataforma para pular na direção dos elfos. Os humanos desesperadamente abaixaram suas armas e duas garotas utilizaram um feitiço elemental para criar um bolsão de ar e diminuir a velocidade da queda para que pudessem recebê-la com cuidado, porém, antes que pudessem fazê-lo, um flash de luz verde interceptou a garota em meio a queda e a levou de volta para a arquibancada.
Enquanto isso, Lucet disparou pelo ar como uma flecha, e os elfos, sabendo que eram os próximos alvos, riram em deboche e dispararam uma dúzia de flechas em sua direção. Para competir no torneio, Lucet havia preparado seu melhor equipamento, não trouxera a máscara devido à instrução de sua mestra que seria basicamente inútil diante dos outros mestres, além de que poderia ser interpretado com uma ofensa a eles. Ele vestia uma camisa branca e uma calça azul clara que não impediam seu movimento, e por cima delas, pedaços de armadura de couro fino que continham diversos encantamentos que ele mesmo havia colocado. Seus braços continham braceletes longos que os cobriam e eram feitos de um couro mais grosso e eram reforçados com magia defensiva, neles, um símbolo de escudo preto havia sido gravado pelo garoto. Eles, além de erguerem escudos para o proteger quando tocasse ativasse o encantamento defensivo, também passivamente dobravam a força dos seus braços.
Lucet tocou os símbolos e dois escudos semi-transparentes foram projetados à frente dos seus braços. As flechas atingiram os escudos. O primeiro quebrou após cinco flechas terem sido cravadas nele, e o segundo quebrou com as cinco seguintes. As duas últimas Lucet fez o melhor que pôde para girar seu corpo e desviar, mas, mesmo conseguido desviar de uma, a outra o acertou de raspão e cortou sua cintura, manchando a camisa com sangue.
As peças de couro que usava apenas protegiam partes vitais, mas deixavam exposto sua coxa, seus bíceps e uma parte da cintura. Ele sentiu o corte arder, mas logo a sensação foi suprimida, pois sua atenção estava focada no impacto que estava prestes a ocorrer. Sem uma sombra para que pudesse tocar ou terra que pudesse manipular e devido o fato de que seu talento para manipulação das sombras o tornasse uma negação quando se tratasse de qualquer feitiço que não utilizassem mana da terra, ele estava basicamente sem ação em meio ao ar.
Porém, graças ao impulso que deu usando a serafim, ele já estava próximo ao trio dos Alfae e eles não tinham tempo de sacar flechas para atirar nele, por isso, apenas brandiram suas adagas e, com sorrisos de deboche no rosto, aguardaram o que eles imaginaram ser uma cena humilhante que estavam prestes a ocorrer.
Enquanto Lucet estava no plano sombrio, ele notou que os três haviam erguido defesas mágicas. Ele, porém, não se incomodou, pois, no seu último “aniversário de discípulo” ele ganhou de Kaella seu primeiro presente ofensivo que nesse momento, era exatamente o que lhe permitiria quebrar estas defesas. Nos anos anteriores, ele ganhara o manto, que usava para dormir todas as noites, lições com Iogi que o permitiu forjar seu próprio equipamento e seu próprio equipamento dimensional, que era o cinto que agora estava utilizando e possuía uma jóia violeta que, quando ele injetasse mana nela, o permitia acessar uma pequena dimensão de bolso onde ele poderia guardar qualquer coisa inanimada.
Ele passou sua mão sobre a jóia do cinto, e, com um flash de luz, uma adaga de lâmina negra com a ponta um tanto curvada surgiu. Ela não possuía nenhuma marcação ou encantamento especial aparente, e devido ao cabo ser feito de um osso amarelado e a lâmina curva estar presa a ele com uma corda que parecia estar prestes a romper, aquilo mais parecia a garra de uma animal transformada numa arma às pressas.
Quando o flash de luz surgiu no corpo de Lucet, os elfos ficaram tensos. Porém, quando viram a “arma” em suas mãos eles gargalharam e o ridicularizaram:
— Então é isso que o aluno da “Ilustre” guardiã tem como arma? Uma garra? — Um deles zombou.
— Deve ser bem ruim ser discípulo dela se só o que ganha é um pedaço de bicho morto — o outro continuou.
— Será que ela é mesquinha com seus tesouros ou ela simplesmente é uma pobretona que não pode dar algo melhor pra você meio-sangue? — o último disse.
Lucet colocou a lâmina em frente ao seu corpo e sorriu friamente.
— Mestre estúpido, Discípulo estúpido.
E kaella, na arquibancada, não pode resistir e soltou um riso que fez todos olharem para ela. Sua voz era melodiosa e agradável, mas era a razão pela qual riu e a fala que seguiu o riso que os assustou.
— Pobretona é? — ela zombou — Queria saber qual dos seus mestres conseguiriam arranjar a “Garra do Corvo” como arma para vocês.