Os Contos de Anima - Capítulo 17
Maximilian, apesar de manter uma expressão tranquila, possuía uma curiosa luz em seus olhos enquanto assistia toda a partida. Nos primeiros doze oponentes ele ficou apenas levemente impressionado com as habilidades do garoto, afinal, na faixa etária dele era raro ver tanta fluidez nos movimentos e execução tática, como também da capacidade estratégia. Sua análise era que boa parte disso era fruto dos ensinamentos de Kaella, e por tal, a elogiou em sua mente enquanto calculava algumas possibilidades.
Porém, quando Lucet chegou ao último embate, ele dedicou mais atenção a luta. A essa altura, já tinha uma boa noção das habilidades da criança, mas, como seria a sua performance diante de uma posição desvantajosa ou até mesmo uma crise de vida ou morte? , E, para sua feliz surpresa, apesar do início um tanto ruim quando Lucet ficou pensativo e acabou sendo pego de surpresa, o garoto demonstrou um desempenho extraordinário.
O que o deixou atônito foi a selvageria que deu lugar quando, após ser severamente ferido ao ter várias de suas costelas quebradas e órgãos internos danificados devido aos constantes impactos, ele não apenas virou o jogo, mas também fez o oponente perder a calma, a debilitou em questão de segundos, a desestabilizou, e então, usando uma brilhante estratégia de utilizar o padrão de aparecer constantemente nas costas como base, driblou seu oponente ao simplesmente aparecer no mesmo lugar e desferir um ataque crítico que instantaneamente a nocauteou e garantiu sua vitória.
Maximilian chegou a considerar torná-lo como seu discípulo, mas, como ele não era um corvo e tentar tomá-lo de Kaella seria bastante problemático, rapidamente desistiu da idéia. Ele virou seus olhos e viu que Kaella o olhava com um olhar um tanto desesperado, ele acenou a cabeça e, com um gesto luminoso de sua mão, a barreira desapareceu e Kaella rapidamente mergulhou nas sombras e reapareceu ao lado do garoto.
Griz Wulf, que a essa altura já havia se tornado histérico, disparou como um meteorito para arena e prontamente alcançou sua aluna na primeira chance que teve. No instante que chegou, se ajoelhou ao lado dela e retirou diversas ervas e raízes de um saco feito de folhas que estava amarrado em sua cintura, depois disso, retirou um pequeno almofariz e um pilão de madeira, alguns frascos com estranhos líquidos multicoloridos, alguns ossos amarelados, um pequeno martelo e uma tábua de madeira.
Ele então triturou os ossos na tábua com o martelo, colocou os pedaços no almofariz e usou o pilão para pulverizar os fragmentos. Depois, acrescentou uma raiz vermelha, uma verde e uma azulada, além de três ervas diferentes e as pulverizou com o pilão, misturando o pó dos ossos e dos componentes naturais. Por último, tirou as rolhas de cinco frascos e adicionou ao almofariz uma gota do conteúdo de cada frasco e então misturou até que formasse uma espécie de pasta marrom que ele então aplicou sobre o enorme corte nas costas da Faeram inconsciente. Após isso, ele começou a murmurar diversas palavras, seu corpo emanando uma poderosa e densa aura verde-escura. Essa aura então se fundiu com a pasta marrom e a ferida começou a fechar e se curar a velocidades visíveis, e em alguns minutos, qualquer traço de dano foi apagado como se o corte nunca tivesse existido.
Kaella, por outro lado, sacou três frascos contendo poções de seu saco dimensional, um contendo um líquido vermelho como sangue, outro contendo algo negro como tinta e o último contendo algo de cor dourada que dava a impressão de que o frasco continha ouro líquido. Lucet ainda ria, as extremidades do seu corpo tremendo e seu rosto pálido feito uma vela.
— Eu ganhei né? — ele riu e tossiu algumas gotas de sangue — Acabei com todos eles hahaha.
— Sim, você ganhou — Kaella sorriu — mostrou para eles seu valor, habilidade e não desonrou meus ensinamentos. Você se saiu muito bem Lucet. Agora, beba isso.
Ela então inclinou sua cabeça para que pudesse tomar as poções. Primeiro, ela o fez beber a poção vermelha como sangue. Lucet imediatamente sentiu os efeitos. Toda a dor de seu corpo estava rapidamente sumindo e até mesmo os ossos que ele tinha certeza que estavam quebrados ou rachados, começaram a voltar para seus lugares. O líquido tinha gosto de diversas frutas que já tinha consumido e a sensação que trazia, além do óbvio alívio da dor, era a de calor. Seu corpo parecia vibrar e ele se sentia energizado, até demais. Seu rosto, antes pálido, rapidamente se tornou rosado e, instantes depois, vermelho feito um grande tomate.
Kaella então o fez beber a poção negra. Seu corpo instantaneamente esfriou e seu rosto voltou a sua cor natural, apenas para depois ficar levemente azulado. Lucet sentiu como se tivesse mergulhado num lago no inverno e rapidamente começou a tremer, sentindo um sabor de hortaliças decorar seus sentidos ao passo que toda a energia anterior era rapidamente drenada pelo novo liquido, porém, antes que os sintomas piorassem, ela o fez beber a poção dourada.
Ele franziu o rosto pois o gosto dessa poção era extremamente amargo, mas, depois de passar, os efeitos eram óbvios. Sua energia e sua mana interna foram completamente restauradas em questão de minutos e todas as feridas do combate, externas ou internas, tinha sido curadas completamente e qualquer desconforto tinha se tornado inexistente.
Lucet levantou devagar enquanto sentia seu corpo. Ele apalpou e deu alguns tapas nas áreas que tinham sido feridas, e como esperado da sensação relaxante da recuperação, tudo estava de volta ao normal. Ele se virou para Kaella e, sem dizer uma palavra ou demonstrar qualquer tipo de expressão, a abraçou. A elfa, que devido aos costumes de sua raça estava desacostumada com expressões de afeto, hesitou por alguns instantes.
Essa era a segunda vez que o garoto a tinha abraçado assim. Na primeira vez, ela até conseguia entender, afinal, ele tinha não só mudado completamente de vida em uma única noite mas também tinha ganhado seu primeiro presente, portanto, a alegria destes eventos certamente o faria pensar assim, porém, agora, ela não conseguia compreender exatamente porquê o garoto a estava abraçando.
Mesmo com dúvidas, ela eventualmente o abraçou de volta, e, quando o fez, sentiu que o abraço do garoto aumentou um tanto em força. Uma estranha sensação surgiu na mente da mulher. Novamente, aquela mesma sensação de quando o garoto lhe abraçou pela primeira vez, se repetiu, e mais uma vez, ela se sentiu próxima, e até mesmo familiar com o garoto. Mas, nada a poderia preparar para as próximas palavras do menino.
— Eu não sei se — ele disse — Meus pais ainda estão vivos em algum lugar e se estiverem, um dia quero poder encontrá-los.
As palavras eram como facas que dilaceravam o sentimento que acabara de nascer nela, porém, antes mesmo que ela tivesse tempo de processar ou se sentir mal por elas, Lucet continuou.
— Mas eu sei que mesmo que eu os encontre mestra, nunca vão poder tomar o seu lugar — ele afirmou — Você cuidou de mim, me treinou, me ensinou, me alimentou e me ajudou a caminhar passo a passo em direção ao futuro que sempre desejei trilhar, sem jamais me pedir qualquer coisa em troca. Sei que ainda estou muito longe de ser como você, mas eu sou um meio-sangue, e, se eu for um filho de um Alfae com um humano… Então talvez um dia eu possa ser meio você né?
O garoto soltou o abraço e deu um largo sorriso ao olhar direto nos olhos dela.
— Eu lembro que você disse que me adotou quando virei seu discípulo, então mesmo que seja só adotado, eu ainda sou seu filho não? — Ele riu — Ás vezes eu nem consigo acreditar sabe? Fico achando que a qualquer momento vou acordar desse sonho na cama dura do orfanato.
Qualquer traço de conflito emocional que estava prestes a surgir foi dissipado e ela acenou com a cabeça, incapaz de dizer qualquer coisa, apenas sorrindo largamente junto com o garoto.
Agora que a batalha tinha acabado, todos os mestres e discípulos se juntaram na arena. Lupina ainda estava desacordada apesar de já ter recebido o tratamento adequado para seus ferimentos, além disso, Griz Wulf já tinha religado sua mão e, após uma extensiva série de examinações e testes, determinou que tudo estava em ordem, e por fim, se virou para Lucet.
O Faeram estava absorto em fúria. Suas púpilas contraíram até o limite, seu pelo levemente levantado e a íris âmbar de seus olhos agora estava quase escarlate. Ele andou na direção do garoto, apontando uma garra em sua direção. A cada passo sua aura verde-escura aumentava em tamanho e pressão, impactando o corpo de Lucet, fazendo-o sentir como se pouco a pouco, seu peso estivesse aumentando exponêncialmente.
— Meio-sangue assassino! Sabia desde o ínicio que uma abominação dessas só podia ter más intenções! — Ele rosnou — Deu um golpe tão cruel em seu oponente quando isso deveria ser apenas uma competição amistosa!
Lucet, que estava num ótimo humor, instantaneamente fechou o rosto, se virou para o Faeram e disse friamente.
— Bem, eu não ouvi você reclamar quando ela quase estourou meus órgãos na pancada — ele retrucou, resistindo a aura — Muito menos quando ela quebrou meu braço e mais umas oito costelas ou ainda quando ela quase perfurou meus pulmões enquanto batia nos estilhaços dos meus ossos.
Griz Wulf estava cada vez mais perto e sua aura estava atingindo tal ápice que até mesmo os outros mestres começaram a franzir o rosto. O corpo de Lucet já estava tremendo, mas ele se recusava com todas as forças a cair, sua própria aura cinzenta flamejando contra a do Faeram, ele não estava errado! Não ia se curvar! Não com sua mestra logo atrás de si!
— Você abriu as costas dela num único golpe! Ela desmaiou com o choque! — Ele continuou.
— E ainda assim, foi só um corte na carne, não quebrei seus ossos ou deixei ela paralisada, e graças a sua técnica, nem ao menos cicatrizes ela terá deste evento, do que ela pode reclamar? — ele zombou com muito esforço — Se ela não pode aguentar nem isso, como será que se sairá num verdadeiro combate?.
— ORA SEU! — Ele rosnou e avançou no garoto.
Porém, neste instante Kaella puxou o garoto para trás e fitou o Faeram. Seus olhos violeta brilhavam como estrelas em supernova, sua fúria quase física. Ela então liberou sua própria aura que explodiu e esmagou o poder do oponente feito um tsunami. A aura dela era negra como tinta e prontamente reprimiu Griz a ponto de fazê-lo se ajoelhar no solo que agora estava rachando com seu peso.
— Seu o que Griz Wulf? — Kaella questionou, sua aura intensificando ainda mais — O fato de eu não ter matado sua “garota prodígio” eu mesma já é muito respeito para com suas contribuições em Elysium, não me diga que quer que eu ignore esses feitos e passe a tratá-lo com a mesma hostilidade que tratou meu discípulo?
Griz grunhiu de dor, e com um estalo, seus joelhos desabaram e ele finalmente estava de quatro no chão.
— Guardiâ! Você vai se arrepender! — Ele uivou.
Kaella aumentou ainda mais sua força e o fez deitar no chão, seu corpo lentamente afundando e marcando o solo da arena.
— E quem exatamente vai me punir? A Kaizar de Jungla Iroko? — Ela riu — Acha mesmo que aquela velha vai comprar briga com Lybra, e por extensão, toda Lumina, só por sua causa? Acredita de verdade que VOCÊ vai ser a causa de uma guerra entre os Faeram e os Alfae que tem estado em paz por séculos e tem negociações extremamente prósperas e lucrativas?
Lucet, que apenas observava a situação e respirava mais tranquilo agora que a pressão de Griz havia sido anulada, não pode deixar de sentir admiração, e principalmente, medo de sua mestra.
Era difícil ver ela demonstrar a verdadeira extensão da sua força, mas mesmo exibindo tanto poder, ainda assim, ele tinha a leve impressão que esse não era o limite de sua capacidade. Quando parou para analisar essa sensação, concluiu logo que fazia sentido, afinal, sua mestra era da raça que tinha a maior afinidade com mana em toda Anima, além disso, com a juventude eterna, que permitia um tempo de treino e aperfeiçoamento muito maior do que qualquer outra espécie possa sonhar em ter, era um tanto quanto sensato acreditar que ela ainda tinha cartas a revelar. Obviamente, Kaella com seus setecentos e oitenta e três anos já tinha atingido um ápice que ele nem sequer era capaz de imaginar, e mesmo que não fosse a mais poderosa de Anima, não deveriam haver muitos serem em no mundo capaz de superá-la em combate, mesmo que ela tenha dito o contrário anteriormente.
— É bem a cara dos Alfae — Griz disse com dificuldade — Oprimir os outros com sua grande afinidade mágica.
Para isso, Kaella apenas respondeu.
— Dos grandes Faeram que conheço, três mestres em especial são consideravelmente mais poderosos que eu — ela disse num tom de voz hostil — Se você não é capaz de exibir tal poder, é apenas sua patética incompetência, não minha “opressão”.
Griz estava pronto para continuar a discussão, porém, Maximilian interviu e dissolveu o conflito com uma frase.
— Kaella, já chega, não precisamos chegar a níveis irreversíveis, nenhuma das crianças está morta — ele disse firme — Não há porque queimar as pontes após atravessá-las, não somos inimigos.
Kaella olhou o homem por alguns instantes, pensativa. Ele sabia melhor do que ninguém o que ocorrera dentro da arena, e também sabia que todos os motivos que ela tinha para usar sua força eram válidos, mas ainda assim resolveu desarmar a situação antes que resultasse em óbitos, pois tinha alta probabilidade de causar um problema de nível internacional, especialmente para ela que tinha uma posição equivalente a de uma emissária de Lumina. Os dois ficaram por vários momentos se encarando, como se transmitindo seus pensamentos através de olhares, e por fim, Kaella aquiesceu a solicitação.
Ela retraiu sua aura, o que permitiu que a aura de Griz, que esse tempo todo estava lutando arduamente para sair, finalmente explodisse com força total. Ele saltou do chão e disparou como um vulto na direção, não de Kaella, mas de Lucet. Com suas capacidades físicas aumentadas ainda mais pelo seu estado de fúria, ele seria totalmente capaz de chegar ao garoto antes que Kaella pudesse ativar qualquer defesa.
Tudo o que o Faeram via era um mundo vermelho onde o detestável meio-sangue era o alvo. Seu estado de raiva era tal, que até mesmo a imensa pressão focada exclusivamente nele emanada do medalhão no peito de Lucet foi ignorada. Nem mesmo Maximilian foi capaz de conjurar uma contra-medida rápido o bastante, e numa fração de segundos, Griz alcançou o garoto, pronto para atravessá-lo com suas garras e arrancar seu coração.
Primeiro, o mundo se tornou escuro como a noite. Silêncio tomou conta do ambiente ao passo que uma infinidade de partículas douradas convergiram no peito de Lucet no instante em que o mundo que havia, literalmente, sido congelado no tempo. O medalhão pulsou como um poderoso coração que ressou com uma única batida, e dele, uma bolha de luz cresceu, envolveu o garoto e formou uma defesa semi-transparente com um símbolo de uma serpente alada que devorava sua cauda que imitava um símbolo que representava o infinito, um oito horizontal.
Por fim, o tempo se moveu e o mundo voltou ao normal dando lugar a uma explosão que levantou poeira para todos os lados e ecoou pela arena como se um canhão tivesse sido disparado ao lado dos ouvidos de todos, antes de revelar uma silhueta voando feito um cometa escarlate na direção oposta e colidindo com os bancos de pedra das arquibancadas. Os mestres olharam confusos para a cena, o centro da explosão ainda estava empoeirado, então resolveram olhar primeiro a silhueta que havia sido arremessada nas arquibancadas.
Eles então notaram espantados a silhueta vermelha era Griz Wulf, que estava totalmente mutilado com feridas profundas por todo seu corpo e um de seus braços totalmente destruído, deixando apenas um pequeno resto de osso preso a junta de seu ombro.
Suas vestes verdes, que certamente eram encantadas como poderosas proteções e revestidas com tecidos de excelente qualidade que obviamente possuiam propriedades únicas contra dano, tinham sido tão rasgadas que mal sobrara pano para lhe cobrir o corpo.
Sangue azul fluía de suas feridas onde, em alguns casos, existiam até fragmentos de ossos expostos, pedaços de músculos e até partes de órgãos. O fato de ele ainda permanecer vivo era simplesmente um milagre. Horrorizados, eles assistiram enquanto o corpo de Griz tremia, num esforço visível de tentar gesticular algo, e, foi nesse que eles ouviram uma única palavra sair de sua boca cujo muitos dentes haviam sido quebrados acompanhado de fortes tosses e um braço que apontava trêmulo para as costas dos mestres.
— Ou… ro…bor…os…