Os Contos de Anima - Capítulo 19
Após se recompor da desagradável sensação de estar exposto, Maximilian finalmente se virou para os mestres que, até aquele instante, ainda estavam sendo suprimidos pelas correntes negras. Ele os mantivera supridos de nutrientes e energia através do poder do espaço individual, e devido a isso, Griz, apesar de ainda um tanto abatido, já havia se recuperado em grande parte do trauma causado pelo impacto contra o escudo de Lucet.
— Senhores — ele disse — como devem saber, é hora de cumprirem com suas respectivas apostas não?
Ele deu um gesto com sua mão e o mundo escureceu. Sentiram-se esticados como goma por um breve momento e em seguida, com o soar de um estampido em seus ouvidos, o mundo novamente clareou e o familiar cheiro da floresta do vale, os prédios da vila e as luzes dos postes equipados com cristais de mana que alumiava a rua em frente a Anansi diante do estrelado céu noturno os recebeu.
Lucet, que agora já havia desativado seu olho do tirano, esperava junto com Kaella, Iogi e Albus as próximas palavras de Maximilian, e, para sua surpresa, antes de falar com os treze, o homem se virou para ele e sorriu ao dizer.
— Primeiro, gostaria de lhe pedir desculpas Lucet. Sei que sua condição específica, tanto como meio-sangue quanto como um corvo, lhe tornam um alvo para muitos olhares, e, sabendo eu das práticas e crenças destes mestres, acabei lhe usando como isca para atrair a verdadeira postura deles — ele explicou — Elysium é um local que foi criado para refutar os ensinamentos separatistas da Congregação de Puritas e provar que as diferentes raças não apenas podem conviver e prosperar, como também podem mesclar suas linhagens e dar origem a progressos, poderes e benefícios nunca antes imaginados. Para manter os ideais deste projeto, sempre tive o cuidado de buscar as mentes mais brilhantes de todas as raças que estivessem dispostas a conviver e progredir umas com as outras, infelizmente, nenhum representante dos Durza teve interesse em meus convites, e, considerando seu brutal histórico e sua natureza, não é de se surpreender que o tenham feito.
Maximilian então se virou para os treze.
— Quanto a vocês, creio que percebem onde erraram correto? Ou realmente pensaram que depois de uma demonstração tão explícita de seus verdadeiros pensamentos fanáticos, eu não teria provas o bastante para extrapolar suas reais identidades, fiéis?
Lucet, confuso com os questionamentos, não pode deixar de perguntar.
— Senhor Maximilian… — ele disse um tanto hesitante — O que o senhor quer dizer com verdadeiras identidades?
Maximilian riu e respondeu.
— Ora pequeno corvo — ele disse — Se com esse tipo de filosofia retrógrada eles não fossem seguidores da Congregação de Puritas, o que mais seriam?
Kaella apenas observou, porém, Albus e Iogi logo comentaram.
— Faz bastante sentido se considerar essa possibilidade — Afirmou o Gnoma — Essa atitude deste bando de maniacos não é tão estranha quando se considera este tipo de origem.
— Exato — adicionou Albus — Um desprezo tão genuíno não seria fruto espontâneo, mas sim algo adquirido com anos de crença e doutrina.
Maximilian suspirou e então, com uma mão luminosa retirou treze rolos de pergaminho de dentro dos bolsos de suas túnicas que prontamente se posicionaram flutuando em frente aos rostos dos mestres presos em correntes escuras.
— E, por tais identidades, além de violarem as regras de Elysium, espalhar essa crença estúpida para jovens e o resultado de sua aposta com o garoto — Maximilian continuou — Eu os declaro, de acordo com a cláusula seis de seus contratos mágicos, banidos de Elysium. Além disso, de acordo com a cláusula quatorze, tudo o que produziram aqui, aqui permanecerá, todos os seus bens e materiais serão, e já foram, confiscados e sua memória quanto a localização da vila será imediatamente apagada, após isso, vocês serão transportados para o local onde selecionaram quando assinaram o contrato.
— Senhores — Maximilian disse com uma careta zombeteira — Foi um desprazer conhecê-los.
Com um aceno de sua mão, as correntes se partiram e desapareceram. Um estalo de seus dedos, e os olhos dos mestres ficaram vagos enquanto uma fumaça dourada saia de seus olhos, nariz, ouvidos e boca. Um aplauso e os contratos pegaram incendiaram em chamas azuis e os treze se tornaram luz e com um estampido, desapareceram. Por um instante, o homem permaneceu pensativo olhando para o lugar onde previamente estavam os treze banidos, porém, rapidamente se recompôs e tornou a falar com o grupo.
— Agora que resolvemos este infeliz evento — Maximiliam disse ao se virar para Kaella e os outros — creio que já passou da hora de encerrarmos isto. Portanto, desejo a todos uma boa noite.
O homem então se virou para Kaella e deixou um último comentário
— Creio que já está na hora do nosso pequeno corvo ir ao ninho não?
Ele acenou com a mão, e, como se nunca tivesse existido antes, desapareceu. Iogi se despediu dos três e saiu andando, desaparecendo numa viela, enquanto Albus, que parabenizou e se despediu, tomou sua rota usual de volta para o orfanato. Kaella e Lucet então andaram até a viela onde inicialmente apareceram para o torneio, e com o tão familiar mergulho nas sombras, se foram.
Em outro lugar, treze feixes de luzes aterrissaram sobre um solo de pedra gasta e cinzenta com um baque surdo e, após um breve momento onde os “pedaços” das luzes se agregaram, treze figuras se materializaram. Se Lucet estivesse aqui, facilmente se lembraria da figura dos treze, e principalmente do lugar onde se encontravam.
Dentre altas muralhas de pedra cinza, dezenas de soldados relativamente armados e vestidos em armaduras de aço, couro e malha, os treze escolheram aterrissar neste local específico construído para a federação humana, a capital feita sob demanda, Concordia.
Eles surgiram em frente a uma enorme estrutura anormalmente destacada do resto da cidade. Ao invés de rochas cinzentas, a construção era branca e dourada com janelas recheadas de vitrais coloridos, portões gigantescos feitas de ouro maciço e jóias reluzentes que alimentavam os símbolos arcanos gravados em suas bordas que faziam os treze parecerem crianças.
Para eles, aquilo era um lugar de reverência, e antes mesmo de se estabilizar, os treze se ajoelharam perante os portões dourados, suas cabeças baixas em um respeitoso silêncio. Apenas após alguns minutos eles levantaram um tanto cambaleantes e então se direcionaram a entrada. As joias reluziram, os símbolos brilharam e os portões emitiram uma fumaça dourada que logo se acumulou e tomou a forma de uma enorme cabeça coberta por um capuz que escondia suas feições.
— Quem segue em busca da pura luz? — a cabeça falou com voz trovejante.
Os treze bradaram em uníssono, suas destras sobre seus peitos.
— Aqueles de bom sangue que buscam a salvação eterna! — eles responderam.
— E qual é o destino daqueles que não possuem o bom sangue? —a voz continuou.
—Que como vermes sejam pisados, mortos e destruídos!
A cabeça se desfez e os portões se abriram levemente, dando lugar a uma brecha que permitiu a passagem dos treze, que rapidamente adentraram, e logo se fechou. Os treze então prosseguiram por uma longa escadaria de mármore branco que brilhava com as cores dos vitrais e depois por um largo corredor iluminado por tochas de chama branca que eventualmente os levou a uma segunda grande porta de ouro que, quando chegaram perto, se ajoelharam.
— Quem vem em busca da palavra santa? — A voz trovejante ecoou pelo corredor espaçoso.
— Os filhos da luz, as lâminas que punem os impuros e os inimigos da nossa missão! — eles responderam.
As portas se abriram e os treze rapidamente adentraram. Dentro se viram dentro de um largo e alto salão com diversos vitrais retratando batalhas, objetos, monstros e mártires, no ponto mais elevado do lugar havia um trono de mármore branco e ouro ao topo de escadas do mesmo material. Aos lados do trono, duas bandeiras vermelhas com um símbolo dourado de duas espadas cruzadas com os dizeres “Se buscas a eterna paz, Arma-te para a guerra” bordados a ouro com letras garrafais em baixo.
Do trono descia um tapete vermelho que ia até à porta onde estavam, A cada lado do tapete, cerca de cinquenta homens armados com espadas e lanças alternadamente, todos trajando armaduras prateadas com cruzes douradas em seus ombros e peito. Eles emanavam uma pressão visível devido às majestosas auras brancas e douradas que flamejavam em seus corpos, suas feições escondidas por seus capacetes que mostravam apenas seus olhos. Todos eram altos e imponentes, suas disposições ferozes.
Sentada sobre o trono existia uma figura feminina com sua face escondida pela sombra do capuz de sua túnica branca e dourada que lhe cobria todo o corpo, apenas deixando seu cabelo dourado escorrer pelas bordas de seu capuz. Em sua mão, um cetro feito de ouro cravejado com sete jóias brilhantes e uma orbe vermelha fixada na boca do topo do cetro que tinha o formato de uma cabeça de leão. Ela bateu a ponta do cetro no chão uma vez suavemente, indicando aos treze, que já tinham se posicionado aos seus pés ajoelhados, que podiam falar.
— Santa Pontifícia, retornamos de nossa missão — Griz se prontificou a falar — Nos vinte anos que passamos infiltrados por lá, conseguimos desenvolver diversas novas tecnologias que, como já bem sabe, transferimos as técnicas e métodos de produção para a divisão Matthew para que fossem implementadas as tropas de vossa excelência. Além disso, encontramos um peculiar herege que nos custou nossa estadia que, além de ser um odioso corvo em formação, também era um dos indesejáveis meio-sangues que através de uma aposta e os esforços do desprezível Maximilian, nos fez ser banidos.
O salão ficou em silêncio enquanto aguardavam uma resposta da mulher a sua frente, ela, porém,ficou diversos minutos sem esboçar qualquer resposta, o que para os treze era particularmente preocupante, o que fez com que Griz continuasse a relatar.
— Também reporto, Vossa Santidade — ele disse rapidamente — que a missão de implementar fraquezas e falhas nas defesas de Elysium foi relativamente bem sucedida. Não fomos capazes de implementar todas as planejadas, porém as que conseguimos são o suficiente para enfraquecer as defesas em pelo menos setenta por cento, o que facilitará em grande parte os planos de vossa santidade.
Mais uma vez o silêncio tomou conta do local e, a essa altura, os treze já tremiam levemente. Mais uma dúzia de minutos desconfortáveis se passou e a mulher nem ao menos fez o som de respirar. Griz já suava e seus olhos corriam para todos os cantos, sua mente desesperada tentando lembrar de qualquer detalhe que pudesse relatar na esperança de agradar a mulher.
— Também… também encontramos um infinium! — ele disse desesperado — Mas não era exatamente um infinium… tinha os mesmos poderes de um, mas… quando eu ataquei o herege meio-sangue, a reliquia o defendeu, mas não se partiu após a proteção absoluta se desfazer.
Nesse instante, a mulher finalmente se moveu. Ela se levantou do trono e apontou o cetro na direção do Faeram, uma das sete jóias, uma esmeralda, brilhou e um raio de luz verde saiu da orbe vermelha e o atingiu na testa. Griz caiu no chão e começou a convulsionar enquanto seus olhos brilhavam com a cor esmeralda. Seus membros contraiam e se retorciam de maneiras tão absurdas que em poucos instantes sons de quebra e estalos começaram a ser ouvidos. O processo durou vários minutos antes de finalmente acabar e o corpo do Faeram cair morto no chão.
De sua cabeça uma luz flutuou antes de explodir e dar lugar a uma imagem de um garoto de olhos heterocromáticos e com uma pele pálida em seu olho esquerdo, que era lilás em cor, abaixo da imagem, o nome “Lucet”. A mulher ergueu sua cabeça e fitou a imagem por alguns momentos antes de declarar, sua voz baixa como um sussurro, porém assustadoramente alta no grande salão.
—Thomas…
A mulher então se virou para os doze remanescentes, apontou seu cetro para eles, dessa vez a orbe vermelha brilhando como uma estrela e disse.
— Sucessos parciais não passam de fracassos.
Um flash de luz envolveu todo o local, e, antes mesmo que o som de sua voz pudesse sumir no espaço, os doze se tornaram pó e então foram apagados da existência. A mulher então retornou e sentou em seu trono antes de ordenar, a ponta de seu cetro apontando para a imagem do garoto.
— Repliquem, espalhem — ela disse — dez mil peças de ouro, apenas vivo.
Todos os homens prontamente murmuraram diversas palavras numa língua estranha e pequenas réplicas da imagem do garoto apareceram em suas mãos. Eles então se curvaram e rapidamente saíram da sala, suas armaduras tintilando com o colidir dos metais.
Alguns instantes se passaram em silêncio. A mulher continuava a olhar para a imagem do garoto que estava retratada no quadro flutuante, os pensamentos em sua mente viajando a cantos que somente ela sabia enquanto dois pontos luminosos na região obscurecida de seu rosto, que estavam na altura de onde deveriam estar seus olhos, e uma das jóias de seu cetro brilhavam na cor laranja. Apenas após vários minutos o brilho colorido se desfez e a figura finalmente se moveu, erguendo seu braço antes de juntar as pontas de seus longos dedos brancos e os estalar.
Apesar da sala estar constantemente iluminada com a luz colorida dos vitrais, o lugar, agora que os cem guerreiros de auras alvas flamejantes haviam desaparecido, tinha se tornado muito mais sombrio com faixas de escuridão cobrindo largas porções do grande salão.
Porém, a maior sombra que existia no lugar era aquela projetada pelo trono da figura que, devido a iluminação do local, tinha uma praticamente eterna quantia de escuridão logo atrás do assento repleto de luz. No instante que o som de seu movimento ecoou pelo salão vazio, uma familiar acumulação de sombra especialmente enegrecida surgiu atrás do trono e dela uma silhueta indistinguível da escuridão surgiu silenciosamente. Uma voz masculina profunda então ecoou.
— Quais são tuas ordens minha mestra? — a voz disse.
— Retorne ao “Ninho”, Rubro. — ela comandou numa voz baixa e fria.
— O garoto irá aparecer por lá em breve. O vigie, a existência dele nos levará ao “Paraíso” dos hereges.
— Sua vontade será feita minha mestra — A voz respondeu.
A figura então mergulhou nas sombras novamente e em instantes tudo retornou ao silêncio. A mulher sentada sobre seu trono de marfim então estalou seus dedos mais uma vez, desta vez com eles coberto por uma fina camada de luz branca e dourada, fazendo com que o som do movimento ecoasse numa maneira peculiar. As luzes da sala começaram a convergir e acumular numa esfera de luz branca que em instantes explodiu e deu lugar a uma silhueta humanoide completamente ausente de feições, roupas, ou até mesmo de corpo, sendo apenas uma massa de energia alva no formato do que deveria ser um humano. Esta prontamente desceu ao chão e se ajoelhou perante a mulher antes de dizer numa voz distorcida da qual não se era capaz de identificar qualquer gênero especifico.
— Qual é sua vontade minha mestra? — a figura disse.
— Convoque a divisão Iscariote, Nero. — a mulher comandou calmamente — Diga-os que se preparem para realizar seu propósito.
— Será feito minha mestra — a figura respondeu.
A figura então se dispersou em partículas de luz e desapareceu. A postura da mulher então se abaixou, como se estivesse reclinando em cima do trono, e assim o silêncio predominou novamente no grande salão que com o passar das horas ia lentamente escurecendo e escondendo a figura que permanecia imóvel com seu cajado em mãos, como se a qualquer momento fosse agir.
Poucas horas depois, por todos os cantos onde a influência e presença da Congregação de Puritas alcançava, um novo cartaz se tinha sido afixado em suas paredes, tanto das próprias sedes, quanto de qualquer agência de caçadores de recompensa ou guilda de aventureiros, que continha a imagem do garoto e uma descrição que dizia:
“Procurado Apenas Vivo”
“Lucet”
“Herege Meio-Sangue”
“Recompensa de dez mil peças de ouro para quem o trouxer para a sede mais próxima da congregação de puritas sem quaisquer ferimentos”
“Detalhes adicionais: O alvo é um usuário da mana das sombras, um dos infames criminosos conhecidos como corvos“