Os Contos de Anima - Capítulo 21
Algumas horas de sono e uns familiares raios de luz focalizados no rosto depois, Lucet despertou. O ar frio da madrugada golpeou sua garganta e pulmões quando ele puxou o primeiro fôlego consciente do dia, fazendo-o estremecer. Ele se levantou rapidamente e apanhou suas roupas de um baú ao lado da cama de folhas, vestindo calças escuras, botas de combate negras, uma camisa azul-escura leve que ajeitou para dentro da calça antes de colocar seu cinto dimensional na cintura e vestir seu sobretudo de couro preto. Ele então guardou algumas poções, algumas ervas, uns livros e sua garra dentro da jóia vermelha no cinto e aguardou.
Instantes depois de ele terminar de se vestir, uma familiar mancha negra surgiu no chão, e dela, a igualmente familiar silhueta de Kaella se manifestou, antes das sombras se desintegrarem e revelarem sua mestra. Ela vestia um manto escuro sobre seu corpo que encobria tudo exceto seu rosto e suas botas que também eram escuras. Lucet, que nunca a tinha visto vestir qualquer coisa assim tão cedo, não pode deixar de questionar.
— Mestra? Porque está vestida assim? Vai a algum lugar?
— Não — ela respondeu — Nós vamos a algum lugar e eu espero que esteja pronto como de costume. Penso que deveria levar algumas peças de ouro, umas quinhentas devem bastar.
— Então vamos fazer compras na vila de novo? Eu já sei me transportar até lá mestra, se quer alguma coisa de lá, tenho certeza que consigo buscar sozinho.
Ele se virou e abriu seu baú e tirou dele um saco marrom carregado de moedas. No tempo em que treinou com Kaella, Lucet teve de aprender diversos ofícios que poderiam lhe ser úteis, tais como forja, artesanato, bordado, carpintaria e medicina. Dentre estes, medicina e forja particularmente demandavam uma quantia considerável de dinheiro para praticar e, como Kaella sempre o incentivou a conseguir seus recursos sozinho, ele teve de trabalhar com Iogi em sua loja para baratear o custo dos materiais e também ganhar algum dinheiro para a prática de suas outras disciplinas. Com o tempo ele conseguiu juntar uma pequena fortuna de mil peças de ouro que, para sua feliz surpresa, foi capaz de juntar numa velocidade até que bem rápida devido à qualidade e habilidade que os produtos de Iogi exigiam.
— Não iremos para a vila, desta vez nosso destino é diferente — ela respondeu — Hoje iremos oficializar sua posição como um corvo, e para isso, precisamos ir até “O Ninho”.
— Ahn? Como assim? Ninho? Do que está falando mestra? Eu já não sou um corvo? — Lucet questionou confuso.
Kaella deu um sorriso de canto de boca e respondeu.
— Você é um corvo pelo atributo de sua mana, mas, você tecnicamente falando ainda não é um corvo — ela disse — Para ser precisa, nem ao menos um aprendiz de corvo você é, pois nunca fomos ao Ninho para introduzir e registrar você como meu aprendiz. Mesmo que no momento você tenha as habilidades básicas de um corvo, você não pode se chamar de corvo antes de se identificar no ninho e passar pelo teste de iniciação.
Lucet olhou para ela ansioso, seus olhos brilhando enquanto um sorriso se formava lentamente em seu rosto.
— Vamos lá então! — ele disse empolgado — Deve ter um montão de coisas novas para eu ver não é?
— Certamente — ela respondeu rindo — O mundo é muito maior do que você possa pensar em imaginar Lucet, e hoje, você vai ver uma das partes mais interessantes.
Ela então estendeu a mão para fora de seu manto, um colar com um pingente de máscara sobre sua palma. Ele viu que a mão vestia uma luva negra que quando tocou para pegar o objeto, era macia e suave como seda e, ao mesmo tempo emitia uma estranha sensação de distância, como se apesar de conseguir tocar, não estivesse realmente tocando. A luva, como todo o resto das vestes da elfa, certamente era encantada, ele concluiu, e uma expressão séria invadiu suas feições. Ele conseguia sentir uma pressão mágica muito maior que a usual vindo da Alfae e isso o deixou preocupado.
— Mestra… Que tipo de lugar é o ninho?
— Bem…— Ela disse um tanto sem graça quando reparou que a pressão de sua mana havia começado a afetar o garoto — O ninho é um lugar certamente fantástico. Tudo que um corvo possa querer ou precisar em suas atividades pode ser encontrado ali, sejam informações, materiais ou até parcerias e mercenários para contratar, porém, como eu já lhe expliquei antes, os corvos como um todo não tem uma reputação das melhores, e muitos dos indivíduos que mancham a reputação de nossa profissão podem ser encontrados por lá, mas, como não estão agindo contra o ninho, eles acabam podendo fazer o que bem entenderem.
Lucet ficou um bom tempo sem falar nada, apenas retornando para o baú e colocando diversos itens dentro de seu cinto dimensional ao ponto de que a luz da jóia em atividade não parou de brilhar por vários minutos. Ele basicamente esvaziou seu baú e colocou todo seu conteúdo em dentro de seu depósito dimensional. Depois disso, ele tirou seu sobretudo, guardou no depósito e puxou o manto de sua cama e pôs sobre si. Apesar de dormir com ele todas as noites, o manto em si nunca foi uma coberta, e sim um valiosíssimo item encantado que Kaella lhe deu como presente.
Agora, tão preparado quanto poderia estar, Lucet perguntou.
— Mestra, acha que isso é o bastante?
— Com o tanto de coisas que você colocou nesse sinto… — ela disse pensativa — Deve bastar, mas por garantia, ponha o colar que lhe dei e ponha a máscara que fizemos juntos para que não prevenir o roubo de suas informações. A última coisa que queremos é que descubram seu status de meio-sangue, e acredite, apesar de eu não ter nenhum feitiço que o faça, no ninho certamente existem aqueles capazes de descobrir sua identidade sem precisar de uma amostra sanguínea.
Lucet obedeceu e, um flash de luz depois, ele já estava o mais prevenido contra possíveis bisbilhoteiros que podia estar. A máscara era preta e tinha o formato do crânio de um corvo, contendo um bico negro e buraco para que respirasse e pudesse enxergar. Além disso, o item tinha o conveniente encantamento que fazia com que ele permanecesse grudado no seu rosto enquanto a alimentasse com mana, e, caso alguém conseguisse retirar sua máscara a força, sua identidade estava protegida pois o amuleto que Kaella lhe dera já havia transformado seu rosto, não mais contendo o rosto de um humano de olhos heterocromáticos, mas sim o rosto de um garoto humano de cabelos escuros e olhos verdes, a mancha ao redor do seu olho esquerdo desaparecendo graças ao encantamento.
— Creio que já está preparado o bastante — Kaella afirmou — Mas lembre-se, o ninho tem tantos tesouros quanto tem perigos, portanto, mantenha sua guarda a todo momento.
Lucet acenou a cabeça. Kaella então pôs a mão sobre seu ombro e, após o mergulho nas sombras, sumiram. Instantes depois, no topo de uma montanha no território Gnoma, logo na entrada de uma caverna que era sombreada por uma árvore cinzenta com folhas amareladas, os dois emergiram. Lucet prontamente memorizou a paisagem do mar de montanhas e a caverna com a árvore cinza e deixou uma marca de mana no local, pois sabia que lhe seria útil ser capaz de acessar o local. Kaella virou para ele, sua mão novamente escondida sob seu manto.
— Ative a máscara e não fale com ninguém.
Lucet acenou com a cabeça e, após um leve brilho cinzento percorrer sua máscara mais uma vez e Kaella colocar sua própria, eles prosseguiram para a entrada da caverna. A caverna era um tanto baixa, tanto que a Alfae teve de se inclinar para andar por ali, e, além disso, era extremamente escura. O par utilizou um feitiço com o nome de “olhos de corvo”, que os permitia enxergar na escuridão, cujos efeitos facilitaram a navegação pelo lugar.
Andaram por cerca de meia hora desviando de buracos, armadilhas e outras espécies de proteção que somente corvos conseguiriam passa, pois, tal como a elfa havia explicado, aquela caverna era encantada com um véu de sombras cujas trevas só eram penetráveis por usuários dos olhos de corvo, então, qualquer outro que não fosse capaz de utilizar a técnica tentasse passar por ali, só veria escuridão e seria eventualmente morto pelas diversas armadilhas.
O caminho era surpreendentemente seco e aquecido para uma caverna no topo de uma montanha. Durante o percurso, Lucet reparou que estavam constantemente descendo. “Então o ninho é no meio de uma montanha?” Ele pensou empolgado “Genial! Essa montanha está tão bem escondida no meio de tantas outras que ninguém pensaria em procurar aqui!”
Quando finalmente chegaram no fim do percurso, encontraram uma porta de pedra negra que reluzia como se feita de um grande pedaço de obsidiana polida. No meio da porta existia o símbolo de um corvo e os dizeres “As sombras são nossa casa” esculpido em baixo. Ao se aproximar, Kaella estendeu sua mão coberta com mana das sombras e tocou o símbolo com uma expressão solene e repetiu a frase.
Um leve tremor ecoou pelo lugar quando um corvejo ressoou pelo ar. Kaella retirou sua mão e o símbolo, junto com a frase, começou a brilhar. A grande pedra se arrastou para o lado revelando uma passagem para uma sala de recepção onde uma mulher os aguardava.
A sala era totalmente feita da mesma pedra escura que a porta. Os assentos, o balcão, os pedestais que continham os cristais luminosos, a porta atrás da mulher e a porta que dava para um outro lugar desconhecido do lado do balcão, tudo era lustroso e brilhante além de, do ponto de vista de Lucet, extremamente bonito. Eles se aproximaram do balcão, e a mulher prontamente os recebeu com um leve sorriso.
— Sejam bem vindos ao ninho, como posso ajudá-los?
A mulher era uma Alfae de cabelos negros e olhos violeta, suas orelhas pequenas e levemente pontudas. Ela tinha um ar refinado e gracioso que não esbanjava apenas dela, mas também na sua maneira de vestir. Ela vestia uma capa púrpura sobre seus ombros e uma armadura de couro negro em seu torso, manoplas e botas da mesma cor, com camisa e calças da cor púrpura.
— Eu gostaria de registrar o meu discípulo, e, além disso, também gostaria de solicitar uma prova de admissão e classificação — Kaella solicitou.
A recepcionista respondeu cordialmente, mas com um tom de voz um pouco mais animado.
— Ora, um novo corvo entre nós! — ela disse — Isso são boas notícias! É tão difícil encontrar gente capaz de utilizar a mana das sombras que não tenha sido morta no instante que nasceu. Certamente, poderia me passar sua identificação?
Kaella estendeu sua mão, um colar com uma pedra negra no formato de um corvo sobre sua palma. A Alfae pegou e encaixou a pedra num buraco do mesmo formato que havia no balcão, a pedra então brilhou e projetou uma tela com algumas informações:
“Identificação: 152704361
Título: Corvo de Tinta
Raça: Alfae/Fêmea
Profissão: Especialista
Ranking: Obsidiana
Nível de Autoridade: A6”
— Corvo de Tinta — a recepcionista disse com um tom respeitoso, sua costa levemente curvada — O Ninho lhe dá as mais cordiais boas-vindas, não é sempre que temos a presença de alguém do seu calibre.
Kaella apenas acenou a cabeça. A Alfae então prosseguiu.
— Bem, quanto ao seu discípulo — ela disse virando para Lucet — Certamente registrá-lo não será problema algum, e para sua identidade, ela será gerada após o teste de classificação. Sendo alguém como a senhorita, não será preciso um teste de admissão, sua palavra de recomendação já basta.
Kaella, porém chacoalhou a cabeça, o que deixou a mulher confusa.
— Não quero nenhum privilégio — Kaella explicou — Ele fará todos os testes que forem precisos. E inclusive, esta é a taxa das duas provas — Ela disse colocando vinte peças de ouro sobre o balcão.
A recepcionista ficou um tanto surpresa com a resposta. Não era comum os corvos de um ranking tão elevado como esse negarem seus privilégios para seus discípulos, mas, como não era papel dela persuadir, apenas concordou, guardou o dinheiro e agendou um teste de admissão para Lucet. Kaella se sentou num dos bancos de pedra negra e retirou um livro de sua bolsa dimensional, que prontamente começou a folhear.
— Siga pela porta ao lado do balcão pequeno corvo — ela indicou com um aceno da cabeça — lhe desejo boa sorte.
Lucet deu um aceno da cabeça como agradecimento quando olhou para Kaella, ela apenas respondeu com um aceno da cabeça e ele seguiu para porta. A recepcionista apertou um botão escondido no balcão e a porta se arrastou para o lado, revelando um espaço luminoso que ele só pode assumir ser um portal, onde ouviu ecoar:
— Avaliação de admissão, arena três — A voz disse — por favor adentre o espaço de transporte.
Lucet obedeceu e entrou. Um zumbido elétrico depois, ele havia desaparecido.