Os Contos de Anima - Capítulo 25
Instantes após o término do exame, Lucet chegou à recepção. Desta vez se viu um tanto surpreso, pois além de sua mestra e a recepcionista, lá também se encontrava outro corvo que desconhecia sentado ao lado dela, e mais três outros corvos em frente a ela segurando o que parecia a marionete que acabara de enfrentar. Apesar de escondido sob as máscaras, suas vozes soavam empolgadas enquanto tentavam explicar para a claramente desinteressada Kaella a proeza que seu discípulo tinha alcançado.
— Você entende o que estamos dizendo? Seu discípulo fez algo inédito! — Um deles falou.
— Exatamente — O outro continuou — De alguma maneira que não podemos explicar, sem o auxílio de qualquer equipamento mágico, ele conseguiu não apenas derrotar a marionete, mas a desabilitar completamente.
— Você tem que divulgar para o ninho o método de como ele conseguiu isso! — o terceiro demandou — É alguma técnica nova? Algo que desenvolveu que permite enxergar através de estruturas? Um bio-equipamento encantado indetectável?
Kaella apenas os encarou sem dizer uma palavra. Ela não tinha a menor intenção de revelar o segredo do menino, muito menos para o Ninho. Se descobrirem a fonte deste poder, é bem possível que eles usariam todos os métodos disponíveis na organização para extraí-lo do garoto, e se não conseguissem, iriam usar qualquer método que fosse para torná-lo uma arma da organização e se isso também não funcionasse, eliminá-lo certamente seria a alternativa mais agradável.
Apesar de desagradável, a Alfae jamais poderia dizer que esse método estava fora de cogitação, afinal, ela mesma já foi adepta da crueldade na frase “Uma arma funcional fora de minhas mãos é uma arma nas mãos do inimigo” em seus longos anos de trabalho na Lybra. Notando que Lucet já estava se aproximando, Kaella apenas disse.
— Não é nenhum segredo para falar bem a verdade — Ela respondeu — Qualquer mago competente é capaz de ler o fluxo da mana do oponente, e um brinquedo desses com três núcleos de manatita dentro de si deve emanar uma boa quantidade de mana destes pontos.
— Somem isso ao conhecimento que mencionei e me digam — Ela disse num tom sarcástico — vocês acham mesmo tão surpreendente que ele tenha conseguido explodir os núcleos com uma sobrecarga de mana? Se esse é o nível de habilidade dos ouros do Ninho, então creio que não será tão difícil meu aluno alcançar no mínimo o rank platina no exame de rankeamento.
Seus corpos tremiam de raiva, porém, silêncio era tudo que eram capazes de expressar. Não tinham coragem o bastante para confrontar alguém do rank dela, afinal, uma palavra dela e eles poderiam ser expulsos ali mesmo, portanto, levando em conta os benefícios e a proteção que o Ninho provinha para seus membros, eles ficaram quietos e apenas se removeram dali, saindo pela porta atrás da recepção.
Lucet finalmente alcançou sua mestra, como estava sem sua máscara, e mesmo que estivesse com ela, para Kaella, sua expressão era facílima de decifrar. A Alfae notando a enxurrada de perguntas que estava prestes a acometê-la, apenas disse para o garoto que estava um tanto confuso.
— Não se preocupe — ela disse — me dê sua máscara, vou repará-la.
Ele acenou com a cabeça e retirou do seu cinto dimensional a máscara partida e os fragmentos e os entregou nas mãos da elfa. Ela primeiro passou seus dedos luminosos sobre os fragmentos, depois tocou a máscara, injetou mana e em instantes fios de mana começaram a disparar da máscara. Os fios se conectaram com os fragmentos e, feito um elástico esticado, voaram na direção da máscara instantaneamente se conectando com ela. Cada pedaço que conectava se fundia ao todo como se nunca tivesse sido quebrada, e desse jeito, o objeto foi rápida, e completamente, restaurado a perfeição.
Kaella então entregou a máscara para o garoto, que prontamente a pôs no rosto, e indicou com a cabeça para que ele fosse para o balcão, o que ele fez. Ao chegar lá, a recepcionista disse.
— Ora ora pequeno corvo — ela disse sorrindo — vejo que sua habilidade foi reconhecida pelo ninho, meus parabéns.
— O..Obrigado, n..não foi nada de mais — Lucet respondeu um tanto encabulado.
Tendo uma mestra como Kaella, que não só era uma maga extremamente poderosa mas também alguém muito bela, Lucet nunca prestou muita atenção na aparência de qualquer mulher, mesmo porque seu treino na floresta e suas raras visitas a Elysium raramente o permitiam tal “luxo”. Mas agora que estava conhecendo um lugar novo cheio de experiências interessantíssimas, ele não pôde deixar de notar que a recepcionista Alfae era muito charmosa.
Apesar de não estar no mesmo nível de aparência de Kaella, ela possuía uma beleza diferente, mais receptiva e agradável, diferente da de sua mestra que era seria e misteriosa, porém atrativa. Sem perceber, ele já se via um tanto mais dócil e de guarda baixa diante da elfa, e ela, que era experiente nos assuntos sociais, rapidamente notou o padrão e com um sorriso doce e a voz especialmente gentil resolveu provocá-lo.
— Ora pequeno corvo, não diga isso — ela falou rindo — Se os outros que tentam se juntar ao ninho ouvissem suas palavras, tenho certeza que ficariam muito bravos viu? E dentre eles muitos são assassinos, criminosos e tipos da pior espécie, então toma cuidado com o que fala tá?
— Argh! não! eu… eu não quis ofender ninguém… eu só… — ele tentou se defender.
A Alfae gargalhou e pôs uma mão sobre sua cabeça, mexendo um pouco em seu cabelo, bagunçando-o gentilmente.
— Relaxa — ela disse sorrindo — só estou brincando.
Lucet apenas acenou com a cabeça em silêncio. Kaella que observava tudo não conseguiu conter um suspiro enquanto pensava “Como guerreiro ele cresceu muito nesses últimos anos, mas as suas habilidades sociais…Aiai… Vejo que neste aspecto minha educação falhou um tanto, tenho que revisar isso depois.” Ela então pegou um outro livro de sua bolsa dimensional, guardou o anterior e começou a ler.
Enquanto isso, a recepcionista Alfae começou a instruir o garoto.
— Como já acordado com sua mestra — ela disse — Você irá realizar agora o exame de rankeamento, e como uma outra corvo está prestes a realizá-lo também, foi decidido pela administração que ambos irão realizá-lo juntos. A comissão examinadora irá informar das regras específicas.
— Rankeamento? O que é isso? — Lucet questionou.
Para respondê-lo, a recepcionista sacou de uma gaveta da recepção um pequeno objeto no formato de um corvo feito de pedra e encaixou num buraco do mesmo formato. Ao encaixar, o objeto reluziu e então uma tela luminosa flutuante foi projetada na frente do garoto.
— Os rankings são os níveis de reconhecimento e autoridade dentro do Ninho — a Alfae explicou — Cada nível recebe um metal como atribuição e um nível de autoridade correspondente, com exceção de alguns casos especiais onde pessoas de ranks mais altos ou mais baixos recebem autoridade incompatível com ranking.
Ela então apontou para o título mais baixo da tela e começou a subir com seu dedo enquanto explicava. A tela demonstrava como tal:
“Ferro, Nível de Autoridade A1 — Permite transações com o Ninho e a tomada de missões.”
“Bronze, Nível de Autoridade A2 — A1+ Permissão para contratação de especialistas do Ninho para adquirir informações.”
“Prata, Nível de Autoridade A3 — A2+ Permissão para uso de instalações de Combate, Arquivos e Centro de Pesquisa do Ninho.”
“Ouro, Nível de Autoridade A4 — A3+ Autoridade para avaliar, angariar e recomendar novos membros.”
“Platina, Nível de Autoridade A5 — A4+ Autoridade para investigação e punição referente a questões internas do Ninho.”
“Obsidiana, Nível de Autoridade A6 — A5+ Autoridade para mobilização da Nero.”
“Diamante, Nível de Autoridade A7 — A6+ Autoridade para declarar guerra.”
— É claro que — ela explicou — quanto mais alto seu ranking, maior seu poder dentro do ninho, mas igualmente altas são suas responsabilidades dentro da organização. Agora, vamos ao seu exame. Entre na porta ao lado que ela lhe transportará para o local do seu exame.
Lucet ascentiu com a cabeça e então se dirigiu a porta de pedra que prontamente se arrastou para o lado e revelou o portal luminoso onde o garoto pisou e foi transportado quando ouviu a mensagem.
— Avaliação de rankeamento, arena cinco — A voz anunciou — Solicitamos que adentre o espaço de transporte.
Um zunido elétrico e uma viagem luminosa depois, Lucet saiu do portal e se deparou com o novo ambiente. Ao contrário da arena anterior, que era basicamente um coliseu, esta era um espaço expressivamente diferente. No primeiro momento ele não conseguiu ver nada e sentia muito calor, seus ouvidos eram inundados com estranhos sons e seu olfato já estava a muito sobrecarregado com aromas do lugar, mas após andar um pouco e encontrar alguns raios de luz, ele pôde distinguir a raiz de seus problemas sensoriais.
Ele estava cercado por flores, árvores e plantas de todas as espécies e cores. Sobre e sob, ao lado, a frente, atrás e ao redor delas moviam-se insetos e pequenos mamíferos que viviam suas pequenas vidas que para ele não tinha o menor sentido naquele momento se não atrapalhar seu caminho e representar um possível perigo. Neste lugar, felizmente, sombra era a coisa mais abundante, portanto, se precisasse se movimentar para o plano sombrio, seria algo bem fácil.
O garoto continuou andando em linha reta com uma certa dificuldade. Ocasionalmente seus membros se prendiam em vinhas, cipós ou galhos que ele era forçado a cortar para prosseguir. Em outros momentos era a fauna local que lhe incomodava, seja por picada, golpeada, mordida ou até mesmo empurrões. “Tudo aqui parece querer tirar um pedaço de mim, que droga de exame é esse? Um teste de como ser um bufê na selva?” ele pensou enquanto tirava um centopéia de um de seus braços e pendia a cabeça para desviar de um besouro que voava na direção do seu rosto.
Neste exato momento Lucet não pode deixar de agradecer centenas de vezes Kaella em sua mente. O manto que lhe dera anos atrás nunca antes lhe tinha sido tão útil, ele era durável contra qualquer ataque das feras e vermes do lugar, saindo depois de cada ataque intacto, e seu encantamento de climatização interna estava salvando sua vida. Nos anos que o usou como coberta para se proteger do frio, sempre dormiu aquecido, porém, nunca exatamente experimentou outros climas adversos, portanto, nunca pôde confirmar a extensão da efetividade do objeto. Já neste local abafado, seu corpo estava confortável e refrescado mesmo debaixo do sufocante ar quente dessa área que para todos os fins só poderia ser chamada de selva.
Após vários minutos de se destrinchar de plantas e desviar de animais o garoto encontrou uma clareira de grama-baixa e brilhante. O lugar era agradável, bem iluminado, continha alguns frutos comestíveis que rapidamente reconheceu e uma grande fonte de pedra branca que jorrava água cristalina que, até mesmo a distância, era possível notar que ela estava pronta para refrescar e restaurar o ânimo de qualquer que bebesse de suas águas.
Lucet hesitou em entrar, pois este lugar poderia muito bem ser uma armadilha, porém, após passar mais alguns minutos verificando os arredores do lugar e também usar seu olho do tirano para escanear o local por formas de vida ou qualquer atributo que pudesse lhe causar dano e ver que não havia qualquer perigo, ele entrou e imediatamente foi até a fonte de água para beber.
Ele usou as mãos em formato de concha para provar. Um alívio lavou seu corpo ao sentir o líquido refrescante descer por sua garganta. O garoto então passou a mão sobre a joia de seu cinto e retirou alguns cantis que prontamente encheu de água e armazenou, depois disso, se sentou ao lado da fonte e aguardou novas instruções.
Já faziam trinta minutos que havia entrado neste espaço e até agora nenhuma notificação ou explicação do que devia fazer neste exame. Julgando melhor poupar suas forças, ele aproveitou para beber mais água e comer alguns dos frutos que haviam por ali. E assim, mais meia hora se passou enquanto ele descansava. Ele achou que teria de esperar mais antes que qualquer coisa interessante ou informativa acontecesse, porém, para sua surpresa, ele ouviu uma voz feminina.
Não era a voz de anuncios que estava acostumado a ouvir, mas sim uma voz completamente nova. Sem pensar duas vezes Lucet sacou a garra de seu cinto dimensional e mergulhou nas sombras debaixo da fonte, observando o espaço da clareira para ver quem era a intrusa. Um tanto dentro das suas expectativas, ele viu a pessoa entrar vestida tal como ele, uma máscara e um manto sobre seu corpo, nada que exatamente revelasse qualquer informação, porém, a voz soava totalmente entusiasmada de encontrar o lugar. A figura se dirigindo diretamente para a fonte.
— Ai finalmente! Uma clareira!— ela disse — já não aguentava mais andar por essa floresta. Ugh, todos aqueles insetos e animais que não me deixavam em paz e aquelas plantas que ficavam me prendendo de dois em dois minutos, que coisa! Aqui pelo menos posso descansar, e ainda mais, tem água fresquinha e umas frutas para comer, que sorte!
Lucet não tinha certeza se ela era sorrateira e já havia realizado verificações sem ele notar ou se ela era simplesmente estúpida de não realizar qualquer verificação ao entrar num lugar tão conveniente, mas, como ele não podia apenas observar para sempre e para evitar qualquer perigo, decidiu atacar. Para não gastar mais energia se mantendo no plano sombrio, ele saiu das sombras e no instante que o fez agarrou os tornozelos da figura, os puxou e a derrubou.
A figura reagiu rápido e antes mesmo que seu corpo tocasse o chão ela jogou as mãos para o chão e libertou uma de suas pernas antes de disparar um chute na direção do rosto do garoto. Ele virou a cabeça e desviou do ataque, agarrando a perna dela e a puxando mais para perto antes de usar a garra para tentar lhe cortar a máscara. Por alguma razão, ele sabia que se tentasse atacar o manto que ela usava estaria desperdiçando seu tempo, pois além de encantado, ele parecia extremamente resistente.
Ela reagiu ainda mais rápido que antes e desviou do ataque ao usar sua perna para golpear as costas do garoto, forçando-o a ir para o chão. Ela se desvencilhou dele e sem o dar tempo para se levantar, mirou outro chute vertical em sua cabeça. Lucet rolou para o lado e desviou do ataque antes de se apoiar nas mãos, dobrar seu corpo e então soltar um chute com os dois pés no tronco da figura. Ela tentou desviar, mas como viu que não conseguiria fazer isso a tempo, ergueu seus braços na frente do corpo revelando um par de manoplas metálicas que, no instante do impacto, brilharam e absorveram todo o dano do ataque, reduzindo um chute duplo a um mero empurrão que a fez cambalear para trás alguns passos.
Lucet usou a oportunidade para se levantar e disparar na direção dela. Ela, porém, sacou de algo que ele interpretou como um cinto dimensional idêntico ao seu uma lança de corpo negro cravada com uma jóia vermelha no meio e uma lâmina avermelhada e investiu contra ele, que rapidamente desviou para o lado e tomou um tanto de distância antes de declarar indignado.
— Uma lança!? Isso não vale! Corvos não usam lanças!