Os Contos de Anima - Capítulo 27
Devido a imensa quantidade de plantas que ocupavam aquela arena, até mesmo sair da clareira foi todo um trabalho. As plantas eram tantas, tão variadas e tão densamente compactadas que qualquer tentativa de usar o passo do corvo era impossibilitada, por isso, o par foi forçado a andar devagar, ora pisando por galhos densos como braços caídos no chão, ora saltando por raízes grossas como seus troncos e ainda sendo forçados a subir algumas árvores particularmente altas quando prosseguir pelo solo era impossível por causa de ninhos de feras venenosas ou armadilhas naturais de areia movediça.
O ambiente não tinha qualquer tipo de rota pré-estabelecida. Qualquer caminho ou direção que tomassem era única e eles não tinham a menor idéia do que os aguardava ao desafiar esse lugar exceto de que qualquer deslize poderia lhes custar caro. Eles tiveram de desviar de serpentes que de tempos em tempos pulavam de buracos no chão, nas árvores ou simplesmente imitavam raízes antes de partir para o bote. Insetos também eram parte da formidável e perigosa diversidade, a grande maioria deles venenosos, e quando não, possuindo algum outro tipo de habilidade que lhes causava problema.
— Abaixa! — Lucet gritou de repente.
Ele pôs a mão sobre o ombro da garota e forçou-a para baixo o mais rápido que pôde, exatamente a tempo de conseguir desviar de um vulto que passou por cima de suas cabeças antes de aterrissar numa árvore. Era uma espécie de esquilo, mas, ao invés de dentes protuberantes, tinham uma boca cheia de dentes afiados que certamente arrancariam-lhes um pedaço do corpo com facilidade. Seu pelo era verde-escuro e estava eriçado, seus membros eram interligados por uma membrana verde clara que brilhava a todo momento enquanto seus olhos vermelhos como rubis reluziam com sede de sangue. Sofia apontou para ele, sua voz séria, porém, levemente trêmula do susto.
— O que é essa coisa!?
Ela estava com medo, pois apesar de ser um bicho pequeno, ele não era uma fera comum, mas sim uma fera mágica. Se as fileiras de dentes já não fossem preocupantes, a velocidade assombrosa que demonstrara e quaisquer outras habilidades desconhecidas certamente seriam. Lucet que, respirava um tanto apressado devido ao ambiente e a súbita necessidade de esforço, respondeu.
— Isso é um Tempesquilo — ele disse com sua voz séria.
— Tempesquilo? — ela perguntou preocupada — Porque ele tem esse nome?
— Não — ele respondeu chacoalhando a cabeça enquanto lenta e cuidadosamente se levantava e tentava ajudar a garota a fazer o mesmo, a puxando pelo braço — Ele tem esse nome pelo que vai acontecer daqui a pouco se a gente não dar o fora daqui agora!
— Huh? Do que está falando? O que vai acontecer? — Ela questionou confusa.
Lucet se apressou, sua mente correndo para encontrar uma saída da situação que estava por vir. Nos treinamentos que fez com Kaella nas florestas do vale de Elysium, o garoto teve diversas oportunidades e problemas ao interagir com feras mágicas. Uma de suas piores experiências foi justamente com esses diabretes em tamanho compacto conhecidos como Tempesquilos.
Presas e garras afiadíssimas, capacidade de planar com suas membranas conectoras, a habilidade mágica de usar mana do ar para ampliar seus tempos de voo, acelerar e realizar manobras aéreas somadas a um corpo anormalmente resistente a impactos para seu diminuto tamanho, apenas um desses pequenos já era um enorme problema de enfrentar. Habilidosos em táticas de bater e correr, era difícil de acertá-los enquanto voavam e quando estavam perto era ainda mais trabalhoso de enfrentá-los, pois era impossível de ignorar seus ataques, porém, eles tinham algo ainda pior ao seu favor, e foi exatamente essa característica que Lucet temia quando começou a puxar Sofia com ainda mais força para correr e sair dali quanto antes.
Sofia que ainda não confiava totalmente no garoto firmou os pés e se recusou a andar, dizendo.
— Eu não vou dar um passo enquanto você não me explicar o que está acontecendo.
— A gente não tem tempo para eu te explicar, anda logo! — ele insistiu puxando-a pelo braço com mais força.
Ela, porém, fincou os pés no chão e desvencilhou seu braço do garoto, totalmente decidida em ficar ali enquanto ele não explicasse tudo. Enquanto isso, o esquilo apenas observava o par, ocasionalmente olhando para as árvores e plantas, suas orelhas se movendo enquanto detectava sons vindos do ambiente ao redor e emitia alguns grunhidos ocasionais. Lucet notando isso e percebendo as centenas de sons da floresta finalmente se irritou, agarrou os ombros da garota com força e disse.
— Escuta aqui — ele falou por entre os dentes — esse bicho desgraçado além de ser dificílimo de derrubar, muito rápido e causar um baita estrago, tem um problema ainda maior de enfrentar!
Os sons aumentaram cada vez mais, alguns pares de pequenos olhos começaram a surgir por entre as folhas e raízes, brilhando como lanternas sanguinárias, suas vistas travadas no par.
— Ele nunca andam so… merda — ele disse antes de parar abruptamente e olhar ao seu redor.
— So oque? — ela perguntou assustada e se virou, dando de cara com a mesma visão que ele —Ai merda.
Por onde quer que olhassem, conseguiam enxergar dezenas de pares de olhos vermelhos os encarando. Por entre as folhas, as raízes, os troncos, os caules e os buracos, por onde quer que seus olhos corressem buscando uma rota de fuga, um mar de olhos rubis os aguardava. O ambiente estava silencioso e a tensão no ar só crescia ao passo que seus corpos tensionavam mais e mais enquanto o par se preparava para o inevitável combate.
Lucet agarrou o cabo de sua lâmina com força enquanto sua outra mão passava por cima da jóia vermelha de seu cinto procurando alguma coisa que pudesse os tirar dali. Como o exame não restringia o uso de equipamentos ou poções, ele tinha uma liberdade muito maior com seus recursos, porém, mesmo que bem preparado para combate, nunca imaginou que a prova seria a captura de uma fera mágica num ambiente desses. Ele estava um tanto familiarizado com ambientes de floresta pois vivia em uma, mas, lá era muito mais ameno e menos perigoso do que aqui, portanto sua vantagem era reduzida.
Seu equipamento dimensional tinha de um tudo dentro. Poções, metais, ingredientes, ervas, tinta, livros, cadernos, trocas de roupa, mas, infelizmente, ele não conseguiu analisar tudo a tempo quando as feras se moveram. Lucet e Sofia começaram a correr desesperadamente pela selva, ocasionalmente desferindo ataques para todos os lados enquanto desviam e tentavam escapar.
Sua mente correu por todas as suas lições, procurando alguma resposta para o problema, mas nada vinha. Ele olhou para todos os cantos, procurando qualquer coisa que lhe ajudasse ou qualquer abertura para fugir, mas nada parecia ser útil, era como se eles estivem encurralados num corredor e sua única escolha fosse correr para frente enquanto das paredes saltavam cada vez mais obstaculos e oponentes.
“Caramba! Se continuar assim vamos morrer!” ele pensou angustiado “Não tem nenhuma saída, nada que eu possa usar e nem ao menos dá para eu usar o passo do corvo porque o eu não conheço nada desse lugar, e voltar para clareira apenas para passar por aqui de novo não é uma opção…” Ele então olhou para a garota ao seu lado, a coitada igualmente desesperada por uma saída como ele. “Tch!” ele pensou irritado “Se essa idiota da lança invisível tivesse me escutado, a gente teria conseguido escapar!”
Folhas voavam num formato de vórtice enquanto os tempesquilos atacavam. Suas garras e dentes brilhavam enquanto seus corpos disparavam como se disparados de estilingues, atravessando de um canto a outro em questão de instantes. Lucet, apesar dos seus melhores esforços, não conseguiu contabilizar todos, mas com o que foi capaz de contar, haviam pelo menos umas três dezenas de feras os atacando.
A sorte do par era que seus mantos, que eram para sua sorte, de excelente qualidade facilmente eram capazes de bloquear qualquer ataque, mas infelizmentes, não eram absolutamente impenetráveis pois não cobriam todo o corpo a não ser que eles ficassem totalmente parados e escondidos em baixo dos artefatos.
Nessa altura, os pensamentos do garoto estavam prestes a considerar abandonar a incomoda e teimosa garota à própria sorte e dar o fora dali, porém, neste instante uma luz surgiu em sua mente “Espera… Invisível? Será que…” Um largo sorriso brotou em seu rosto enquanto uma fagulha de esperança se acendeu em seu peito.
— Ei Sofia — ele disse, seu folêgo apertado enquanto corriam — Você disse que é a sua magia que torna sua lança invisível né?
A garota grunhiu um tanto quando ouviu a pergunta, ficando um tanto confusa.
— Sim, eu disse, porquê?—ela perguntou.
— Se você consegue tornar sua lança invisível… — ele disse sugestivamente.
Uma leve onda de surpresa atingiu a garota e, instantes depois, ela desatou a rir, sua voz energética e alegre.
— Hahaha é claro! — ela disse contendo seus risos — Como pude esquecer isso!? Claro, consigo sim! — Porém, sua voz logo foi ficando mais séria — Mas, tem um problema…
— Qual?
— Fazer minha lança, que é algo já feito com materiais e encantamentos que facilitam a aplicação da minha magia, ficar invisível é fácil — ela explicou — Mas tornar nós dois invisíveis? Eu até consigo, mas não por muito tempo.
— Quanto tempo você consegue nos deixar invisíveis? — ele perguntou, sua mente já formulando planos.
— No máximo trinta segundos se eu quiser manter minha mana num nível bom para utilizar em batalha mais tarde — ela respondeu — agora se quiser apenas focar em fugir, consigo nos deixar invisíveis por até dois minutos.
— Trinta segundos… — ele disse pensativo — Bem, precisamos os dois estar aptos para combate, então vamos dar um jeito nesses trinta segundos.
Os olhos rubis zuniam pelo ar, parecendo minusculos faróis escarlate. Os ruídos vindo dos arredores começaram a aumentar e vendo isso, Lucet percebeu um problema e logo agiu ao dizer.
— Me segue, é agora ou nunca! Eles estão vindo com reforços! — ele comandou — Vou abrir o caminho e você se prepara para nos cobrir com a sua magia ao meu comando.
Ela respondeu com um simples aceno da cabeça e o seguiu. Lucet disparou na direção indicada pela seta vermelha no seu pulso, no seu caminho, diversas vinhas e cipós tão grossos quanto seus braços que, felizmente, eram facilmente cortados pela lâmina extremamente afiada da garra.
Em sua arrancada ele não pode desviar dos ataques de cinco esquilos que saltaram dos galhos prontos para lhe arrancar uns pedaços. Nesse momento ele fez questão de agradecer Kaella mentalmente ao usar o manto que vestia sobre seus ombros para cobrir o braço e usar para bloquear os ataques. A força das mandíbulas e dentes dos Tempesquilos não eram nenhuma brincadeira, mesmo com seu manto impedindo que perfurassem sua carne, a pura força da mordida das pequenas feras as manteve agarradas ao manto, causando um pouco de dor em seu braço e até algumas marcas vermelhas. Lucet agiu rápido ao ignorar a dor e usar a oportunidade para golpeá-los com sua lâmina rasgando suas membranas, fazendo-os guinchar de dor e cair no chão, imóveis.
Elysium tinha uma política de cooperação com as feras mágicas do vale bastante estrita. Era totalmente proibido matar qualquer fera, mágica ou não, com exceção dos casos de auto-preservação. Quando Lucet teve de treinar com Kaella contra diversas feras mágicas, ele, que claramente não estava em verdadeiro perigo mortal, teve de aprender a como lidar com a fauna explorando suas fraquezas de formas não-letais, desabilitando-as. Quando ele teve de enfrentar os Tempesquilos no vale ele aprendeu que a membrana conectora que ligava os membros dos esquilos era uma excelente condutora de mana, e exatamente por isso, continha uma alta concentração de nervos para melhorar o controle desse fluxo de energia e que, quando danificados, causavam uma dor extrema para o animal a ponto de desmaiá-los quase instantaneamente. Na época, Lucet em seguida tratou os ferimentos dos animais a mando de Kaella, mas, na precária situação onde se encontrava ele não tinha tempo para isso, portanto, apenas murmurou algumas desculpas e seguiu correndo com Sofia em seu encalço.
Sofia que até agora apenas observava e aguardava o comando, sua magia já preparada para agir, ficou admirada na rapidez da tomada de decisões, a inteligência e a força do garoto. Ela momentos antes já tinha praticamente entrado em pânico sobre o que fazer, especialmente porque nunca tinha enfrentado uma situação como essa, mas o garoto não apenas a acalmou como também analisou suas habilidades, formulou um plano com elas e então preparou um escape para ambos. Além disso, ela reparou que ele tinha uma boa experiência de combate, ambos na luta contra feras, que demonstrou ao lidar com os tempesquilos e ao saber seus padrões de combate, como também contra oponentes humanoides, que demonstrou quando a emboscou e facilmente a derrotou na clareira.
“Humph!” ela pensou um tanto frustrada “Não gosto dele e ele certamente é muito suspeito… mas eu tenho que admitir que ele é bom!” Até aquele momento, Sofia, que aprendeu muito de suas habilidades dentro de sua família e mais tarde sob a rígida, metódica, e especialmente, segura tutela do Corvo das Chamas, nunca exatamente teve muitos desafios.
Ela sempre aprendeu com muita facilidade a arte de combate com lança da família e seu talento como invocadora era tão alto que com meros oito anos, e em sua primeira tentativa, ela conseguiu realizar seu contrato com Mugetsu que, apesar de ter um acordo com a família, ainda tinha o direito de rejeitá-la caso não tivesse um talento adequado.
Todo esse talento e potencial fizeram que ambos a família e seu mestre investissem muito em seu, absolutamente, seguro desenvolvimento. O que fez com que seu julgamento diante de situações perigosas fosse um tanto desfalcado. Ela, que observava as ações e habilidades do garoto correndo à sua frente, se pegava imaginando que tipo de treinamento ele teve que o tornou tão forte mesmo ele sendo tão novo.
Enquanto ela divagava, os Tempesquilos dispararam atrás deles como um enxame de gafanhotos verdes deixando apenas vultos coloridos enquanto pulavam de ponto em ponto furiosamente os perseguindo como uma interminável tempestade de luzes.
O par não tinha muita escolha senão usar o ambiente para tentar obter alguma vantagem. Quando as feras chegavam perto demais eles desviavam e se escondiam em árvores ou mergulhavam no chão para escapar do avanço desenfreado das feras verdes. O comando ainda não tinha sido dado, por isso, Sofia estava cada vez mais nervosa, porém, quando questionou Lucet, ele apenas levantou seu pulso para ela, mostrando a seta vermelha que apontava diretamente para frente deles que estava gradativamente se tornando cada vez mais brilhante ao ponto que já parecia que o par estava carregando duas tochas de luz escarlate nos pulsos.
— Só mais um pouco — ele disse entre fôlegos — Aguenta só mais um pouco! A gente só vai ter uma chance!
Sofia ficou um tanto confusa com a afirmação, porém, não teve escolha se não acreditar nele agora. Se tentasse ficar emburrada como fizera antes, provavelmente seria devorada pelos tempesquilos antes que pudesse fazer sua primeira reclamação, por isso, ficou quieta e apenas o seguiu. Eles continuaram correndo até o ponto que parecia que as bússolas em seus pulsos iam explodir e, nesse exato momento, Lucet deu um berro com toda sua força que ecoou pela mata e foi prontamente seguido de inúmeros guinchos dos diabretes verdes atrás de si.
As bússolas brilhavam como estrelas, iluminando toda a proximidade com sua luz ao passo que o par pode avistar uma caverna poucos metros à sua frente. A entrada da caverna brilhou com uma forte luz branca seguida de um zunido elétrico que preencheu o ar e tornou tudo silencioso. Os Tempesquilos claramente amedrontados com o fenômeno desistiram de persegui-los e se viraram para fugir. Lucet agiu rápido e se virou, abruptamente agarrando os ombros da garota e gritando enquanto jogava seus corpos para o chão.
— AGORA! — Lucet comandou.
Um pulso de energia colorida disparou do corpo da garota e os envolveu quase instantaneamente, e, antes que pudessem atingir o chão, o par havia desaparecido. Frações de segundos depois um rugido que partiu o ar e explodiu como um trovão soou e chacoalhou toda a área antes de uma grande cabeça de tigre luz voar em linha reta na direção do par, que conseguiu desviar por meros centímetros deitados no chão, e das feras verdes. Um silêncio absoluto tomou conta da floresta.
Não se ouvia nenhum guincho dos tempesquilos ou som de vida animal e até mesmo a própria floresta parecia segurar seu fôlego diante do majestoso e absoluto poder da fera de luz. O par mal respirava. A garota mantinha seus olhos fechados enquanto o garoto, após alguns momentos finalmente teve coragem de levantar a cabeça e observar o impacto do poder que instantes atrás quase tomara suas vidas, e quando o viu, tremeu por inteiro por um segundo antes de chacoalhar Sofia, fazendo-a abrir os olhos e ao olhar o cenário quase soltou um berro horrorizado que foi rapidamente suprimido pela mão de Lucet que a silenciou enquanto usava a outra para fazer um simbolo de silencio pondo seu indicador sob a ponta do bico da mascara.