Os Contos de Anima - Capítulo 30
Um mês depois que Lucet passou pelo exame de admissão do Ninho e realizou sua avaliação de ranqueamento, Kaella o chamou para uma conversa em sua casa após uma manhã de treino. O garoto já havia visitado a casa algumas vezes e inclusive sabia que poderia chegar até lá com o passo do corvo, pois tinha marcado alguns lugares perpetuamente assombreados dentro da estrutura que poderia utilizar para o transporte, porém, ele se abstinha de se transportar diretamente para a casa de sua mestra pois achava que era um tanto invasivo fazer isso a não ser que fosse absolutamente necessário. Por esse ponto, ele decidiu chegar até lá usando um ponto próximo da casa para depois caminhar para o local.
Neste dia a Alfae não tinha aulas para lecionar, portanto era um dia livre para descanso. O treino que ela passou para o garoto foi apenas uma revisão de suas habilidades e algumas notas sobre o seu desempenho no exame. Ela solicitou ao ninho que lhe passasse uma cópia da gravação da avaliação para ela poder estudar e basear seus futuros treinamentos a luz das fraquezas e insuficiências demonstradas pelo garoto durante o combate.
Ela gastou todo um mês para revisar todos estes pontos e apenas neste dia ela finalmente estava um tanto satisfeita com o esforço Lucet estava demonstrando para melhorar. Ela testou seu julgamento estratégico e de combate durante essa última semana e, após esse tempo de correções, ela o deu o resto do dia para descansar após o treino matinal.
Lucet emergiu das sombras num canto de uma casa próxima ao casarão de Kaella e andou até o lugar. Ao chegar se deparou com a vista familiar da moradia de sua mestra que era um estranho, porém agradável, aglomerado de árvores que pareciam crescer única e exclusivamente para formar aquele lugar. Nem um corte ou deformação, nada de construções complexas ou estruturas. A casa de sua mestra era totalmente formada pelos troncos e galhos das árvores, e mesmo assim, era muito mais bela e tranquila aos olhos do que muitas outras moradias igualmente impressionantes da vila que foram feitas por artesãos, engenheiros e mestres Gnoma.
O garoto se aproximou e quando chegou à porta ele parou por um instante para admirar a estrutura. Toda vez que chegava perto do local, se lembrava da explicação da Alfae sobre a existência de sua moradia. Ela explicou que esta casa foi construída da maneira mais natural possível com a ajuda de uma mestra Faeram que utilizou suas habilidades e maestria das artes druidas para acelerar e “guiar” as árvores a existirem daquela maneira.
Ele não tinha um conhecimento tão profundo sobre o druidismo dos Faeram mas sabia apreciar seu valor e seu poder, especialmente ao considerar que, quando no terreno certo, suas habilidades tinham um potencial devastador. Algumas vezes Lucet até chegou a considerar um estudo mais aprofundado do assunto, mas, depois de começar a integrar a arte da forja dos Gnoma com sua própria arte arcana, ele acabou desistindo da idéia. Certamente seria interessante aprender muito, mas se tentasse de tudo sem adquirir maestria em nada, seria apenas um usuário medíocre de várias artes, porém, mestre de nenhuma. Além disso, estudar a manipulação da terra, o estilo dos corvos e a arte da forja já eram bem mais do que alguém de sua idade usualmente estudaria, portanto, Kaella o aconselhou a focar apenas nestas três disciplinas.
Ele prosseguiu a dar alguns golpes leves com os dedos na madeira. Alguns instantes depois ele ouviu passos e em momentos a porta se abriu dando a figura de Kaella que, neste dia de descanso, estava vestida mais casualmente. Seu cabelo avermelhado feito rubi estava solto com algumas mexas a frente tocando suas clavículas que logo anunciavam a existência de um simples e leve vestido branco que chegava até seus joelhos, um cinto feito de couro trançado que segurava sua bolsa dimensional em sua cintura e uma sandália gladiadora de fios dourados que ia da parte de baixo de seus joelhos até seus pés, sua pele branca e levemente reluzente brilhando em contraste ao calçado metálico.
O vestido possuía finas alças nos ombros e deixava os braços bem livres e expostos à luz. Normalmente a Alfae vestia roupas de combate ou para estudos e viagens como túnicas, capas, sobretudos, botas, luvas e outros, fazendo com que o garoto, por muitas vezes, conseguisse ver apenas o rosto da elfa, por isso, ele sempre achou que a pele dela fosse clara e talvez até mesmo palida, mas, agora que pode observar com mais detalhe ele reparou que a pele não era clara, mas sim, reluzente devido à afinidade natural que a elfa possuía com a mana.
Sendo capaz de conter e manipular muito mais mana que a média, seu corpo possuía sempre uma aparência pura e luminosa, eternamente energizada. Às vezes, Lucet tinha a impressão de que a elfa não pertencia a este mundo já que sua aura, apesar de extremamente poderosa, era misteriosa e parecia conter diversos segredos dos Alfae e até mesmo de toda Anima dentro dela. Não sabia se isso tinha a ver com Lybra ou algo similar, mas apesar de extremamente curioso, seus instintos lhe diziam que não era uma boa idéia questionar a mulher sobre este assunto, portanto, ele nunca comentou sobre isso.
A roupa casual era, apesar de esteticamente simples, muito bonita. Com sua experiência como aprendiz de mago e aprendiz de ferreiro ele era capaz de notar que o tecido não era nada comum. Ele continha diversos encantamentos e o próprio tecido era quase que imperceptivelmente reforçado com metais raros e furtivos, dando uma proteção efetiva e bela para sua mestra. “Sempre preparada para tudo, até no descanso” pensou Lucet admirado ao soltar um leve risinho.
Kaella observou o garoto por um momento e acabou sorrindo também. Ela, mesmo sem observar diretamente os pensamentos do garoto, após tantos anos de convivência, já entendia um bocado da mente de seu aluno e era capaz de prever esse tipo de reação. A capacidade de análise do garoto sempre foi extraordinária para sua idade e ver que ele estava se desenvolvendo de uma maneira sólida lhe dava uma medida de orgulho.
— Lucet — disse ela ao abrir caminho para o garoto — Entre, temos muito a discutir sobre os próximos passos do seu aprenzidado.
Ele demorou um tanto a reagir, pois ainda estava fascinado pela qualidade das roupas de sua mestra, porém, ele logo despertou e respondeu.
— Com sua licença, mestra — disse ele educadamente ao adentrar.
As escadas a sua frente eram escuras e, após a porta ser selada com um ruído quase inaudível, logo se viu num breu total. Com um simples gesto da Alfae flores surgiram nos dois lados das escadas e desabrocharam, revelando seus núcleos luminosos que logo alumiaram a escadaria com um brilho dourado-esverdeado. As escadas eram, apesar de firmes e retas, um tanto estranhas para ele devido a serem feitas de raízes. Conhecendo a origem delas, ele ficava ainda mais intrigado de que espécie de poder e controle preciso eram necessários para fazer algo tão simples e tão impressionante.
Momentos depois o par adentrou por uma porta no final das escadas, chegando na sala de estar. Tal como as escadas e o resto da estrutura da moradia os assentos, mesas, estantes e armários eram feitos de madeira manipulada e faziam parte do único organismo que era aquele espaço. As únicas coisas não feitas de madeira eram talheres, pratos, copos e livros, os três primeiros feitos de metal e os últimos de diversos materiais.
Ela o indicou um assento que continha uma mesa de centro a frente com uma xícara de chá em cima de um pires. Lucet se sentou e imediatamente o cheiro forte e refrescante de hortaliças selvagens lhe atacou os sentidos. Ele conseguiu identificar alguns dos ingredientes da bebida fumegante e após realizar uma checagem de costume para encontrar possíveis elementos danosos, o garoto pegou a xícara por sua alça e elevou até os lábios para tomar um gole do líquido quente que quando desceu por sua garganta revelou um maravilhoso gosto de não apenas hortaliças mas também algumas frutas.
Para ensiná-lo na prática a importância de ter cuidado com alimentos, Kaella em alguns momentos tomou a liberdade de não apenas ensiná-lo maneiras rápidas de identificar venenos e drogas, antídotos práticos e efetivos para a maioria destes elementos, como também envenenou e drogou Lucet algumas vezes para fazê-lo ter o costume de nunca se descuidar. Uns chamariam seus métodos de barbáricos, mas ela tinha orgulho de chamá-los de efetivos. “Apenas com a experiência real e a dor é que se aprende de verdade” ela dizia quando ensinava algum assunto particularmente doloroso para o garoto.
Ela então tirou de sua bolsa dimensional uma cadeira de madeira que mais parecia um trono de tão decorada e detalhada que era. Ela tinha linhas que simulavam runas, outras que se tornavam em desenhos e símbolos. Ela era, tal como a dona, grande e imponente mas também, igualmente agradável aos olhos e, como Lucet bem notou quando a cadeira foi colocada perto da mesa onde ele de tempos em tempos bebericava seu chá, exalava uma fragrância muito próxima a daquela da floresta onde ele morava e isso o fez imediatamente relaxar bastante, ficando consideravelmente mais a vontade do que antes.
— Mestra, porque me chamou aqui? — ele questionou, um leve sorriso tranquilo em seu rosto.
— Depois de seu treinamento corretivo, e tendo em vista os resultados que você teve ao enfrentar os desafios do ninho — ela disse — eu decidi que seria uma boa idéia sairmos de Elysium e irmos para o continente de Lumina para que você possa frequentar o centro de toda pesquisa e desenvolvimento mágico da Lybra e aprender com os melhores da área, os Alfae.
— Mas mestra — ele disse dando uma leve sacudida com a cabeça — Você é uma Alfae e ainda por cima é a líder da Lybra, que é uma das organizações mais poderosas e que contém uma das maiores redes de informação de todo mundo e que, além disso, foi criada pela sua raça. Não acho que eu precise ir até Lumina para conhecer outros Alfae, você já pode me ensinar tudo que eu preciso.
Kaella sentiu um leve calor subir em seu rosto ao passo de que uma leve coloração rosada lhe coloriu as pontas das orelhas.
— Ora seu! — ela disse rindo — e você acha por um acaso que eu sou invencível é?
— Bem… — ele riu — até agora não vi ninguém que você tivesse medo de enfrentar ou que você capaz de te vencer.
Kaella pensou em vários argumentos para ensinar o garoto sobre poderes que superam os dela, mas ele não lhe deu a chance de falar quando disse algo que a fez inevitavelmente sorrir.
— Geralmente você assusta tanto os outros com seu poder que eles nem tem a chance de tentar lutar contra você — ele sorriu, orgulhoso — Se isso não te dá uma aura de invencível, eu não sei o que daria.
— Só porque eu pareço invencível, criança — ela disse sorrindo largamente — Não significa que eu sou. Existem alguns indivíduos que certamente podem me derrotar.
“Mas eu certamente fico muito feliz que pense assim de mim” ela pensou enquanto começou a detalhar.
— Por exemplo — ela falou — O monarca líder dos Alfae, ele certamente é mais poderoso do que eu, afinal de contas eu sou uma subordinada direta dele. A rainha dos Faeram também é uma oponente que não sou capaz de vencer, especialmente se eu tiver de lutar contra ela dentro do território da sua raça. O rei dos Gnoma, apesar de não ter um poder superior ao meu, pode me vencer em combate graças aos seus incomparáveis equipamentos encantados. Maximilian, o líder de Elysium, também é alguém que não posso competir, especialmente se ele conseguir me arrastar para dentro do seu espaço independente. Também tem a líder da congregação de puritas, a pontificia, ela é outra pessoa que certamente não sou capaz de derrotar, aliás, no caso dela, como o poder dela e diretamente oposto ao meu, acho bem dificil eu sair com vida de um combate contra ela considerando a quantidade massiva de poder que aquela mulher carrega.
— Mas então são poucas as pessoas que podem te vencer — ele retrucou — não tenho que me preocupar com meu ensino se você cuidar de mim mestra. Você é a melhor para mim.
— Não garoto — ela respondeu sorrindo chacoalhando a cabeça — Esses são só os exemplos extremos. Existem vários outros que podem me vencer, mesmo que não em combate. Existem diversos mestres de todas as raças que são formidavelmente superiores a mim em alguns aspectos específicos, e se considerar a existência dos Durza nesta equação, o número de oponentes que não sou capaz de derrotar só aumenta.
— Mas os Durza são quase imortais e eles só vivem no cinturão das ilhas perto de Inanis, não vale — ele debochou.
— Não significa que nunca irá encontrá-los — ela retrucou seria — O futuro é incerto e sua identidade por si só já é um risco. Nunca faz mal conhecer mais e ser capaz de se preparar para eventualidades com mais eficácia.
Para isso, o garoto não tinha resposta alguma e escolheu ficar em silêncio.
— E tem mais — ela continuou — Eu examinei seu sangue na avaliação de admissão do ninho com uma presa de xuanwu que me permitiu dividir seu sangue em dois e verificar a sua linhagem. Como imaginávamos, você é um meio-sangue filho de um Alfae e um humano. Se formos até Lumina, é possível fazermos pesquisas ainda mais avançadas no banco de dados no quartel-general da Lybra que nos permitirão, pelo menos, identificar quem exatamente é a sua mãe.
— Espera um pouco… — Lucet disse surpreso — Minha mãe é uma Alfae? Não é meu pai que é um da sua raça? Como sabe disso?