Os Contos de Anima - Capítulo 31
Kaella soltou um pesado suspiro, parecendo, por um instante, envelhecer centenas de anos ao passo que seus olhos perdiam um pouco de seu usual brilho encantador.
— Na noite em que decidi tomá-lo como discípulo e adotá-lo, Albus me contou sobre como você foi parar no orfanato — ela explicou.
Ela então narrou para o garoto o que o homem a havia explicado. Desde a parte da chegada súbita de seus pais feridos, os detalhes sobre eles que Albus conseguira memorizar e a rápida escapada que fizeram como se estivessem sendo perseguidos. Ela, porém, omitiu a existência e identidade do amuleto que o garoto carregava, pois, quando pensou nisso, mais uma vez sentiu uma pressão aterrorizadora vinda do objeto, a mesma que a anos atrás a impediu de revelar qualquer informação sobre o assunto.
— Meu pai era um paladino… que perdeu sua aura da fé…e minha mãe era uma Alfae que foi poderosa o bastante para invadir Elysium mesmo com todas as suas defesas… — ele murmurou atônito.
— E não só isso — a Alfae continuou — Mas, além da proeza mágica da sua linhagem por parte de mãe, seu pai também lhe deixou um formidável presente em suas veias.
— Ahn? — ele questionou confuso — Ele também me deixou algo? O que?
— Ele lhe deixou a possibilidade de praticar as artes sagradas — ela respondeu — A capacidade de usar o mesmo poder dos paladinos, os “milagres”.
— Artes sagradas? Está falando das artes arcanas dos serafins? — ele perguntou, ainda sem entender o que sua mestra estava lhe dizendo.
— Não — ela disse chacoalhando a cabeça — O que seu pai, que certamente era um paladino poderosíssimo para realizar este feito, lhe deixou foi a aura da fé condensada em seu sangue.
— Aura da fé condensada? E pra que serve isso?— ele questionou.
—A aura da fé é o que permite que qualquer ser utilize as artes sagradas — Kaella explicou — Ou se preferir, as artes de combate divinas. Elas são, de certa forma, relacionadas á aqueles poderes absolutos que lhe mencionei que são capazes de superar o poder de um espaço independente de um invocador. Apesar de parecida com a mana da luz, a aura da fé é algo que pode ser praticado por qualquer um, mas diferente da mana da luz, a aura da fé tem exigências muito maiores para ser aprendida e fortificada e também, com exceção de algumas artes especificas de alto nível, serve apenas para fortificar o corpo e desferir ataques devastadores com seus armamentos sagrados.
— Parece poderoso — Lucet disse pensativo — E daí? Porque é um presente eu ter isso condensado no meu sangue?
— Você tendo aura da fé condensada em seu sangue logo de nascença significa que você terá uma facilidade muito maior em aprender e praticar a aura da fé, e consequentemente, as artes sagradas.
Apesar de já ter recebido algumas informações sobre suas origens quando Maximilian usou sua identidade para expulsar os mestres traidores, depois daquele torneio, Lucet e Kaella nunca mais tocaram no assunto. Tendo em vista que não demoraram muito para ir ao ninho após o torneio e que logo depois de voltar passaram um mês treinando arduamente para corrigir as falhas que ele demonstrou durante o exame era fácil entender o porquê de não terem tocado no assunto, afinal, mal tiveram tempo para verdadeiramente conversar.
Porém, com toda essa revelação quanto a suas origens, e especialmente o que cada um dos seus pais lhe deixou como herança sanguínea, ele se sentiu quente por dentro. Mesmo que não pudessem estar por perto, de uma certa maneira seus pais ainda cuidavam de si ao lhe dar um potencial tão grande.
Lucet queria saber mais sobre quem verdadeiramente era, e neste instante ele estava convencido. Se ir a Lumina fosse o preço para aprender mais sobre si, então ele iria sem pestanejar mais e, caso tenha a oportunidade, até mesmo possa vir a aprender mais sobre a magia com outros que não fossem sua mestra, além de, é claro, aprender mais sobre ela.
Vendo que o garoto havia finalmente aceitado sua proposta, Kaella então começou a discutir os detalhes da viagem, os preparativos, que tipo de mantimentos, equipamentos e quantias de dinheiro e outros itens que seriam necessários para sua estadia.
Eles estavam conversando sobre a possibilidade de preparar alguns fardos de lírios-prisma e algumas poções quando a vila escureceu e um sentimento ruim, daqueles que assusta até a mente do mais bravo guerreiro ou do mais inteligente sábio em tempos calamitosos, tomou conta do ambiente. Ainda era relativamente cedo, afinal, eram apenas três horas da tarde e este fato preocupou o par que conseguia ouvir dezenas de passos e gritos nas ruas fazendo-os fez prontamente sair da sala, descer as escadas e ir até à rua para observar a situação.
Quando pararam para observar notaram que diversos moradores de Elysium, mestres ou não, estavam nas ruas olhando para o céu. O dia até aquele momento estava fortemente ensolarado e sem qualquer nuvem no céu, o que deixava a vila totalmente iluminada pela luz solar que atravessa as copas das árvores, mas, para que toda essa luz fosse roubada num instante forçando a ativação dos postes de cristais de mana para iluminar o lugar, algo certamente estava errado e os habitantes prontamente foram investigar.
Eles sabiam que a vila era sempre bem protegida por inúmeros mecanismos, feitiços e artes dos mestres, o que os dava um grau de tranquilidade, mas, desta vez a mudança repentina era agourenta e os fazia temer pelo destino próximo. O céu que antes estava visivelmente azul através das copas das árvores agora estava cinzento e tempestuoso, os ventos sopravam forte e chacoalhavam os inúmeros galhos e folhas em cima de Elysium, em seguida os moradores começaram a ouvir os ruídos da floresta que o povo pode facilmente concluir que eram as feras que foram afugentadas pela mudança súbita e maligna do clima.
Após algum tempo, o céu começou a brilhar com relâmpagos formidáveis enquanto estrondosos trovões rugiam e ameaçavam partir o mundo com sua fúria. Neste instante o rosto de Lucet ficou pálido e seu corpo todo começou a suar e tremer. Ele não sabia o porquê, mas algo dentro de si parecia gritar para ele que um grande perigo estava por vir e não demorou muito tempo até que ele enfraquecesse e não conseguisse mais ficar de pé, sua consciência parecia escorregar e ameaçava lhe falhar totalmente a qualquer momento.
Ele tentou resistir essa fraqueza por alguns momentos, mas, a cada minuto que passava a força lhe fugia e logo nem mesmo o reforço de sua mana, que estava sendo gasta rapidamente, fora capaz mantê-lo de pé e em instantes seus joelhos tremeram fazendo o se ajoelhar para conservar suas energias e tentar se recuperar.
— M…Me… Mestra — ele disse ofegante — O…O que está acontecendo?
— Ahn? — ela disse confusa antes de se virar para ele — Lucet! O que foi? Você está bem? — ela se agachou e pôs uma mão em suas costas injetando energia no corpo do garoto.
— E… eu não sei mestra… — ele respondeu, fraqueza ainda óbvia em sua voz — Do nada eu me senti… ameaçado, como se tivesse um grande perigo perto daqui, e depois eu comecei a enfraquecer muito rápido e nem mesmo com a minha mana ou a sua, eu consegui recuperar minha força.
Kaella olhou para ele preocupada e começou a murmurar diversas palavras desconhecidas enquanto várias esferas de fumaça negra saiam de seu corpo e entravam no corpo do garoto. Momentos depois as luzes saíram e retornaram para ela, e quando o fizeram, ela quase soltou um grito ao passo de que seu rosto quase reluzente perdeu sua graça e ganhou um aspecto doentio.
— Não pode ser! — A elfa exclamou — Como foi que eles encontraram Elysium!?
— Mestra!? — Lucet disse assustado — O que aconteceu? Quem foi que encontrou Elysium?
O garoto preocupado reuniu as poucas forças que lhe restavam e tentou se erguer e ajudar sua mestra, mas infelizmente, seu poder falhou e ele prontamente caiu sentado no chão. “Droga! O que tá acontecendo?” ele pensou enquanto olhava para sua mestra em busca de respostas, ela parecia estar com a mente em outro mundo enquanto murmumarava incontáveis palavras e até notou sua aura aumentar e agir diversas vezes, mas sem qualquer efeito aparente. Ele então a viu tentar abrir uma porta para a dimensão das sombras, ao ponto que as sombras abaixo deles se alargaram tal como no uso do passo do corvo, mas ela acabou falhando e foi neste instante que ela se virou para ele.
— Lucet — ela disse, agitada — Precisamos encontrar Maximilian, e rápido.
— Ahn? O líder? Porquê?
— A mana de toda Elysium está sendo pesadamente restringida por uma arte sagrada — ela explicou com uma expressão fúnebre — Se eu não estiver enganada, a Congregação de Puritas finalmente encontrou Elysium, e se realmente forem eles, você estar tão fraco não é tão estranho assim. Porém, o mais importante é que temos de sair daqui o quanto antes, se minhas estimativas estiverem corretas, nós seremos massacrados se não escaparmos.
— Como assim? — ele perguntou incrédulo — Porque essa congregação tem qualquer coisa a ver comigo?
— Porque são justamente eles que descobriram e difundiram o conceito de aura da fé — ela explicou — Depois de centenas de anos de pesquisas eles desenvolveram uma massiva força de seguidores, aliados e devotos, além de, é claro, um exército particular que seguem os comandos da “Representante do Verdadeiro Deus” e são conhecidos como paladinos, que são os usuários mais poderosos de aura da fé.
— Paladinos? — Lucet disse abismado — Quer dizer então que eu sou filho de um cara que trabalha para esse lugar que está nos atacando?
— Bem — ela respondeu — Certamente no passado ele deve ter trabalhado para eles, mas como eu lhe falei, no momento em que você foi deixado aqui, seu pai estava ferido e sua aura da fé estava totalmente drenada o que me leva a pensar que, devido aos ensinamentos e doutrina de Puritas, ele traiu a organização para ficar com sua mãe. Lembre-se que, como Maximilian lhe disse no torneio, aqueles treze mestres que foram expulsos eram seguidores de uma organização que espalhava a pureza de sangue como virtude absoluta e acho que você percebeu pela atitude deles que um meio-sangue e seus pais não deveriam sequer existir.
Lucet ficou em silêncio, refletindo sobre estes fatos. Kaella enquanto isso começou a murmurar palavras e circular sua mana, disparando pequenas nuvens de fumaça negra para todas as direções. Ela estava tentando localizar e contatar o líder que nessa hora tão crucial não estava por perto. “Droga! Cadê você Maximilian, seu velho linguarudo!?” ela xingou em sua mente enquanto continuava a disparar diversos feitiços.
Enquanto freneticamente tentava encontrar o homem tudo se tornou quieto. O vento e as tempestades cessaram e tudo parou numa aterradora quietude, mas, antes mesmo que o povo tivesse tempo de reagir, o céu brilhou com pilares de luz dourada e o silêncio foi partido com um zunido enérgico que ameaçava partir os tímpanos dos habitantes de tão alto que ecoava no ambiente.
O mundo pareceu parar por um instante. Tudo escureceu enquanto as luzes no céu pareciam sugar todo o brilho do mundo antes de se tornar uma gigantesca névoa dourada, mas, até mesmo essa forma não durou muito, pois, instantes depois o brilho se aglomerou, condensou antes de se desintegrar em milhares de partículas douradas.
As luzes douradas então preencheram o céu e transformaram o teto celeste escurecido em uma esplêndida reprodução do estrelado céu noturno repleto de cores douradas. Para uns a visão era linda, para outros era estranha, mas para todos eles, a visão era certamente aterradora.
Um coro de vozes então ecoou como o rugido de um trovão entoando palavras desconhecidas para o público, a cada palavra pronunciada as partículas começaram a tremer e eventualmente começaram a se mover. A princípio eram apenas movimentos aleatórios, mas logo as partículas começaram a girar, condensar, comprimir e então formar um colossal objeto que, para o desespero dos habitantes, logo foi reconhecido como uma gigantesca espada dourada que apenas com seu tamanho parecia ser capaz de destruir toda Elysium.