Os Contos de Anima - Capítulo 37
O homem certamente esperava muitas coisas quando declarou sua ameaça. Ele esperava ver o sangue desaparecer do rosto do garoto quando sua feição se tornasse pálida com medo, esperava ver seu corpo tremer aterrado com sua formidável presença e até mesmo chegou a imaginar o garoto urinando em suas calças de puro horror diante de seu poder, mas, o que ele realmente encontrou estava longe de qualquer uma das suas mais extravagantes fantasias.
Quando ele olhou para Lucet, o que ele viu foi, não uma criança teimosa, mas sim uma besta olhando de volta para ele. Talvez fosse o olho de fera que o dava a impressão de que cada segredo seu estivesse exposto ou simplesmente era a fúnebre determinação que brilhava nos olhos do garoto, não demonstrando nem o menor traço de medo ou relutância em face da dor, ou morte que poderia lhe ocorrer, mas, ele nunca em sua vida se sentiu tão intimidado por uma coisa tão fraca e absolutamente frágil quando o garoto diante de si.
Foi então que mais uma surpresa tomou conta da mente do homem quando Lucet, que até aquele momento apenas o encarava, finalmente agiu. Ele começou a andar na direção dele. Eram passos vagarosos e extremamente laborados, mas sem sombra de dúvidas, eram pequenos progressos que iam lhe alcançar. A atitude foi tão bizarra nos olhos do paladino sanguinário que sua mente travou, incapaz de processar, sua mente contendo apenas o questionamento de exatamente aonde foi que o garoto tinha arranjado um olhar tão ferrenho quanto aquele.
O homem não conseguia, inclusive, detectar qualquer sinal de fraqueza que outrora ele notara no garoto. O seu andar era firme e decidido, seus olhos travados nos olhos do guerreiro, absolutamente determinado a não desgrudar a conexão visual por um segundo que fosse, como se estivesse determinando o vencedor apenas nesta batalhas de olhares.
— Eu falei… — O garoto falou lentamente, sua voz gradualmente se aprofundando — Solta ela.
Tap… Tap… Tap…
Os passos ecoavam no campo de batalha pareciam tão silenciosos quanto a própria morte. Lucet, sua voz fria e imperiosa, mais uma vez falou.
— Solta ela…
O paladino gargalhou, finalmente escapando da confusão da sua mente.
— Soltar ela? Que piada! — ele riu — As ordens da pontifícia são absolutas! Além do mais — ele soltou uma risada particularmente cruel — O que exatamente um pirralho mestiço como você pode fazer para me impedir de matá-la? Você mal consegue andar direito!
— Eu falei — E dessa vez uma força descomunal permeou a voz do garoto — SOLTA ELA!
Uma onda de choque explodiu com a força da voz do garoto que soltou um grito que mais parecia um rugido de uma fera ancestral. Lucet, possesso de uma inexplicável força, desatou a correr mais rápido do que nunca antes fora capaz, seus passos deixando rachaduras e depressões no solo enquanto atravessava os metros entre eles em questão de segundos, uma aura invisível se formando ao seu redor. Kaella olhava para ele totalmente confusa e assustada, de onde surgiu essa força? Até momentos atrás, ele mal conseguia se manter de pé! O que estava acontecendo com o menino? Porém, antes que ela tivesse a chance de contemplar mais a idéia, o garoto os alcançou e saltou, disparando um corte na jugular do homem.
— SOLTA ELA! — ele gritou, sua energia flutuando a níveis nunca antes vistos por Kaella.
Porém, a força do paladino, mesmo diante do súbito aumento de poder do garoto, ainda era extremamente superior a dele. Seus reflexos de anos de combate e treino ainda eram afiados demais para que ele pudesse superar com seu desespero, e, com um simples tapa com as costas de sua mão em seu rosto, Alexander fez Lucet voar por dezenas de metros antes de colidir com a parede de uma casa que acabou por desabar com a força do impacto.
— L.. Lucet! — Kaella gritou angustiada.
— Mas olha só — Alexander zombou — Parece que o “poderoso” Lucet falhou em salvar sua amada mestra. Que foi garotinho? O titio Alexander te bateu com força demais?
— Eu falei pra você… — A voz do garoto ecoou pelo próprio espaço, aparentemente desimpedida dos escombros sobre si — SOLTA ELA!
Uma segunda onda de choque explodiu e arremessou os escombros para o ar numa velocidade que mais pareciam terem sido disparadas por uma catapulta. No instante em que o paladino ainda processava o berro, Lucet saltou para fora da casa e aterrissou sobre seus quatro membros, parecendo mais fera do que gente. Ele se ergueu e urrou novamente enquanto disparava na direção do homem ainda mais veloz que antes, veias saltadas começando a decorar sua pele.
— SOLTA ELA!
Numa fração de segundo o garoto alcançou o paladino, sua lâmina negra em mãos. Mas, mesmo tendo demonstrado ainda mais poder, diante da rica experiência de combate e o poder do homem, outro tapa foi tudo que bastou para lançar Lucet voando como uma bala de canhão na direção de outra casa, colidindo com a estrutura e demolindo o lugar.
— N… Não… — A voz do garoto ecoou no espaço, alta e penetrante como um tiro, mas suave, feito um sussurro — Não… V… Vou deixar… Machucar ela… S… Solta… Ela…
Lucet, desta vez, se levantou com bastante dificuldade. Seus ossos doíam, e mesmo em seu estado de fúria, ele sabia que tinha ao menos uma dúzia de rachaduras espalhadas por seu corpo, isso sem contar seu rosto que ardia e sua cabeça que parecia girar. No meio dos escombros ele agarrou a cabeça e respirou fundo, tentando estabilizar seu equilíbrio, e, após alguns instantes, ele começou a mover as pedras para fora do seu caminho, gradualmente emergindo do entulho diante dos olhos de sua mestra e do seu oponente.
— Olha só! — Alexander gargalhou — Ele ainda consegue se erguer! Mas que elfa sortuda você é, com um aluno dedicado desses dá até para duvidar se ele não é teu filho — ele riu — Mas como eu sei quem são os pais porcos dele… Porque será então que ele não desiste? O que exatamente lhe dá força? Me diga elfa, que coisas obscuras você fez com a mente desse garoto para ele ser tão leal a você?
Kaella ficou em silêncio, seus olhos fitando apenas o garoto que mais uma vez se erguia, a garra que ela lhe dera de presente no último aniversário firme em sua mão que já ficava branca com o tamanho da força que ele estava exercendo. Os olhos dela encontraram os de Lucet, ela dizendo tudo que podia com seu olhar, implorando para que ele fugisse. Lhe prometendo que daria um jeito de escapar e que o foco agora era a segurança dele, mas, para o desespero da mulher, tudo que ela encontrou nos olhos do garoto foi uma determinação letal que iria erguer o corpo do garoto quantas vezes fosse necessário para cumprir seu objetivo de salvar a vida dela.
Fios de lágrimas correram pelo rosto da Alfae enquanto ela tentava se soltar com todas as suas forças. Sua aura negra feito tinta batalhava ferozmente contra a aura branca flamejante do paladino, porém, sem qualquer sucesso. Ela chutava, socava, atacava com joelhos e cotovelos e até mesmo tentava conjurar algum feitiço, mas, o sufocamento e a dor a impediam de se concentrar o suficiente para tal. A aura do paladino era como chama, extremamente quente, e tudo que ela conseguia fazer era não ser queimada pelas labaredas brancas.
Foi então que algo inesperado surgiu na vista do par de oponentes. Lucet que até aquele momento estava apenas aumentando seu poder inexplicavelmente, uma aura invisível surgindo ao seu redor, manifestou a verdadeira razão da súbita amplificação de seus poderes.
A aura do garoto, antes apenas uma pressão, ganhou cor e ganhou forma ao irradiar uma luz dourada na forma de um chama muito similar a que cobria o paladino. As veias saltadas em seu corpo agora brilhavam na mesma tonalidade da aura, parecendo circuitos de ouro que ocasionalmente pulsava. Ele ergueu sua lâmina negra e apontou na direção do cavaleiro.
O garoto fechou seus olhos e respirou fundo. O ar começou a distorcer ao redor de Lucet enquanto a seu novo poder parecia ser compresso, sua aura flamejante diminuindo cada vez mais antes de convergir em sua mão. O poder brilhante pulsou uma última vez e então, com uma explosão de luz que forçou até mesmo o paladino cercado de luz a fechar seus olhos, um novo armamento se manifestou no corpo do menino.
Quando o paladino abriu seus olhos novamente, ele viu algo que o deixou chocado. A mão do garoto, antes nua, agora estava coberta por uma manopla dourada cravada de runas acompanhada de armadura que cobria o braço até a junta do ombro. Jáa adaga negra que ele empunhava não existia mais, em seu lugar, a manopla segurava uma grande espada de fio dourado e vinco negro. Lucet então se pronunciou, sua voz firme e um tom mais grave do que antes.
— Alexander — Ele disse, seus olhos agora fixos no homem, suas palavras lentas e enraivecidas — Larga a minha mãe!
— Mãe? — O paladino disse, compreensão subitamente brilhando em seus olhos — Mas é claro! Agora essa determinação toda faz sentido! O verme meio-sangue que nunca viu os pais se apegou a coisa mais próxima para chamar de mãe, e ainda por cima, essa elfa burra aceitou e o trata como filho! Hah! Isso sim que é uma piada de qualidade!
— Cala sua boca! — Lucet urrou — Não ouse falar assim da minha mãe! Se não calar sua boca agora, nem mesmo sua “santa” pontifícia vai conseguir me impedir de partir seu crânio com a minha espada!
— Hoho… Que feroz — Alexander zombou — Não é de surpreender que tenha conseguido despertar o armamento sagrado sem qualquer treino, afinal — Um riso cruel permeou o ar — O perigo de uma vida preciosa é sempre um bom gatilho para o despertar da aura da fé, e com esse imundo sangue de traidor do Thomas em suas veias, não é nada incomum que tenha conseguido isso.
Lucet mal teve tempo de processar as palavras do homem, quando ele começou a apertar seus dedos novamente, a expressão pálida de Kaella rapidamente perdendo seu brilho, seus olhos começando a revirar para dentro do crânio enquanto sua consciência falhava cada vez mais, vislumbres de inconsciência populando sua mente.
O garoto não falou mais nada e apenas disparou com sua espada na direção do homem, seu corpo agora brilhando com uma aura acinzentada. Luzes, tremores e explosões da batalha de Dracul infestavam o céu com uma miríade de cores, e por consequência, pintava Elysium, que agora se encontrava em ruínas por consequência do combate titânico acima, com inúmeras sombras que Lucet não perdeu tempo em aproveitar quando mergulhou nas sombras.
Agora que ele próprio era capaz de utilizar o poder da aura da fé na forma do armamento sagrado, seu corpo não sofria com a supressão sanguínea e era capaz de utilizar suas outras habilidades. No instante que notou isso, sua fúria foi transformada em foco e sua mente foi capaz de raciocinar novamente ao invés de simplesmente fazer com que ele avançasse cegamente na direção do perigo para resgatar Kaella..
Lucet saltou silenciosamente das sombras formadas pelos corpos de sua mestra e o paladino e desferiu um corte na direção do pescoço do homem. Alexander notou o ataque mas não conseguiu reagir a tempo e foi forçado a agachar para desviar do golpe. Em seguida, o homem disparou seu outro braço, desta vez com a mão cerrada num punho na direção estômago do garoto, porém, ele reagiu ainda mais rápido que o homem e virou a espada, usando a parte plana da lâmina para bloquear o impacto.
A espada tinha quase o mesmo tamanho que o garoto, porém, diferente do que ele mesmo esperava quando obteve a espada, ela não era estranha para ele que nunca exatamente focou sua prática em espadas, tendo uma sensação extremamente familiar, como se ele a tivesse usado a vida toda. Além disso, a lâmina, apesar da grandeza, também não pesava nada mais do que sua adaga pesava, por isso, era quase que ridículo o quão leve uma coisa daquele era.
Um baque surdo foi emitido quando o punho do paladino acertou a espada. Os braços do garoto vibraram com a força, mas, ele manteve o controle e segurou o cabo com firmeza, mesmo quando acabou inevitavelmente sendo mandado voando para trás. Diferente das duas primeiras investidas, Lucet desta vez não colidiu contra uma casa e a demoliu com o impacto, mas sim virou o corpo no meio do ar e executou o passo do corvo num escombro em seu caminho, mergulhando nas sombras e evitando qualquer dano real.
Assim, o garoto continuou sua estratégia. Ele mergulhava nas sombras para atacar, tentava causar dano, e quando falhava, usava a força do contra-ataque para recuar e mergulhar novamente nas sombras antes de repetir o processo. A maior vantagem que ele possuía é que as luzes do combate acima e suas explosões mascaravam qualquer som que ele produzia e escondia sua figura até o último instante. Com o tempo, Lucet acelerou sua ofensiva cada vez mais chegando a tal velocidade que após alguns minutos, ele conseguiu realizar quinze ataques num único minuto.
O paladino, que antes apenas desdenhava as tentativas do garoto, agora não tinha mais escolha a não ser admitir que o mestiço era perigoso. Seu armamento sagrado era surpreendentemente durável e a lâmina de vinco negro era afiada ao ponto que estava fazendo riscos em sua armadura, mesmo com a proteção da sua aura. No início isso não era ameaça alguma, mas, com o tempo, nem mesmo ele poderia garantir que aquela lâmina não conseguiria atravessar suas defesas e lhe ferir.
Lucet saltou de uma sombra e deu uma cambalhota no ar, dobrando a força de seu golpe devido ao giro, antes de disparar um corte vertical mirando no braço que segurava o pescoço de sua mestra. Felizmente, o paladino estava tão focado em defender e desviar do garoto que sua mão não produzia nenhuma força adicional, apenas segurando a elfa ali, por isso, ela ainda estava viva, sofrendo, mas, certamente ainda viva.
Foi neste instante que Alexander viu a chance de virar essa situação e, graças a sua experiência e poder, o fez sem falhas. A espada do garoto estava prestes a acertar seu braço quando de repente, poucos centímetros antes da lâmina decepar seu braço, o homem materializou o escudo que havia usado antes quando ainda estava tentando invadir Elysium, dobrou levemente os joelhos, encolheu seu braço, alinhou o ombro embaixo dele e então, colocando toda a força de seu corpo atrás do escudo, desferiu um contra-ataque esmagador.
Mesmo com a força dobrada do golpe que ele tinha certeza que era capaz de atravessar o escudo que surgiu no último segundo, Lucet falhou em seu ataque e foi jogado para trás, sua lâmina voando para longe de suas mãos, no momento em que a espada colidiu com o escudo.
O garoto caiu de costas no chão de pedra, o ar sendo imediatamente expulso de seus pulmões. Uns excruciantes segundos se passaram enquanto ele buscava o ar antes de o conseguir e iniciar um acesso de tosse que resultou em ele expedir sangue. Sua consciência falhou por um breve instante e, para o seu desespero, toda aquela inextinguível força e o armamento sagrado que ele conjurou, desapareceram, deixando para trás apenas as ondas de dor que permeavam seu corpo e uma adaga negra curvada a alguns metros de si.
A dor era tanta que mesmo tentando gritar, ele não conseguia, e isso o forçou a sofrer em silêncio. O paladino, ofegante, se ergueu e observou o garoto que rolava de dor emitindo gritos silenciosos.
— Heh… Heh… — ele riu arfando, antes de dizer — Eu tenho que admitir garoto, eu não esperava encontrar tanta força em alguém tão pequeno. Estou impressionado no quão bem você conseguiu utilizar o armamento sagrado mesmo sendo sua primeira vez, se você não fosse um lixo mestiço, teria dado um formidável paladino.
O paladino era alto e, com seu braço erguido acima de sua cabeça enquanto segurava Kaella, ele facilmente erguia a elfa a ponto que apenas as pontas dos seus pés encostavam no chão. Ele andou até Lucet, os pés de Kaella acertando algumas pedrinhas e levantado pequenos montinhos de terra antes de os derrubar. O garoto ainda rolava soltando inúmeros gritos silenciosos enquanto tossia e cuspia sangue, e o homem aproveitou isso para erguer a elfa de forma que ela pudesse ver o sofrimento do seu aluno antes de dizer.
— Veja elfa — ele disse apontando para Lucet — Aqui está o resultado dos seus patéticos laços doentios com esse meio-sangue. Me diga, como se sente ao ver o seu sofrimento? — ele então se virou para o garoto, aumentando sua voz para que a alfae ouvisse — Acha isso tudo injusto? Imagino que deva querer me estraçalhar por causar tanta dor ao seu “filho” não? Bem, saiba que só está sofrendo por se envolver com esse falso paraíso e esse herege mestiço. Esta dor é o preço de desobedecer as leis do senhor, tolerando a mistura de sangue e buscando criar paraísos nesta terra impura. Se quer odiar alguém, odeie sua tolice ou talvez, odeie o garoto, pois ele é causa de grande parte da sua dor, afinal, se não fosse por ele, nós jamais teríamos encontrado esse lugar.
— O rastreio ordenado pela santa pontifícia imposto a esta criança foi uma jogada de mestre se quer saber, o rubro fez um excelente trabalho — ele disse num tom casual, antes exclamar — Ah! Como é sábia e poderosa a representante do verdadeiro deus, quem imaginaria que teriamos paladinos corvos? De ínicio muitos protestaram, mas agora todos veem a sabedoria da minha mestra! A destruição deste poço de pecado é a prova de que a vontade divina está ao nosso lado!
— Mas sabe o que é o melhor de tudo? — ele perguntou, risadas malignas permeando sua fala — Você pode até escapar do sofrimento ao entrar nos braços da morte, mas, o destino deste garoto é muito, muito pior que uma simples morte. Aliás, ele terá sorte se morrer rápido considerando o que o espera, afinal, a vontade de minha mestra é expurgar as memórias e esse sangue imundo de elfo do garoto, para então torná-lo um subordinado leal da congregação! Isso sim! Isso será a salvação desta criança, talvez até mesmo a redenção do porco do seu pai!.
O homem desatou a gargalhar olhando para o combate acima deles enquanto Kaella olhava para o garoto, um verdadeiro terror preenchendo cada centímetro da sua mente. Com tanto tempo de convivência e toda a história que carregavam juntos, ter de ver a criança sofrer era doloroso, bem mais que os abusos físicos que estava sofrendo no momento, porém, ao saber do destino do garoto depois que ela estivesse morta, cada fibra de seu ser vibrou, não mais de medo, mas sim de ódio.
Sua mente agora só enxergava métodos de executar o desgraçado que os atacara. Ela contemplava fantasias e formulava planos de arrancar a cabeça da “grandiosa” pontifícia e usar o crânio como taça. Ela desejava ardentemente destruir tudo em seu caminho e certamente o faria se esse fosse o preço para proteger a criança que tanto amava. Ela que nunca sequer contemplou a noção de ter um filho, mas, agora sabia mais do que nunca que ela já havia realizado esse feito. Mesmo que os pais do garoto ainda estivessem vivos, o afeto que ela nutria pelo garoto jamais desaparecia e ela tinha certeza que o mesmo era verdade com o garoto. A determinação de enfrentar o paladino ignorando todos os riscos para poder salvá-la moveu e convenceu seu coração, e agora, ela faria de tudo para o salvar.
Porém, antes mesmo que ela pudesse reunir a força que estava borbulhando em seu corpo e atacar, ela viu o garoto dar algumas tossidas e sorrir ao vê-la antes desaparecer nas sombras, um familiar brilho dourado surgindo em seu braço direito.
Enquanto o homem se gabava e torturava Kaella com palavras e atos, Lucet finalmente conseguiu recuperar o controle do seu corpo e tolerar a dor a muito custo. Ele viu que o paladino ainda olhava para ele enquanto fala, e por isso, teve de continuar fingindo suas tossidas e rolando, mas, enquanto fazia isso, sua determinação interminável começou a preenchê-lo novamente e ele tentou diversas vezes utilizar a energia de antes para formar o armamento sagrado.
Como ele descobriu anteriormente com o olho do tirano, a aura da fé, quando não treinada só pode ser utilizada em momentos de perigo absoluto ou desespero, por isso, quando ele brevemente perdeu sua consciência, ele perdeu o acesso e o controle do poder emergencial já que seu corpo insconsciente não conseguia detectar e responder ao perigo devido a exaustão. Ele então passou vários segundos tentando acessar o poder novamente, porém, foi apenas quando ele se lembrou dos requisitos que ele finalmente conseguiu se conectar com a energia adormecida em seu sangue.
Ele já tinha a determinação para utilizar a energia, porém, o que faltava era a fé que era capaz de utilizá-la. Quando se acalmou e lembrou da sensação de a utilizar e de que ele tinha um depósito de aura condensada em seu sangue graças ao seu pai, Lucet se reconectou com esse poder, sua dor sendo diminuída expressivamente, o permitindo se mover, e por fim, acessar sua mana e aura novamente, mas com o porém de que desta vez, a força infindável de antes já não o acompanhava. Ele silenciosamente juntou mana do ambiente, o suficiente para dar um último golpe, pois ele sabia, mesmo com o reforço da aura da fé, seu corpo só seria capaz de atacar apenas mais uma vez antes de perder todas as forças, por isso, ele finalizaria a luta com este ataque.
O paladino ainda gargalhava e admirava o combate de Dracul contra a pontifícia quando Lucet agiu. Ele saltou das sombras como um vulto, seu braço direito coberto pela manopla e armadura dourada e disparou um soco na direção da nuca do homem. A gargalhada abruptamente parou e o homem se virou ainda mais rápido que o ataque do garoto e agarrou o braço dele no meio do ar antes de dizer como uma voz cruel e medonha.
— Peguei seu braço…
Lucet reagiu e colocou os pés no peito do paladino e chutou o queixo do elmo, fazendo-o disparar no ar e revelar a face do homem. Era um rosto terrivelmente mutilado por inúmeras cicatrizes que mais parecia uma colcha de retalhos. Ele não possuía pálpebras, lábios, orelhas, nariz ou qualquer espécie de pelo na cabeça. Alexander sorria um medonho e assustador sorriso que mostrava seus dentes amarelados.
Alexander acumulou um pluma de chamas brancas em sua mão que rápidamente corroeu o armamento sagrado do garoto. Mesmo com um talento natural para o uso da aura, como é que a criança que nunca havia praticado com esse poder na vida, poderia conjurar qualquer coisa superior aos anos de esforço e dedicação do paladino.
Lucet urrou de dor quando as chamas corroeram sua proteção e atingiram seu braço, e ainda por cima, ele conseguia sentir a mão do guerreiro apertando sua carne que era cada vez mais destruída pela aura branca.
As chamas expandiram e alcançaram até o ombro do garoto, ameaçando devorar seu corpo inteiro a partir dali. A queimadura era tão profunda que os ossos do garoto podiam ser vistos em meio aos restos de carne carbonizada ainda presos a área.
A essa altura, os nervos e qualquer movimento do membro já tinham sido completamente destruídos. A dor havia sido insuportável, mas agora, fora a junta do ombro que ardia com as chamas, ele não sentia mais nada na região. Com sua consciência quase falhando, Lucet puxou um último folêgo e qualquer rastro da aura dourada sumiu, antes de ele fitar Kaella intensamente, que apenas respondeu com um sorriso amargo.
— Então fica com ele!
O fim do combate ocorreu numa mera fração de segundos. Lucet sacou sua segunda garra de seu cinto dimensional e transferiu todo o poder do armamento sagrado que estava no seu braço direito para o esquerdo, formando a manopla dourada nele e transformando a adaga curva na espada que apesar de estar com metade do tamanho original, porém com o poder de corte multiplicado pela condensação da aura.
Sem deixar que o paladino reagisse, Kaella acumulou toda sua mana na sua perna direita e, com o membro brilhando com uma aura negra que parecia sugar o mundo para si, ela disparou um poderoso chute no queixo exposto do homem que chacoalhou seu cerébro, fazendo sua consciência falhar e atrasar sua reação por um mísero instante, mas um instante que foi crucial.
Lucet cortou seu braço na altura da junta do ombro e então usou os pés para saltar para o ar e girar o corpo para frente, acumulando velocidade e força em seu ataque antes disparar um corte vertical e, antes mesmo que o paladino pudesse processar seu fim, partir a cabeça do maníaco desfigurado com sua espada em duas, o corte apenas parando nos ossos do pescoço. E esse golpe teria continuado até separar o corpo inteiro do homem em dois, mas a força do garoto acabou no momento em que ele conseguiu confirmar a morte.
Nos últimos instantes em que seu cérebro partido ainda conseguia raciocinar, por mais primitivamente que fosse, Alexander teve como sua última visão um olho castanho-claro reluzente com pálpebras pálidas e um olho vermelho dourado de uma besta antes de ouvir.
— Eu falei… — Lucet disse grogue, sua consciência abraçando o doce encanto sombrio do adormecer — Para você soltar ela… Viu só? … Hehe….Nem sua pontifícial pode te salvar…
A espada então se desintegrou junto com a lâmina negra ao passo que Lucet caiu no chão e desmaiou, seu ombro agora jorrando o sangue que não teve a oportunidade de expelir durante o ataque. O homem tombou para trás, e, tal como uma vela sendo apagada pelo vento, caiu morto, sua horrenda feição partida em dois. Kaella sentiu a mão relaxar, e antes mesmo que o homem caísse, ela se soltou e pousou no chão, rapidamente indo até o garoto.
Ela canalizou sua mana e formou as pressas uma tampa de energia negra que parou o sangramento e impediu que o garoto expelisse sangue até a morte. Ela tomou vários fôlegos durante o processo, e tossiu o mesmo número de vezes enquanto desesperadamente recuperava suas forças e tratava dos ferimentos em seu pescoço com sua magia.
A Alfae então retirou três familiares poções de sua bolsa dimensional, se ajoelhou ao seu lado, e, com todo o cuidado e carinho que conseguia manifestar, ergueu o corpo do menino para que pudesse lhe dar as poções que logo, apesar de não o fazer recobrar a consciência, ao menos estabilizou sua condição.
Depois, Kaella exausta procurou novamente sentir uma possível saída daquele lugar. Com o garoto num estado tão delicado e ela mesma enfraquecida, ela sabia que qualquer energia residual do combate acima os mataria, por isso, começou a usar sua mana para ver se era possível se conectar com algum ponto fora dali, quanto mais longe, melhor.
A energia da Alfae viajou longe no plano das sombras, procurando pontos de saída onde pudesse escapar e tratar o garoto com melhores técnicas e recursos quanto antes. Suas esperanças eram baixas, mas, seja por intervenção de Maximilian ou uma feliz coincidência, ela encontrou uma brecha na supressão de mana e rapidamente escolheu uma longínqua saída.
Sem dúvida este lugar tinha exatamente tudo que fosse necessário para cuidar da criança, e, após recuperar a garra que tinha dado ao garoto de aniversário usando alguns fios de mana, ela abraçou seu corpo e mergulhou nas sombras, sua aura negra envolvendo-os e protegendo o garoto de qualquer dano.
Neste último passo do corvo, o par desapareceu, seus corpos sendo levados para uma terra cheia de luzes. Seu futuro e segurança conhecidos apenas pelo destino no compasso do amuleto em seu peito que pulsava levemente com uma luz suave, cumprindo a promessa que seus pais compraram a muito custo tantos anos atrás.
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Eai pessoal, tudo bem?
Aqui é o Major passando para agradecer por acompanharem este primeiro volume ^_^ Espero que tenham gostado e, caso queiram, deixem ai seus comentários sobre coisas a melhorar ( Porque eu tenho certeza que essa estória está longe de ser perfeita).
Além disso, como disse antes, aguardem. Em breve o segundo volume começará a ser publicado 🙂
Mais uma vez, Obrigado por ter chegado até aqui, espero que tenha gostado. Até mais XD